Por Ana Luiza Pêgo
Já passam das onze horas da noite para os brasileiros. Do outro lado do Atlântico, em um pequeno ponto no mapa, o sol se levanta para os moradores do pequeno Catar. Certamente, o fuso horário de seis horas a mais não se mostra tão relevante para o País do futebol, ainda mais quando o assunto é um daqueles que só aparece de quatro em quatro anos. Copa do Mundo. Nunca antes o evento havia sido sediado em um país tradicionalmente islâmico. Logo, desde 1930 o povo muçulmano espera para se ver como anfitrião dos jogos mais aguardados pelos fãs de futebol. O Catar saiu na frente e terá a honra de receber os milhares de turistas, vindos de todos os lugares do mundo, que buscam participar de uma das maiores integrações entre povos, culturas e dessa vez, principalmente religiões. Muito além dos trajes, o Islã estabelece costumes diferentes em diversos aspectos, o que pode ser um choque para os visitantes. Não que não existam brasileiros e fãs de futebol muçulmanos, porém para qualquer um habituado com as tradições ocidentais e usualmente judaico cristãs, essa será uma Copa diferente.
Pensar em futebol e não associar aos copos de cerveja na mão dos torcedores é quase impossível. Bebidas alcoólicas em partidas de futebol são presenças quase tão confirmadas quanto as dos próprios jogadores. Seja nas horas anteriores a um jogo, nos entornos do estádio, nas arquibancadas ou até mesmo nos momentos após a disputa. Mas, mesmo no calor do deserto do Catar, nos meses de novembro e dezembro, o cenário será um pouco diferente. O país que tem o Islã como religião oficial, não permite o consumo de álcool em lugares públicos e só autoriza a comercialização em estabelecimentos específicos.
Berthold Trenkel, chefe da Dubai Corporation Tourism disse que fora das chamadas zonas de fãs “haverá algumas [áreas] onde eles vão disponibilizar [álcool] e outras onde não”. Além disso, milhares de torcedores da Copa do Mundo poderão acampar em barracas no deserto e beber nas fan zones, provavelmente em alguns dos pontos mais emblemáticos de Doha, disse Trenkel. Ele espera que as zonas de fãs - onde foi confirmado que os visitantes poderão consumir álcool - abram em alguns dos locais mais espetaculares do centro de Doha, incluindo o Al Bidda Park à beira-mar e o Souq Waqif Park, um local popular entre os moradores locais para assistir o pôr do sol na cidade.
Bebidas alcólicas já sâo servidas em hotéis e clubes no Catar e durante o torneio será permitido em alguns locais e zonas de fãs, de acordo com o Comitê Supremo de Entrega e Legado (SCDL), o órgão governamental responsável pelo torneio. Entretanto o Comitê alerta aos visitantes que “a embriaguez pública e o consumo de álcool em locais públicos não são permitidos”. Acrescentando que “embora o álcool não faça parte da cultura local, o Catar é um lugar hospitaleiro e atenderá a todos os fãs que desejam desfrutar de álcool com responsabilidade”. Mesmo assim, ainda não está claro se será possível beber fora das zonas de fãs, em lugares como a vila cultural de Katara ou o popular calçadão à beira-mar de Corniche, onde estão planejados entretenimento, música ao vivo e food trucks pop-up. E isso terá um custo que pode ser bastante salgado para os torcedores.
Espera-se que os preços de um copo de cerveja sejam superiores a 10 euros. O valor base se dá após um teste bem-sucedido de fan zone para 40 mil pessoas na Copa do Mundo de Clubes da FIFA Qatar 2019. Para se ter uma ideia, um copo de cerveja vai custar cerca de R$ 60. Isso já permite pensar nos elevados preços de outros produtos, sobretudo por conta da "inflação" natural causada pelo evento.
Tiago Leme, jornalista esportivo que já cobriu eventos no país, entende que as bebidas estarão sim presentes, porém em menor proporção se comparado às últimas Copas, sediadas na Rússia e no Brasil. Leme aponta que no Qatar, os bares e boates que têm permissão para vender bebidas alcoólicas, normalmente, ficam dentro de grandes hotéis internacionais. Nesses lugares é possível encontrar cerveja, vodka, whisky e outras bebidas mais comuns. “É caro para beber álcool no Catar, mas tem” completa o jornalista.
Já para Aline Susanj, brasileira e guia turística no Catar, a proposta é de um evento bem diferente dos anteriores. A brasileira confessa estar empolgada de viver e celebrar o evento em um país diferente. Apesar de admitir que a questão das bebidas alcoólicas ainda é, de certa forma, uma “incógnita”, Susanj afirma que “a ideia é mostrar ao mundo um evento de grande porte mantendo as tradições locais”.
INFRAESTRUTURA E HOSPITALIDADE
Com certeza um dos pontos altos dessa Copa é o investimento feito em mobilidade. Não é novidade que o Catar é um país pequeno, a capital Doha, sede de quase todos os jogos, é, obviamente, ainda menor. Em dimensões, o país inteiro é duas vezes o tamanho da cidade de Brasília, em Goiás. Porém, os árabes usaram esse fator de maneira positiva. O país espera cerca de um milhão de turistas durante os dias do evento. Além disso, a promessa é que os torcedores consigam ver até três jogos no mesmo dia por conta dos meios de transporte recém inaugurados por lá. Então, se um fã decidir que quer ver seis seleções em campo no mesmo dia, ele vai poder. Basta disposição para desbravar os ônibus e vagões do metrô e definitivamente, um orçamento mais robusto.
Por lá, em Doha, o sistema de metrô é rápido e sem motoristas. Além de uma classe Gold para passageiros premium. Definitivamente é um dos sistemas de metrô mais avançados já desenvolvidos no mundo. Construído principalmente no subsolo e em toda a capital Catar e nos subúrbios, a rede está em operação desde 2019, fornecendo uma alternativa de transporte confiável em uma cidade em rápida expansão, onde os moradores dependem há muito tempo de carros e o tráfego é frequentemente engarrafado.
Inicialmente, os gastos previstos giravam na casa dos US$ 30 bilhões, contudo esse número já duplicou. Somente para o setor de infraestrutura estão sendo destinados US$140 bilhões. Na conta estão oito estádios, 64 centros de treinamento, ampliação da rede hoteleira e IBC (Centro de Imprensa Internacional, na tradução). Porém, Leme enxerga as partes de infraestrutura e logística como as mais complexas para o país. Para ele, o maior desafio está em receber pessoas de 32 nacionalidades diferentes, com culturas e costumes diferentes, em um espaço tão pequeno. “Vai ser difícil arrumar hospedagem para tanta gente, porque desta vez todos os jogos acontecem praticamente em uma só cidade, vai estar todo mundo junto e misturado” disse.
Por outro lado, Francirosy Barbosa, antropóloga muçulmana e professora no Departamento de Psicologia da USP, entende que a partir do momento que os “donos da casa” se disponibilizaram a receber um evento dessa natureza, isso implica em receber pessoas, e essas são diversas em seus costumes e crenças. “A hospitalidade islâmica é conhecida mundialmente, não vejo problemas, porque haverá espaço para todos", reflete a antropóloga. Ela enxerga a Copa como oportunidade para o mundo “conhecer a diversidade, aprender e sobretudo respeitar''. Susanj tem o mesmo olhar sobre a hospitalidade do país. “Os Cataris são bem receptivos, sem dúvida a cultura local deve ser vivida nestes dias de visita ao Catar” diz a guia sobre como devem agir os visitantes.
DEMONSTRAÇÃO DE AFETO EM PÚBLICO
Não é raro lembrar de momentos nos quais os torcedores se empolgam e acabam manifestando certos graus de afetividade durante as partidas. Seja na comemoração de um gol ou durante os intervalos que fazem brincadeiras de “câmera do beijo” nas arquibancadas, por exemplo. Nenhuma norma foi estabelecida ainda e nada está definido sobre a demonstração de afeto em público durante os dias do evento. O que se sabe é que as orientações giram em torno de casais não se beijarem, por exemplo. Para Leme, é possível que para todas essas regras — tanto sobre a manifestação de afeto, quanto para as outras que são contrárias aos costumes muçulmanos — exista um certo relaxamento da fiscalização. “Acho que tudo vai do bom senso, sem exagero de ambas as partes”, completa o jornalista.
Barbosa admite que não se aprofundou ainda nessa questão específica, mas reitera o ponto de vista de Leme. “[...] penso que a orientação seja essa mesmo, de que evitem beijos e abraços calorosos em espaço público” aponta a professora. Em relação à comunidade LGBTQIA+, que pretende viajar ao Catar para celebrar o evento, as regras não serão tão diferentes. A Federação Inglesa de Futebol (FA), ainda no ano passado, garantiu aos torcedores LGBT+ que serão bem-vindos no Catar durante a Copa do Mundo de 2022, apesar da proibição da manifestação da homossexualidade no país.
Anteriormente, o Catar insistiu que “todos são bem-vindos” e anunciou que bandeiras de arco-íris poderão ser exibidas nos estádios em solidariedade à comunidade. O presidente-executivo da FA, Mark Bullingham, disse que recebeu garantias do país. “Recebemos essas garantias de que pessoas das comunidades LGBTQ poderão ir ao Catar e apoiar a equipe” disse o presidente se referindo à seleção inglesa.
Questionado se isso efetivamente significava que a homossexualidade seria temporariamente legalizada durante o torneio, Bullingham disse: “Perguntamos se todos os nossos fãs poderão vir, particularmente aqueles da comunidade LGBTQ, e recebemos a resposta inequívoca de que absolutamente todos são bem-vindos ao Catar.”
No começo desse mês, o posicionamento mudou um pouco. O major-general, Abdulaziz Abdullah --- que é diretor do Departamento de Cooperação Internacional e presidente do Comitê Nacional de Contraterrorismo do Ministério do Interior --- insistiu que os casais LGBTQ seriam bem-vindos e aceitos no Catar para o evento. Porém, Ansari é contra a promoção aberta das liberdades da comunidade, simbolizadas pela bandeira do arco-íris que os organizadores da FIFA e da Copa do Mundo disseram anteriormente que seria bem-vinda nos oito estádios do Catar.
“Se ele [um fã] levantou a bandeira do arco-íris e eu a peguei dele, não é porque eu realmente quero, realmente, insultá-lo, mas para protegê-lo”, disse Ansari. “Porque se não for eu, alguém ao redor dele pode atacar. ... Não posso garantir o comportamento de todo o povo. E eu direi a ele: 'Por favor, não há necessidade de levantar essa bandeira neste momento.' ” aponta o diretor.
Ainda sobre as bandeiras, Ansari é claro. “Você quer demonstrar sua visão sobre a situação [LGBTQ], demonstrá-la em uma sociedade onde ela será aceita”, disse ele. O chefe reforça que essas manifestações de liberdade poderiam "insultar toda a sociedade.”
Logo, a Copa do Mundo tem tudo para ser um evento bem organizado, prático e agradável para aqueles que se dispuserem a ir até o Catar. Os supostos entraves, na realidade, podem ser entendidos como pequenos choques culturais, já que o evento será celebrado em um lugar tão diferente do habitual. Nada que efetivamente atrapalhe a experiência ou afete de maneira negativa a cultura local. A Fifa se mostra disposta a entregar uma Copa repleta de diversidade e respeito e o país sede não se opõe às vontades da federação.
Agora já amanhece no Brasil e em terras Catari o sol se deita. É abril e no outro hemisfério, onde está o Catar, já é primavera. Em poucos meses o tempo vai esquentar ainda mais, afinal será verão no deserto. Mesmo com as tempestades de areia e os termômetros batendo quase 50° é fato que o clima só vai ficar quente de verdade em meados de novembro, mais precisamente, quando os primeiros torcedores desembarcarem prontos para viver a primeira Copa do Mundo em um país muçulmano.