Catedral da Sé mistura fé com humanidade

A Catedral da Sé não é apenas um marco arquitetônico. É um testemunho vivo da história religiosa, cultural e política do País.
por
Renan Barcellos
|
21/10/2024

As Primeiras Igrejas e o Início da Construção 

A história da Catedral da Sé começa em 1554, quando os jesuítas fundaram a cidade de São Paulo no planalto de Piratininga. Naquele mesmo ano, a primeira igreja matriz foi erguida em um local próximo ao atual endereço da catedral, para servir à pequena comunidade de colonos e índios catequizados. Essa primeira estrutura era simples, feita de taipa de pilão, mas já representava o centro espiritual da nova vila. 

Ao longo dos séculos, a cidade de São Paulo cresceu e se desenvolveu, e a pequena igreja matriz foi substituída por outras construções maiores e mais elaboradas, à medida que a população aumentava e as necessidades da comunidade se tornavam mais complexas. No entanto, foi apenas no início do século XX que o projeto de uma catedral grandiosa e moderna começou a tomar forma. 

Em 1913, sob a orientação do arquiteto alemão Maximilian Hehl, a construção da atual Catedral da Sé foi iniciada. Inspirada no estilo neogótico, que havia se popularizado na Europa no século XIX, a catedral foi concebida para ser uma das maiores igrejas do mundo, com capacidade para abrigar milhares de fiéis. A escolha do estilo neogótico foi uma tentativa de conectar São Paulo com as grandes catedrais europeias, expressando ao mesmo tempo a modernidade e a tradição. 

 

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Catedral da Sé em seu processo de construção (1947) - Werner Haberkorn

A construção da catedral foi um empreendimento colossal que enfrentou inúmeros desafios ao longo das décadas. O progresso era lento, muitas vezes interrompido por falta de recursos financeiros e por dificuldades técnicas. No entanto, a persistência da comunidade católica de São Paulo e a visão de seus líderes religiosos mantiveram o projeto vivo. Em 1954, após mais de 40 anos de trabalho, a Catedral da Sé foi finalmente consagrada, coincidindo com o quarto centenário da fundação de São Paulo. A cerimônia de consagração foi um evento grandioso, que atraiu milhares de pessoas e marcou um momento de orgulho e realização para a cidade. 

A Catedral como Centro de Resistência Durante a Ditadura Militar 

A Catedral da Sé é mais do que a história de um edifício. Ela é também a história das pessoas que a frequentaram, das celebrações que abrigou e dos momentos cruciais que presenciou. Um dos seus principais foi o período da Ditadura Militar, que marcou o Brasil de 1964 a 1985. Durante esses anos de repressão política, a Catedral da Sé desempenhou um papel crucial como um espaço de resistência e de luta pelos direitos humanos. 

A Igreja Católica no Brasil teve uma postura ambivalente durante o regime militar. Enquanto alguns setores da Igreja apoiaram o governo autoritário, outros, especialmente liderados pela ala progressista da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), tornaram-se defensores fervorosos dos direitos dos perseguidos políticos. A Catedral da Sé, sendo a principal igreja de São Paulo, tornou-se um símbolo dessa resistência. 

Os padres que serviam na catedral frequentemente utilizavam suas homilias para denunciar as injustiças cometidas pelo regime, mesmo sabendo que estavam sob constante vigilância. As missas celebradas em memória dos desaparecidos políticos eram momentos de profunda comoção e de coragem. Era comum que a catedral se enchesse de fiéis, muitos dos quais participavam desses atos litúrgicos como forma de protesto silencioso contra a opressão. 

Em entrevista, Rosa dos Santos, uma funcionária que trabalhou na sacristia da catedral por décadas, incluindo durante a Ditadura Militar, mesmo sendo nova na época, relembra com emoção as vezes que via famílias desesperadas buscando informações sobre parentes desaparecidos. Ela ainda fala que, por conta da sua idade, ainda não tinha dimensão do que era uma ditadura. Afirmando que as igrejas eram, muitas vezes, o único lugar onde se encontra conforto. A cada missa, era perceptível a dor de uns e as esperanças de outros. Não se limitava a uma questão de fé, mas sim de humanidade.

Além das missas, a catedral também foi palco de grandes manifestações públicas. Um dos eventos mais memoráveis foi a "Missa da Anistia", celebrada em 1975, que reuniu milhares de pessoas em prol da libertação dos presos políticos e da volta dos exilados. Esse evento marcou a Catedral da Sé como um centro de luta pela liberdade e pelos direitos civis em uma época em que falar contra o regime era extremamente perigoso, ocorrendo uma semana após o assassinato do jornalista Vladimir Herzog, morto pelos militares no DOI-CODI.

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Missa da Anistia (1975) - Arquivo Público do Estado de São Paulo

Seu João, filho de um homem que cuidava da manutenção da catedral naquela época, recorda das falas de seu pai que relatavam sobre os desafios de manter o local funcionando em meio à tensão. Quando a polícia aparecia, querendo saber o que estava acontecendo, eles tinham que ter muito cuidado. Não podiam deixar que eles vissem as coisas que se organizavam aqui dentro. Era arriscado, mas quem estava aqui dentro sabia que era o certo a fazer. A catedral era o refúgio de muitos.

A coragem de padres, funcionários e fiéis que resistiram ao regime militar é uma parte vital da história da Catedral da Sé. Mesmo sob ameaça constante, a igreja permaneceu firme em seu compromisso com a justiça e a dignidade humana, tornando-se um farol de esperança em tempos de escuridão. 

Além do mais, catedral desempenhou um papel central no Comício das Diretas Já, realizado em 25 de janeiro de 1984, no marco zero de São Paulo. Localizada na Praça da Sé, foi testemunha de um dos momentos mais significativos da luta pela redemocratização do Brasil. Mais do que um simples cenário, simbolizou o apoio moral e espiritual ao movimento, abrigando multidões que clamavam pelo fim da ditadura militar e pela restauração do direito ao voto direto para presidente. A Praça da Sé se tornou o epicentro de uma mobilização histórica, reunindo mais de 300 mil pessoas em um comício que marcou a união entre líderes políticos, artistas, sindicalistas e cidadãos comuns em prol da liberdade e da justiça. A proximidade da catedral reforçava o elo entre o clamor popular e os valores éticos que permeavam essa luta, tornando-a um símbolo não só de fé, mas também de humanidade.

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Praça da Sé durante o Comício das Diretas Já (1984) - Arquivo Público do Estado de São Paulo

A Catedral da Sé no Contexto Atual 

Com o fim da Ditadura Militar e a redemocratização do Brasil, a Catedral da Sé continuou a desempenhar um papel central na vida religiosa e cultural de São Paulo. Ela passou por uma extensa reforma na década de 1990, que restaurou muitos dos elementos arquitetônicos originais, como os vitrais, as esculturas e o majestoso órgão, um dos maiores da América Latina. Essa restauração foi uma maneira de preservar o legado histórico da catedral, ao mesmo tempo em que adaptava suas instalações para melhor atender às necessidades de uma cidade em constante mudança. 

Hoje, a Catedral da Sé é mais do que um local de culto. Ela é um ponto de encontro para pessoas de todas as origens, que vêm não apenas para participar das celebrações religiosas, mas também para apreciar a beleza arquitetônica e a rica história que o edifício representa. Além das missas regulares, a catedral abriga concertos de música sacra, exposições de arte e eventos culturais que atraem visitantes de todo o mundo. 

Rosangela, funcionária que trabalha na cripta, afirma que é um privilégio trabalhar na Catedral. Todos os dias, ela vê pessoas de diferentes partes do mundo entrando pelas portas. Algumas vão para rezar, outras para admirar a arquitetura, mas todas saem com algo a mais no coração. A catedral tem esse poder de tocar as pessoas, independentemente de sua fé.

A Catedral da Sé também continua a ser um lugar de memória. As histórias de resistência durante a Ditadura Militar são frequentemente recontadas em palestras e visitas guiadas, mantendo viva a lembrança de um período crucial da história brasileira. A cripta da catedral, onde estão sepultados importantes figuras históricas, é um lugar de reflexão sobre o passado e sobre as lutas que moldaram o presente. 

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Cripta da Catedral da Sé (2024) - Foto autoral

Um Legado presente

A história da Catedral da Sé é a história de São Paulo, uma cidade em constante transformação, mas sempre ligada às suas raízes. Desde suas origens humildes como uma simples igreja de taipa, passando por sua construção monumental e seu papel como símbolo de resistência, a catedral testemunhou e participou de momentos chave da história brasileira. 

Hoje, ela continua a ser um lugar onde a espiritualidade, a história e a cultura se encontram, oferecendo um espaço de paz e reflexão no meio da agitação da metrópole. A Catedral da Sé é um testemunho vivo da fé e da humanidade do povo paulistano, e seu legado continuará a inspirar futuras gerações. Rosangela conclui afirmando ser um espaço de todos, guardando as memórias de tempos difíceis, mas também de celebrações das alegrias da fé e da cidade, cuidar dela é mais que um trabalho, é uma missão. 

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Parte Interna da Catedral da Sé (2024) - Foto autoral

Assim, a Catedral da Sé permanece como um farol, não apenas de fé religiosa, mas de um compromisso contínuo com a justiça, a dignidade e a liberdade para todos. 

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