Cuidadores também precisam de cuidados

A trajetória de uma cuidadora informal revela como a falta de reconhecimento do cuidado aprofunda o isolamento, o adoecimento e a exclusão social no envelhecimento.
por
Sophia Dolores
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25/03/2025

Por Sophia Dolores

 

Por quase duas décadas Viviane dedicou sua vida a cuidar de Dona Lúcia, uma mulher de idade próxima à sua. Quando começou esse trabalho, ambas estavam na casa dos 60 anos, e a relação que surgiu entre elas foi além do profissional — tornou-se um laço de amizade, cumplicidade e dependência mútua. Dona Lúcia não era viúva nem desamparada, mas possuía dificuldades para realizar tarefas do dia a dia devido a problemas de saúde. Viviane, por sua vez, encontrou no cuidado uma forma de sustento e, com o tempo, um propósito. A rotina era intensa: preparar refeições, administrar remédios, acompanhar nas consultas médicas, oferecer apoio emocional e estar presente nas noites de insônia ou nos dias de fragilidade. Durante anos, a vida de Viviane girou em torno dessa responsabilidade.

Mas o tempo não para. Dona Lúcia começou a dar sinais de cansaço, e Viviane, embora ainda ativa, também sentia os efeitos de anos de dedicação exclusiva. Além da sobrecarga física e emocional, ela começou a perceber pequenos tremores nas mãos, dificuldades motoras sutis que, aos poucos, se tornaram mais evidentes. O diagnóstico veio tarde: sinais precoces da doença de Parkinson. Ainda assim, Viviane continuou firme em seu papel de cuidadora.

O início da doença trouxe um abalo profundo. Viviane, acostumada a ser a fortaleza de outra pessoa, agora precisava lidar com a sua própria fragilidade. O medo de perder a autonomia, o receio de se tornar um fardo, tudo isso passou a ocupar seus pensamentos. Ela começou a esconder os sintomas, com vergonha de admitir que estava adoecendo. Sentia culpa por não conseguir mais manter o mesmo ritmo, por não ser suficiente. Procurar um médico foi uma decisão adiada até que os tremores se tornaram impossíveis de ignorar.

A cada consulta, um novo exame, uma nova incerteza. Com o diagnóstico confirmado, ela enfrentou outro desafio: aceitar que precisava de ajuda. Sozinha, sem filhos ou familiares por perto, a solidão se tornou ainda mais evidente. Era como se, ao deixar de cuidar, ela tivesse perdido o próprio sentido de autocuidado.

Quando Dona Lúcia faleceu, Viviane se viu diante de um vazio inesperado. Aos 76 anos, sem outra experiência profissional formal, percebeu que o mundo fora daquela casa havia seguido seu curso — e ela havia ficado para trás. Sua própria condição de saúde tornava a busca por um novo trabalho ainda mais difícil. Os sintomas do Parkinson avançavam silenciosamente, enquanto ela tentava, sem sucesso, se recolocar no mercado.

Viviane tentou de tudo. Mandou currículos, preencheu formulários, fez entrevistas por telefone, assistiu a vídeos de capacitação online - mesmo com dificuldade de acompanhar as novas tecnologias. Muitas vezes, sequer recebia resposta. Quando recebia, era para ouvir que seu perfil não correspondia às necessidades da vaga. Sua experiência "apenas" como cuidadora era visto como algo menor. Poucos enxergavam ali uma mulher que soube lidar com remédios, doenças, crises emocionais, rotina doméstica, gestão de tempo e muito mais. Habilidades valiosas, mas invisíveis para os olhos do mercado.

Sem renda fixa, passou a depender da ajuda de vizinhos e da pequena economia que tinha guardado. A insegurança alimentar bateu à porta. As contas acumulavam, e os medicamentos que precisava começaram a pesar no orçamento. Viu-se obrigada a escolher entre o alimento e o remédio. A família de Dona Lúcia, antes distante, entrou em contato. Um dos netos, ao saber da situação de Viviane, decidiu procurá-la. O reencontro foi carregado de emoção. Eles não sabiam que Viviane estava enfrentando tantas dificuldades. O vínculo criado ao longo dos anos, embora nunca oficializado por um laço sanguíneo, era real — e forte.

A família de Dona Lúcia - agora também a sua família - ofereceu apoio emocional e financeiro. Ajudaram com parte dos custos dos medicamentos e passaram a visitá-la com frequência. Viviane, que achava que terminaria seus dias sozinha, encontrou um novo tipo de amparo. Ainda que tardio, foi um gesto que reacendeu nela a esperança de que ainda havia espaço para recomeçar, mesmo que em outros moldes.

No Brasil, a realidade de cuidadores informais como Viviane é frequentemente invisibilizada. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD) do IBGE, em 2022, cerca de 5 milhões de pessoas atuavam como cuidadores informais, sem direitos trabalhistas ou previdenciários. A maioria são mulheres que dedicam anos — ou até décadas — ao cuidado de alguém, sem qualquer garantia de amparo futuro. Já um estudo da Fundação Oswaldo Cruz revelou que 68% dos cuidadores informais relataram sintomas de esgotamento físico e emocional, e 45% apresentavam algum nível de depressão.

Além disso, a profissão de cuidador ainda não é regulamentada no Brasil, o que dificulta o acesso a direitos trabalhistas. A informalidade faz com que, após anos de dedicação, muitas dessas pessoas acabem desamparadas e sem suporte financeiro ou até mesmo, psicológico.

Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), mulheres acima dos 50 anos têm 60% mais dificuldade de recolocação profissional do que homens da mesma idade. Para aquelas que passaram anos longe do mercado, o desafio é ainda maior: Viviane não apenas lidava com a falta de oportunidades, mas também com a falta de preparo para as novas exigências tecnológicas do trabalho formal.

Em países como Canadá e Alemanha, existem programas de reinserção para cuidadores informais, oferecendo cursos de capacitação e incentivo para que possam atuar em novas áreas. No Brasil, essas iniciativas são escassas, deixando Viviane e milhares de outras mulheres sem perspectivas concretas de futuro profissional.

Além das dificuldades financeiras, Viviane agora lidava com um esgotamento emocional profundo. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), cuidadores têm um risco 20% maior de desenvolver doenças crônicas como hipertensão e diabetes, além de uma maior propensão a transtornos como ansiedade e depressão.

A situação de Viviane também expõe outra realidade preocupante: a negligência com a própria saúde entre aqueles que dedicam suas vidas ao cuidado do outro. Um levantamento da Universidade de São Paulo (USP) apontou que 72% dos cuidadores informais adiam consultas médicas e tratamentos devido à falta de tempo ou recursos. No caso de Viviane, os sinais de Parkinson passaram despercebidos durante anos, ofuscados pela prioridade de cuidar de Dona Lúcia.

Hoje, mesmo sem uma renda estável, Viviane começa a traçar novos caminhos. Com a ajuda da família de Dona Lúcia, buscou atendimento psicológico e iniciou um acompanhamento médico mais regular. Participa de um grupo de apoio a pessoas com Parkinson e encontrou, ali, outras histórias que se cruzam com a sua — histórias de luta, de amor, de resistência.

O caso de Viviane não é isolado. Com o envelhecimento acelerado da população brasileira, a demanda por cuidadores aumenta, mas o reconhecimento desse trabalho segue insuficiente. Dados do Ipea indicam que, até 2050, o Brasil terá cerca de 30% da sua população composta por idosos. No entanto, políticas públicas voltadas para essa categoria são escassas, e iniciativas de apoio financeiro ou de reinserção profissional são quase inexistentes. Enquanto busca um novo caminho, Viviane enfrenta um dilema comum a muitos cuidadores informais: como recomeçar depois de dedicar a vida a cuidar de outra pessoa.

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