Corredores das estações de metrô sustentam vidas

O metrô é meio e fim. É trabalho, mas também lugar de existência.
por
Luiza Miranda
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10/06/2025

Por Luiza Silva

 

Nos subterrâneos de São Paulo, entre os empurrões apressados e os avisos automáticos que anunciam as estações, dois personagens percorrem o mesmo caminho todos os dias, mas por razões diferentes. Renan e Dolores não se conhecem, mas circulam pelos mesmos espaços. Talvez já tenham se cruzado na mesma escada rolante. Ambos dependem da boa vontade dos que passam: alguns ajudam, outros desviam o olhar. Já ouviram de tudo — elogios, piadas, recusas ríspidas. Mas continuam, porque parar não é uma opção. Renan carrega um violão; Dolores, um cooler. Ele entra nos vagões com acordes. Ela sobe e desce escadas com doces. Os dois sustentam suas casas enquanto tentam manter vivos seus próprios planos. Ele tem 24 anos. Cresceu na zona leste da cidade, num sobrado simples onde morava com a mãe, a irmã e os avós. Foi com o avô que aprendeu os primeiros acordes, ainda criança. A música, naquele tempo, era passatempo e afeto. Mas, nos últimos anos, virou renda. Depois que o pai deixou a família, Renan assumiu parte das despesas da casa junto com a mãe, que trabalha como auxiliar de limpeza.

A rotina dele começa no fim da manhã. Sai de casa com o violão nas costas e o bilhete único carregado apenas até a metade do trajeto. Entra no vagão geralmente entre as estações Artur Alvim e Barra Funda. Antes de tocar, se apresenta: diz que não está ali para incomodar, mas para levar um pouco de leveza. Toca por cerca de 10 minutos, muda de linha, repete a rota. O que arrecada, entre moedas e notas dobradas, ajuda a pagar as contas e a guardar algum valor para tentar entrar na faculdade. O plano era cursar Música, mas a insegurança o levou a pensar em Administração. Algo com mais “garantia”, segundo ele.

Do lado de fora dos vagões, mas ainda dentro do sistema, circula Dolores. Ela tem 38 anos, dois filhos e uma geladeira azul de plástico com uma alça que já precisou remendar mais de uma vez. Trabalhou durante anos como cozinheira num restaurante, mas foi demitida no início da pandemia. Desde então, nunca mais conseguiu um emprego formal. Foi numa conversa com uma amiga que surgiu a ideia dos alfajores. Começou fazendo para vender na vizinhança, depois passou a circular pelo metrô.

Dolores não tem ponto fixo. Sobe e desce escadas, anda pelos corredores das estações maiores — principalmente Butantã, região em que mora. Dentro do cooler, leva em média 40 alfajores por dia, de sabores variados: doce de leite, brigadeiro e beijinho. Acorda às 4 da manhã para preparar tudo, antes de acordar o filho mais novo, de 8 anos, e levá-lo à escola. O mais velho, de 16, cuida do irmão enquanto ela trabalha. Volta para casa por volta das sete da noite, com os pés cansados e os ombros marcados. 

A venda no metrô não é legalizada. Dolores sabe que pode ser retirada a qualquer momento, mas diz que nunca foi abordada com violência. Evita ficar muito tempo em um só lugar. Não usa uniforme, nem crachá. Veste roupas discretas e usa uma pochete onde guarda o troco. Já precisou correr de fiscalização algumas vezes, mas sempre volta no dia seguinte. Diz que não está roubando, apenas tentando trabalhar. 

Renan já pensou em voltar a tocar nas ruas ou em bares, mas diz que o metrô tem um fluxo mais garantido. A cada vagão, uma nova plateia. Já recebeu elogios emocionados e também já foi ignorado por vagões inteiros. Tem um repertório misto: de Legião Urbana a Tim Maia, passando por músicas autorais que compôs em noites silenciosas no quarto. Uma delas fala da mãe, que nunca parou de trabalhar mesmo depois de três hérnias de disco.

Dolores já pensou em desistir. Quando a massa não dá ponto, quando chove e o movimento é fraco, quando vende menos do que o necessário. Mas lembra dos filhos, das contas de luz atrasadas e da esperança — mesmo pequena — de um dia abrir uma confeitaria. Nem que seja num cômodo da casa. Sonha em voltar a cozinhar sem pressa, com tempo para inventar receitas. Por enquanto, o foco é manter a rotina: fazer, embalar, vender.

Renan também sonha. Ainda pensa em entrar na faculdade, mesmo que com alguns anos de atraso. Vê nos estudos uma chance de sair do improviso. Mas não quer abandonar a música. Gostaria de aprender teoria, composição, talvez dar aulas. Por ora, o que tem é a prática diária: afinar o violão e seguir tocando. Mesmo nos dias ruins, quando a palheta parece pesada e o vagão está lotado de indiferença.

O metrô, para ambos, é meio e fim. É trabalho, mas também lugar de existência. É onde enfrentam os olhares e os silêncios, onde são invisíveis e, ao mesmo tempo, necessários. Se não fosse ali, talvez fosse mais difícil sobreviver. A cidade lá fora é ainda mais dura. No subterrâneo, ao menos há fluxo constante. Cada escada descida é uma tentativa de sustento. Cada vagão tocado, uma aposta. Dolores segue com seu cooler, Renan com seu violão. Não pedem favor. Oferecem: doce ou canção. E esperam, a cada dia, que alguém aceite.

A rotina dos dois revela um recorte da cidade que não aparece nos cartões-postais. Enquanto boa parte da população passa pelo metrô como um simples trajeto, Renan e Dolores vivem dele. Sustentam suas casas, seus planos e, de certa forma, sustentam também o que ainda resta de humanidade nos espaços públicos. São trabalhadores invisíveis, mas fundamentais — peças não reconhecidas de um sistema que depende do esforço silencioso de quem não pode parar.

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