Por Philipe Mor
As lágrimas de emoção anunciavam o que viria. Era 2020. Pandemia. O mundo inteiro trancado vivia entre paredes estreitas e medos maiores do que a própria respiração. Mirelle, acostumada a transformar o corpo em esporte, movimento e suor, agora pedalava dentro da sala, como quem não queria deixar a vida perder o ritmo. Mas, naquela manhã, o inesperado aconteceu. O silêncio da casa só foi rompido pelo barulho repentino da água que caia no chuveiro. No banho, a hemorragia veio sem aviso como um corte de susto no cotidiano enclausurado. De imediato, ela não soube identificar o que acontecia. O medo a fez chamar o marido, que também não tinha respostas. No mesmo instante, ligou para o ginecologista de confiança. A hipótese inicial foi de um aborto espontâneo, mas os exames na manhã seguinte revelaram outra realidade, muito mais dura. Câncer no colo do útero.
Mirelle tinha 34 anos. Jovem, saudável e praticante de esportes. A palavra parecia não caber em sua biografia. Câncer não fazia parte do roteiro de quem sempre cuidou do corpo e de quem acreditava estar distante dessa doença que se costuma associar a vizinhos, parentes mais velhos e desconhecidos da TV. Sua casa caiu. No entanto, na mesma queda, algo se ergueu: uma força que ela mesma não sabia de onde vinha. Ao ouvir do médico que precisaria enfrentar todo o tratamento, ela apenas respondeu: “Tudo bem, doutor. O que eu preciso fazer?”. A atitude firme apesar do abalo seria o fio condutor de toda uma travessia.
O tratamento começou com cirurgia em julho daquele ano. Uma histerectomia total, que retirou o útero e o colo, mas preservou os ovários. Esse detalhe fez diferença. Os hormônios ainda produzidos poderiam evitar uma menopausa precoce. Depois da operação, vieram 30 sessões diárias de radioterapia e uma quimioterapia leve, aplicada semanalmente para potencializar os efeitos da rádio. Por um breve período, seus cabelos permaneceram intactos e a aparência não denunciava a batalha. Mas logo chegou a braquiterapia, com radiação direta na região afetada, em quatro sessões que marcaram a rotina. E quando acreditava ter vencido, surgiu o último e mais desafiador capítulo: 16 sessões da quimioterapia vermelha, a mais agressiva. Vieram então os sintomas que até então conseguira contornar: náuseas, tonturas, fadiga intensa, corpo inchado pelos corticoides e, enfim, a queda capilar.
Apesar de enfrentar o tratamento completo, Mirelle decidiu continuar o trabalho na televisão. Contou apenas à diretora imediata, guardou para si a maior parte do que vivia e seguiu diante das câmeras. Era sua estratégia para manter a mente ocupada e não ceder espaço à doença. Ela acreditava que se ficasse em casa, sentiria cada sintoma. Trabalhar fazia bem para seu psicológico. A força, neste caso, não estava apenas no corpo, mas na insistência em não deixar a rotina ser engolida pelo câncer.
Receber o diagnóstico já seria, por si só, um baque difícil de digerir. Mas, Mirelle precisou atravessar essa notícia em um tempo ainda mais duro: o da pandemia, quando abraços eram raros e o medo do vírus ampliava cada fragilidade. Contar aos pais foi um dos momentos mais dolorosos. A notícia, que já pesava no coração, ganhou contornos ainda mais cruéis ao ser dividida. Ao mesmo tempo, ela decidiu manter em segredo diante de muitos amigos. Preferiu compartilhar apenas com três ou quatro companheiras de longa data. Confidentes que já faziam parte de sua vida antes e que permaneceriam depois. Foi com elas que encontrou espaço para conversar, ainda que por telas. Afinal, em 2020, encontros se resumiam a chamadas de vídeo, e a ausência física transformava a distância em mais uma camada de solidão.
Mesmo assim, a casa não ficou vazia. Durante os oito meses de tratamento, a mãe esteve ao lado dela o tempo todo. Cuidava da filha em tarefas simples, como cozinhar ou ajudá-la no banho, mas também naquilo que só uma presença constante é capaz de oferecer: companhia. Entre risos que preenchiam a sala e choros que atravessavam madrugadas, Mirelle sustentava o otimismo que lhe era característico. Começou a gravar vídeos sobre o cotidiano: aniversários, sessões de quimioterapia e radio. Não se tratava apenas de registrar. Era como se ela quisesse deixar provas de que tudo aquilo faria sentido no futuro, de que um dia estaria pronta para falar em voz alta sobre a própria jornada. E ela estava certa.
Outro ponto marcante foi a perda dos cabelos. Para uma mulher, para alguém que vive da imagem como apresentadora, lidar com o espelho nesse período é um processo intenso. Mas, em meio a terapias e reflexões, veio a virada de chave: antes, ela tinha cabelo e estava doente; depois, estava curada, ainda que sem fios. A resposta à pergunta sobre o que preferiria parecia óbvia.
A experiência com o câncer mudou não apenas a rotina, mas a forma como Mirelle passou a se enxergar. Não há como atravessar meses de tratamento, testemunhar perdas e ainda assim sair ilesa. A pergunta que ressoava em sua mente era inevitável: “Por que eu estou viva?”. Essa inquietação, longe de paralisá-la, abriu espaço para outra reflexão: “Para que estou viva?”. E foi nesse deslocamento de sentido que ela encontrou a resposta. Entendeu que a comunicação, sua ferramenta de trabalho e vocação, poderia ser também o caminho para transformar dor em inspiração coletiva. Hoje, como jornalista e comunicadora, usa suas redes, palestras e para multiplicar informações e esperança.
Há, segundo ela, uma Mirelle antes e outra depois do câncer. A mulher que já era disciplinada com a atividade física agora carrega no esporte um símbolo de resistência. Ao terminar o tratamento, prometeu a si mesma correr uma meia maratona de 21 quilômetros. Feito que cumpriu com orgulho e que transformou em reportagem de TV. Agora, prepara-se para um novo desafio: a maratona completa, 42 quilômetros. Mais do que uma conquista pessoal, o percurso é uma forma de mostrar que, sim, a vida continua, mesmo depois do câncer. Muitas mulheres a procuram para compartilhar experiências e se reconhecem em sua força. É nesse espelho coletivo que ela percebe a dimensão do que viveu.
Entre a hemorragia no banho e a linha de chegada de uma corrida, há uma trajetória marcada por dor, força e reconstrução. Mirelle fala com emoção, sem esconder lágrimas, mas também sem perder o sorriso. Sabe que existe uma versão dela antes do câncer e outra depois. A diferença é que agora ela carrega consigo a missão de inspirar. E quando encontra mulheres que dizem ter retomado o esporte ou acreditado na cura por causa de sua história, entende que aquele registro em vídeo, feito no auge da incerteza, já tinha razão de ser.