Por Guilherme Nazareth
Numa segunda-feira friorenta de São Paulo, Wilson começa o dia a pleno vapor distribuindo materiais reciclados pelo galpão. Seu olhar curioso repara a presença de qualquer um na cooperativa de reciclagem próxima à estação Sumaré. Percebe, em instantes, que vai compartilhar sua história. Com 27 anos, mostra um cartaz que detalha os objetos aceitos na cooperativa, que vai muito além de latinhas: garrafas plásticas, papelões e até eletrodomésticos. Ele não tem preferência pelo que coletar. Qualquer material que rende algum trocado vale a pena. A atividade, no entanto, não é isenta de riscos. As cicatrizes em suas mãos são testemunhas de cortes causados por objetos pontiagudos encontrados nas ruas, um lembrete constante da sua luta diária pela sobrevivência.
Enquanto ajusta sua carroça improvisada, que consiste em dois carrinhos de mercado atados com fios de cobre e decorados com adesivos, Wilson expressa preocupação com a possibilidade de chuva. Um dia chuvoso significa perda de trabalho, e não tem o luxo de esperar. Caminhando para a Avenida Paulista ele conta sobre sua vida nas ruas e as lembranças de quando tinha uma casa. Wilson recorda de um tempo em que vivia com a família e sonhava em ter um emprego estável, mas a realidade o forçou a abandonar esse desejo. As dificuldades financeiras o levaram a se tornar catador.
Ele disse que trabalhava em um emprego de transporte de carga, mas o salário mal cobria suas despesas. Agora, mesmo coletando, se depara com desafios adicionais, como a queda acentuada nos preços dos materiais recicláveis. É necessário coletar mais de 259 quilos de latinhas apenas para conseguir um salário mínimo. Frustrado, reclama da fiscalização policial que muitas vezes confisca suas cargas, deixando-o desolado.
Durante a conversa, a chuva começou a cair, e Wilson, habituado a transitar entre os veículos, não se deixou abater. A vida na rua exige resiliência e determinação. Ele comenta sobre como a falta de compreensão da sociedade em relação ao trabalho dos catadores o deixa desanimado, mas ele se lembra das amizades que fez ao longo do caminho. Os outros catadores, com quem compartilha as ruas, tornaram-se uma espécie de família para ele.
A rotina de Wilson se divide entre os dias de coleta e as noites em que tenta encontrar um abrigo. Mesmo com todas as dificuldades, há um brilho em seus olhos ao falar sobre seus planos para o futuro. Ele sonha em conseguir um emprego fixo, quem sabe até mesmo na própria cooperativa, onde poderia ajudar a organizar a coleta e oferecer apoio a novos catadores. Esse desejo de transformação é o que o motiva a continuar lutando.
A difícil realidade de Wilson é a mesma que enfrenta Álvaro, um catador de 32 anos, que sai do Piqueri e passa boa parte do dia catando latinhas no centro de São Paulo. Assim como Wilson, ele também havia deixado um emprego anterior que não cobria suas despesas. Ele explicava que trabalhava em um armazém, mas o salário mal dava para pagar o aluguel. A coleta de materiais recicláveis passou a lhe trazer uma renda melhor, o que representa há mais de dez anos um traço de alívio em sua vida.
Todos os dias, Álvaro acorda antes do amanhecer. As primeiras horas da manhã são as mais produtivas, quando as pessoas ainda estão dormindo e os descartes nas ruas são mais abundantes. Com uma carroça projetada com e construída com madeiras pregadas, ele se aventura pelas ruas do centro, sempre atento ao que pode encontrar. O caminho até a área comercial é uma jornada que ele conhece bem, cheia de atalhos e lugares estratégicos onde o lixo se acumula mais cedo.
Álvaro leva suas coletas para um local chamado Russo, uma cooperativa de reciclagem que se tornou um segundo lar para ele. Ali, ele tem amizades que leva para a vida inteira. No ambiente acolhedor da cooperativa, os catadores trocam histórias, experiências e, muitas vezes, risadas. É um espaço onde as lutas individuais se tornam coletivas, e cada um se apoia no que pode. Álvaro comenta que, no Russo, encontrou um suporte emocional que nunca teve em trabalhos passados. O pessoal é solidário, e todos entendem o que cada um passa diariamente.
A cooperativa, portanto, se tornou sua segunda casa, aliás, muitas vezes considera sua primeira casa. Ao longo dos anos, a relação quase parental com outros presentes no Russo renderam até mobilizações e atividades em prol de campanhas para conscientizar a população sobre a importância da reciclagem, e isso se tornara uma fonte de orgulho para todos.
Álvaro decidiu que a aspiração profissional que almeja está no ramo das coletas. Não imagina ser feliz e eficiente em outra área. Há anos, carrega consigo seu maior sonho de vida: abrir um pequeno negócio, algo relacionado à reciclagem, que pudesse juntar os seus irmão do Russo. Ele imagina esse espaço com atividades que pudesse ensinar as crianças sobre o que diz ser a essência da coleta, o bônus "invisível" a sociedade dessa ação. Esse desejo se tornou muitas vezes sua escapatória emocional nas horas difíceis, quando volta para Piqueri sem o rendimento esperado.
Mas os momentos bons são que dão voz no seu dia a dia. Ele lembrara uma vez ter conseguido um dos maiores volumes de latinhas da sua vida num passado carnaval no Anhangabaú. Conseguiu reunir mais de 600 latinhas num único dia. Não se abalou em ver todos comemorando, dançando ou chorando na folia enquanto explorava latinha em cada canto que pudesse ter.
Assim como Wilson, Álvaro cita que atualmente os desafios são maiores. A cada ano tem uma percepção de retorno financeiro piorando com a coleta à queda dos preços dados aos materiais que entrega. Quando olha os seus companheiros visualiza a mesma situação de de decadência progressiva.
O medo de ter suas coletas confiscadas pela polícia também é um tema comum em suas conversas. Álvaro já trata como rotina voltar para o Russo ou para a sua casa com a frustração de ver seu esforço ser desmantelado por uma ordem que parecia não ter humanidade, e se recorda de uma vez que quase colocou sua vida de cabeça para baixo. Ele lembra de uma vez em que, após uma longa jornada exaustiva no entorno da rua 25 da março, teve toda sua carga retirada por um guarda municipal, com a certeza absoluta que seu olhar um pouco desviado foi o maior motivo para o guarda ter arrancado as suas coletas. Neste dia, se culpou por inteiro. Sentiu muito mais que uma frustração recorrente, uma enorme impotência sobre o mundo afora, estava beirando a largar a coleta e seu lar em Piqueri e não pensar no futuro.