Por Bianca Novais
Roupas de tecido leve perfeitamente brancas, guias de contas coloridas - vermelhas, pretas, brancas, verdes - e pés descalços. Kaio Souza, doutor em Química Orgânica de 32 anos, “bate a cabeça” antes de entrar no solo sagrado do terreiro de Umbanda Instituto Ogum Beira-Mar, para iniciar a gira. Bater cabeça é o nome da reverência dos médiuns antes de adentrarem o espaço onde as entidades podem se conectar com segurança com seus filhos. Algo como o sinal da cruz que os católicos fazem ao entrar numa igreja e se depararem com a imagem de Jesus Cristo crucificado. Kaio conhece bem os dois costumes. Ele diz ter feito todo o processo litúrgico do sacramento do catolicismo e batizado. Fez a primeira eucaristia, o crisma, foi catequista e coroinha. Muitos anos da sua vida - até uns 20, mais ou menos -, viveu dentro da igreja católica. Mas tinha uma veia científica.
Interessado por ciências desde criança, Kaio começou a graduação em Química pela Universidade Federal de São Paulo e o aprofundamento no mundo científico serviu não para afastá-lo de sua espiritualidade, mas para reforça-la. Ele começou a se tornar uma pessoa mais reflexiva. A faculdade lhe ajudou a desenvolver senso crítico, o que o levou a ver coisas dentro da igreja que não faziam mais sentido para ele.
Kaio começou a notar atitudes de pessoas de liderança em sua paróquia que iam totalmente em desencontro com aquilo que elas estavam pregando. O cristianismo, de uma forma geral, levanta a mensagem do amor e da atenção ao próximo - na teoria; de acordo com a Bíblia, com os Evangelhos. É nisso que se baseiam os ensinamentos de Jesus, embora uma boa parte do "fã-clube", dos seguidores, dos cristãos - tanto os católicos quanto evangélicos - não siga tão à risca a doutrina de amar o próximo e da caridade. Atitudes que estão presentes também em outras religiões.
A caridade é o pilar principal da Umbanda. Todo o propósito gira em torno da doação ao próximo, seja em nível espiritual - com os atendimentos e passes realizados pelos médiuns incorporados de suas entidades - ou em nível material - de alimentos, roupas e trabalho voluntário. Kaio diz que sempre teve essa essa coisa de querer ajudar as pessoas de alguma forma. Embora no catolicismo fizesse isso, sentiu que na Umbanda poderia faze-lo de uma maneira mais efetiva. Ele conta que, em seu terreiro, todos recebem ajuda. Se a pessoa está lá, dentro do terreiro, procurando e precisando de ajuda, eles atendem. Também em sua linha de pesquisa, Kaio se direciona a ajudar o próximo. Ele investiga as características moleculares da endometriose, doença que acomete somente pessoas com útero, a fim de promover o desenvolvimento de fármacos mais assertivos. Sua curiosidade de cientista o ajudou a achar outras religiões.
A transição de crenças, contudo, não foi automática. Ele sempre foi muito curioso com mitologias em geral. Ele conta que gosta muito de mitologia grega, greco-romana, egípcia, celta, nórdica... E então conheceu a mitologia Iorubá e achou fantástica. Foi quando começou a ler e estudar um mais sobre as divindades do panteão. Após um período de questionamentos, tanto sobre as práticas cristãs quanto sobre sua própria identidade, foi graças à ciência que Kaio reencontrou sua fé, através de uma amiga da faculdade.
Ela tinha recém se iniciado no Candomblé e acabado o período de recolhimento. Um dia, ela o convidou para um toque de Candomblé na casa do avô de santo dela e Kaio aceitou na hora. Era uma festa ritualística chamada "fogueira de Xangô", que ele descreveu como festa linda. Xangô, na cultura Iorubá, é o Orixá do Fogo e da Justiça. A festa em sua homenagem acontece, no Brasil, no mês de junho, não por coincidência no mesmo mês em que é celebrado São João, também com fogueiras - são entidades sincretizadas no país. A Umbanda também cultua Xangô e os outros Orixás de origem Iorubá e Nagô, apesar de ser outra religião - assim como catolicismo e protestantismo. Mesmo descobrindo sua identificação com a religiosidade afro-brasileira através do Candomblé, foi na Umbanda que Kaio encontrou seu caminho espiritual. Como cientista, ele estava acostumado a confiar em evidências empíricas e raciocínio lógico. No entanto, se viu acolhido pelos aspectos espirituais da Umbanda.
Cinco anos atrás, após uma semana complicada no trabalho, com o psicológico e o emocional fragilizados, Kaio se deparou com uma publicação no Instagram do terreiro do qual faz parte hoje. Era um convite para uma gira que teria no mesmo dia. O terreiro ficava no caminho entre seu trabalho e onde morava na época, então decidiu conhecer o local. Desde o momento em que chegou, foi extremamente bem recebido pelas pessoas que estavam ali na porta, fazendo o trabalho de acolhida. Sendo sua primeira vez, foi instruído sobre como funciona a dinâmica da casa, além de tomar um passe e se consultar com uma entidade.
Passe é o trabalho de limpeza espiritual que os médiuns realizam através da energia das entidades incorporadas. A prática também é realizada no espiritismo, religião cristã, mas com fundamentação diferente. O espírito com o qual estava se consultando pediu para que ele fechasse os olhos e se concentrasse. Essa foi a primeira vez que Kaio sentiu a energia de um de seus guias espirituais. Ainda assim, o lado cientista não saiu de cena e seu hábito do questionamento precisou ser convencido de que aquele terreiro era seu lugar.
Para ele, fé e ciência nunca foram mutuamente exclusivas. Kaio diz que não é o tipo de "cientista ateu" ou o que não acredita em nada que não possa provar. Ser cientista o torna pé no chão - ele precisa ver para crer. Só que, em seu relato, ele agradece aos seus guias pela generosidade em facilitar o ver e o crer. Seu sincretismo entre ciência e fé não é um problema para ele. No trabalho com a ciência, ele é extremamente crítico e cético; Quando entra no terreiro, ele se dedica à evolução espiritual.