Copa do Mundo Feminina e o futebol feminino no Brasil

A primeira transmissão em TV aberta e o esporte no cenário brasileiro
por
Michelle Batista Gonçalves
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14/11/2023

Chuteira no pé, cadarços amarrados e determinação no rosto. Na escola, Yasmim jogava futebol com raça durante o ensino fundamental, participava dos treinos e também se metia nos jogos masculinos no intervalo. Sua maior inspiração era ver professor e escola estruturados para oferecer um ensino desportivo de qualidade que não se baseava em gênero. Basquete, handebol, vôlei e até mesmo badminton foram os esportes ensinados, mas nada fazia seus olhos brilharem como o futebol.

 

“Desde muito nova, com meus irmãos jogando, eu ouvia que futebol não era coisa de menina, mas na escola eu podia jogar sendo uma [menina].”

 

Por volta da quinta série o sonho de se tornar jogadora começou a florescer. O professor elogiava sua habilidade com a bola e com os pés, apoiava seu desenvolvimento nos treinos e jogos e, por mais que dentro de casa o cenário fosse o completo oposto, a garota se via muito incentivada pelo ambiente escolar. Era apaixonada pelo esporte: acompanhava todos os jogos, de todos os times - mesmo sendo corinthiana - e estava por dentro de tudo o que acontecia na cena futebolística. O futebol era também uma forma de escapar dos problemas que surgiam em casa; era só colocar as chuteiras, ir para a escola, jogar e sentir que tudo o que estivesse alheio àquele momento não existia.

 

Treinava às terças e quintas, durante as aulas de educação física, e durante os treinos de sexta, que foram implementados através de um projeto de incentivo ao futebol feminino na escola em que estudava. A escola criou um outro projeto de ensino de música, o qual Yasmim também integrou, mas que deixou para trás ao ter que escolher entre o esporte ou o trompete, vencendo o primeiro. Religiosamente ela participava de todas as oportunidades que lhe apareciam de praticar, ansiosa e esperançosa que seu objetivo final seria alcançado.

 

Os empecilhos, entretanto, começaram a aparecer ainda cedo em sua jornada. Sem dinheiro para pagar a condução e sem um adulto que a acompanhasse em peneiras de futebol, a única na qual conseguiu ir - acompanhada de uma amiga - não pôde participar por ser menor e estar desacompanhada de um responsável legal e maior de idade, um dia inesquecível de choro e raiva pelo sentimento de injustiça.

 

As peneiras foram deixando de ser uma opção pela falta de dinheiro, de apoio, de um adulto para a acompanhar e a falta de alternativas a se recorrer. Ainda assim, Yasmim continuava a aparecer em qualquer jogo que acontecesse em sua comunidade, mesmo os jogos masculinos acontecendo com maior frequência e os femininos, bem menos, cerca de uma vez ao mês.

 

Gostava de dizer que respirava esporte durante o ensino fundamental - com o apoio da escola e professores -, mas ao ingressar no ensino médio o cenário das aulas de educação física mudou drasticamente, nem a nova escola nem os novos professores estavam tão empenhados no ensino ou desenvolvimento dos esportes à maneira que estava acostumada e, com 15 anos o esporte foi começando a sair da prioridade, pois a conta era simples: arranjar um emprego ou passar fome, e o futebol não se encaixava na equação.

 

Não só ela como seus irmãos mais novos começaram a se preocupar com os problemas que tinham em casa e o esporte foi ficando para segundo plano. Yasmim costumava jogar bola todos os dias na quadra de sua comunidade, mas este hábito teve de ser interrompido por buscas de emprego e bicos, diminuindo a frequência a três dias na semana. Com as responsabilidades que a escola também trazia, a quantidade de dias recuou para dois, até não ser mais possível praticar. O sonho foi ficando cada dia mais distante e, com um avô bastante religioso, foi aconselhada a arrumar um trabalho ou curso, pois “futebol é coisa de homem, deixa isso para lá”.

 

E ela realmente deixou, não por influência ou falta de personalidade, mas por não ter tido oportunidades que, mais facilmente, são ofertadas a meninos e homens. Seu irmão mais novo, por exemplo, de onze anos, hoje joga futebol, vai à treinos, frequenta uma escolinha e recebe grande apoio da mãe, situação que foi muito diferente para Yasmim. “Meninos também ouvem muito ‘Ah, você joga futebol? Vai estudar!’, mas é muito mais fácil uma menina ouvir isso do que um menino”.

 

A desistência foi acontecendo aos poucos, havia tentativas de ida aos treinos, de participar de jogos com o time da comunidade, até o momento em que ficou dois meses sem conseguir pisar os pés numa quadra de futebol e, quando o fez, percebeu dolorosamente que já não era mais a mesma coisa, que já não tinha mais como realizar o sonho de ser jogadora de futebol.

 

A história de Yasmim é uma dentre milhares de exemplos parecidos no Brasil, mas a transmissão da Copa do Mundo de Futebol Feminino na TV aberta brasileira e o investimento crescente que tem acontecido em times femininos da modalidade como o Corinthians, Ferroviária e Palmeiras, mostra que há um cenário diferente e mais otimista para as futuras jogadoras.

 

Em entrevista ao Uol, Marta, a rainha do futebol, e que jogou sua última Copa este ano, reforça a importância do esporte feminino no Brasil: “Eu não tinha uma ídola no futebol feminino. Como eu ia entender que eu poderia ser uma jogadora, chegar à seleção, sem ter uma referência? Hoje a gente sai na rua e os pais falam. ‘Minha filha quer ser igual a você’. Hoje temos nossas próprias referências. Não teria acontecido isso sem superar os obstáculos. É uma persistência contínua”.

 

A Copa do Mundo Feminina de 2023 foi a primeira a ser transmitida em TV aberta no Brasil, vale lembrar que a Seleção Brasileira de Futebol Feminino jogou em todas as nove edições do torneio, o que traz uma observação de Yasmim sobre o tema: “Eu acho que a TV aberta transmitir a Copa Feminina foi muito bom, mas acho que talvez o governo e a população não estejam fazendo seu papel. Quando acontece a Copa Masculina [de futebol] o Brasil para, ninguém trabalha em dia de jogo, ninguém respira em dia de jogo, todo mundo assiste o jogo centrado! Na Copa Feminina ninguém nem sabia o placar dos jogos, não sabiam quais jogadoras estavam jogando! Se você perguntar na rua quem ganhou a Copa [feminina de futebol] ninguém vai saber, e até mesmo mulheres. Foi uma iniciativa muito boa, mas ainda precisa melhorar muito para ser acessível para todo mundo”.

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