Por Beatriz Yamamoto
Numa terça-feira à noite, no bairro do Sumaré, o restaurante Congolinária chama atenção ao apresentar a culinária do Congo, pouco conhecida no Brasil. Na entrada, um carrinho cheio de discos de vinil pode causar estranhamento, mas uma placa ao lado da escada indica que ali funciona o restaurante, cujo slogan é “descobrindo os sabores do Congo”. Ao subir, quem chega encontra paredes decoradas com desenhos, obras de arte e reportagens sobre o restaurante, que ocupa um espaço pequeno e acolhedor, com poucas mesas. Naquela noite, o salão estava vazio.
Próximo da cozinha, um homem confirmou que aquele era o restaurante e explicou que o espaço inferior funciona como um bar chamado Fatiado Discos. Só depois descobri que seu nome era Jean. Seu sotaque estrangeiro aumentava a curiosidade sobre a experiência. Sentei e fui ver o cardápio que, além de pratos à la carte, oferece um rodízio que promete uma experiência completa da culinária afro-congolesa, com pratos servidos à vontade. O pedido foi feito diretamente ao cozinheiro Jean, que passou a servir as panelinhas, explicando o preparo de cada prato.
A refeição começou com uma moqueca de banana acompanhada de farofa de amendoim, cremosa e com textura que lembrava peixe, muito parecida com a versão baiana. Em seguida, foram servidos arroz de coco com fufu e couve refogada ao estilo africano; kwanga com madasu, um feijão branco temperado; e o destaque da noite, nhoque de banana-da-terra com molho de shimeji e cenoura, levemente tostado e aromático. Para finalizar, chegaram dois salgados crocantes, kachori e sambusas, recheados com especiarias.
As comidas eram muito temperadas, e aos poucos fui percebendo muitas semelhanças entre a culinária congolesa e a brasileira. Conversando um pouco com Jean, ele explicou que as duas compartilham muitos ingredientes — arroz, feijão, banana, mandioca e saladas —, mas diferem no modo de preparo e nos temperos, que trazem influências africanas marcantes, especialmente do Nordeste brasileiro, como a Bahia. Durante a refeição, um casal entrou interessado em conhecer mais sobre o Congo. Jean os atendeu antes de retomar a conversa sobre sua trajetória pessoal.
Jean-Pierre, 26 anos, é natural de Boma, cidade do Congo atualmente sob controle de rebeldes. Chegou ao Brasil antes do agravamento do conflito, após a vinda de seu pai, que buscava refúgio por perseguições decorrentes do seu trabalho em ONGs. Ele denunciava casos de violência contra mulheres e crianças e trabalho infantil, o que incomodava o governo. Perseguido, seu pai conseguiu uma brecha para fugir para o Brasil.
Aqui, ele não pôde exercer a profissão devido às dificuldades de reconhecimento do diploma. Após tentativas frustradas, optou por fazer outra faculdade, tendo se formado recentemente. Jean veio com visto regular, concedido pela embaixada brasileira, e se adaptou bem à vida em São Paulo, cidade onde vive até hoje, com passagens pelo Rio de Janeiro, Bahia e Fortaleza.
Jean trabalha no restaurante, mas quem toca a cozinha é seu primo, o chef Pitchou Luambo, também refugiado, que começou o restaurante quando ainda funcionava apenas para eventos. Em 2016, decidiram abrir um espaço fixo para falar sobre a cultura e aproximar as pessoas da comida. Ele explicou que era filho único no Congo, mas ganhou irmãos após a chegada ao Brasil, totalizando quatro filhos no total. Antes de se dedicar à cozinha, estudava engenharia mecânica, curso que precisou trancar para focar em tecnologia da informação. Mesmo assim, afirmou que sempre cozinhou, aprendendo ainda pequeno com os pais, uma prática comum no Congo, onde os jovens precisam se virar cedo.
Jean relatou sentir falta dos amigos que ficaram no Congo, com quem mantém contato por mensagens, mas ressaltou que gosta de viver no Brasil, onde tem amigos brasileiros, participa de uma pequena comunidade congolesa e joga futebol às quartas-feiras com outros conterrâneos. Também mencionou que seu primo, dono do Congolinária, ajuda refugiados na regularização de documentos e na busca por apoio.
Falou sobre a questão da língua: aprendeu português cedo, destacando que as línguas latinas não são difíceis, mas, ao chegar ao Brasil, teve que se adaptar porque seus irmãos só falavam português. No Congo, as línguas mais comuns são o inglês e o francês, mas, na verdade, existem mais de 200 línguas no Congo. Ele brincou comigo e me ensinou algumas palavras em suaíli, como “Minutia lu jina ya Beatriz”, que significa “me chamo Beatriz”.
Jean afirmou que, de algum modo, a gastronomia ajudou nesse processo de adaptação. Mesmo sem foco exclusivo na cozinha, para ele a comida é uma maneira de contar a história de onde se veio e representar a identidade e o peso cultural. No Congo, explicou, quando a pessoa chega em casa, há sempre algo sendo preparado; ninguém sai sem comer, pois cozinhar faz parte do dia a dia. No Brasil, perceberam que preparar uma comida que atraísse as pessoas e contar um pouco da história do país de origem motivou a criação do restaurante fixo, para compartilhar e aprofundar esse conhecimento e vivência cultural.
Além disso, ele reforça que a comida é um ato político. Por meio dela, é possível preservar memórias, reafirmar identidades e resistir diante das dificuldades de uma nova vida em outro país. Cozinhar e servir esses pratos é também uma forma de afirmação cultural, um convite para que outros conheçam e reconheçam a história e o valor de uma comunidade que, mesmo distante de sua terra natal, mantém vivas suas raízes por meio dos sabores. Mais do que uma refeição, a experiência no Congolinária representa um encontro com sabores, histórias e memórias que conectam Brasil e Congo numa mesma mesa.