Como a memória do povo preto resiste no bairro da Liberdade

A Capela dos Aflitos e a importância da preservação da história de Francisco José das Chagas, em um território popularmente vinculado à cultura japonesa
por
Nícolas Damazio
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31/05/2022

Conhecido internacionalmente como um pedaço do Japão em São Paulo, não faltam no bairro da  Liberdade elementos estéticos e comerciais que vinculem o espaço a cultura do país oriental. Desde os tradicionais postes de luz vermelhos, presentes em diversas ruas do perímetro, às lojas e restaurantes de produtos nipônicos. Entretanto, este espaço na região central da capital guarda origem que remete mesmo às raízes do Brasil.

 

Com a mudança no nome da estação de metrô para “Japão-Liberdade”, ocorrida em 2018, suscitou-se polêmica a respeito de como o novo nome vinculasse unicamente o bairro ao país e aos imigrantes vindos de lá a partir do início do século XX, acaba por invisibilizar aqueles que ocuparam o território antes desse período, população majoritariamente negra. 

 

Localizada no fim do beco dos Aflitos, pequena travessa da Rua dos Estudantes está a Capela Nossa Senhora dos Aflitos. A pequena igreja, fundada em 27 de junho de 1779, fazia parte do Cemitério dos Aflitos, para onde pessoas com menor poder aquisitivo e indigentes eram levados para serem sepultados. O cemitério acabou engolido pelo crescimento da cidade e a capela, que até hoje resiste como um dos poucos símbolos daquele período na região, há anos clama por um restauro abriga, além da imagem da Santa que dá nome ao local, a memória de Francisco José das Chagas, santo popular conhecido como Chaguinhas. A conservação e manutenção da capela fica a cargo de um grupo de voluntários organizados em um grupo denominado UNAMCA (União dos Amigos da Capela dos Aflitos).

 

Lucas Almeida, 20, técnico em museologia e graduando na do mesmo tema na Universidade Federal da Bahia (UFBA), chegou a Capela dos Aflitos por conta de seu trabalho de conclusão de curso no ensino técnico. Tornou-se membro da UNAMCA e presta acessoria museológica e de conservação no local: “De alguma forma, Santas Almas, o Chaguinhas, a Eliz própria fala isso, que me chamam, e eles chamam a todo mundo (...) Esse território, essa resistência, essa luta negra e indígena que chama as pessoas”. Eliz, citada por Lucas, é Eliz Alves, 58, diretora da UNAMCA e presente quase que diariamente na Capela. Devota fiel de Nossa Senhora dos Aflitos, ela comanda as iniciativas do grupo, além de difundir a história de Chaguinhas e lutar pela preservação do patrimônio material e imaterial presentes no local. 

Lucas Almeida, membro da UNAMCA, em frente a Capela dos AflitosFoto: Bruna Parrillo
Lucas Almeida, membro da UNAMCA, em frente a Capela dos Aflitos. Foto: Bruna Parrillo

 

Chaguimhas foi um cabo do Primeiro Batalhão de Caçadores de Santos, se insurgiu contra os colonos portugueses por conta do não recebimento de seu soldo, no ano de 1821. Identificado pelo governo como líder da revolta, Chaguinhas é trazido à capital juntamente com seu parceiro Cotindiba. O movimento realizado pelo batalhão ficou conhecido como Revolta Naivista. Chaguinhas e Cotindiba foram condenados a forca e o local designado para a punição foi o Largo da Forca, atual Praça Japão-Liberdade. “ Cotindiba tem a sua execução rápida, mas Chaguinhas é enforcado por três vezes, em três tentativas a corda se rompe e ele vai ao chão e se joga a bandeira da misericórdia sobre ele (...) e as pessoas se aglomeraram para ver tudo isso (...) quando a corda se rompe já era tido  como um milagre e aí eles (aqueles que assistiam a execução) pedem por “Liberdade!Liberdade!Liberdade!”, mas o império como estava punindo ele exemplarmente , nega. E ele acaba sendo executado”, narra Eliz. E viria deste clamor por liberdade por parte da audiência que presenciou a condenac1ão e, consequentemente, o milagre vivido por Chaguinhas, a origem d nome do bairro. 

 

Eliz Alves, diretora da UNAMCA Reprodução: Acervo pessoal
Eliz Alves, diretora da UNAMCA. Reprodução: Acervo pessoal

Todavia, a história de Chaguinhas  é ao mesmo tempo contada pela oralidade. Há escassez na documentação necessária para que ele possa ser canonizado pelo Vaticano. Manter Chaguinhas vivo, por meio da preservação de sua história é lembrar da origem do bairro, habitado no século XIX por pessoas pretas. Que não habitavam o local por escolha, mas por encontrar ali um local onde os brancos ou os mais endinheirados não queriam morar. “A Liberdade tinha todo o processo de punição dentro dela  era casa da câmara onde hoje é o Largo da Praça João Mendes, era o Pelourinho onde hoje é o Largo Sete de Setembro, a forca onde hoje é a Praça da Liberdade, o Largo da pólvora, quem quer morar do lado da cadeia?  Quem quer morar onde pode ir pros ares a qualquer momento?”, complementa Eliz.

 

A origem do bairro é, assim, uma origem dura. Marcada, como tantas outras regiões de São Paulo e do Brasil, por fortes resquícios da escravidão. A manutenção de locais símbolo, como a Capela dos Aflitos mantêm presente aqueles que por la passaram antes do Kasato Maru, navio responsável por trazer os primeiros imigrantes japoneses ao Brasil aportar no país. Para Eliz e Lucas, uma cultura não deve se sobrepor a outra. E como não faltam na região referencias explicitas aos laços com o oriente, é necessário afirmar e reforçar a origem preta do bairro.  “(...) uma história que precisa ser apagada? Esquecida? Não, ela tem que ser valorizada, é a história do nosso povo, da nossa gente, da nossa gente humilde”, conclui a diretora da UNAMCA.

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