Por Marcela Rocha
Ao caminhar pelos blocos de concreto extenso que compõem as calçadas pálidas recém inauguradas, observa-se mudas espaçadas, de caule fino e longo, galhos secos, compridos e com folhas mortas. O ar pesado pela poluição é acompanhado de sons estonteantes de carros, motos e caminhões em movimento. A cada cinco minutos um avião passa cortando o céu e chamando atenção pelo barulho do motor. O calor intenso obriga a procurar uma sombra. As pequenas árvores esturricadas se mostram insuficientes para conter o mal estar causado pelo tempo abafado. A caminhada no primeiro quarteirao da avenida leva à uma esquina com um imóvel vazio que costumava ser uma loja de carros, com vidros altos, agora preenchidos por um grande adesivo vermelho de imobiliária com letras que juntas formam a palavra “aluga-se”.
A parada de pedestre entre o trânsito de sentidos opostos dos carros, antes estreita e visivelmente perigosa, agora está mais larga. Os prédios mais antigos de até três andares, com janelas pequenas de metal emperrado e com pichações na fachada, dão de frente para a avenida e parecem estar em conflito com os novos edifícios de ruas paralelas, verdadeiros arranha céus com seus mais de 15 andares e janelas espelhadas.
Grande parte dos comércios locais que resistiram às mudanças na área são do ramo da mecânica automotiva ou alimentício, como borracharias e autorizadas, lanchonetes e botecos. Entre as exceções, está um toldo azul vibrante que abriga a loja de comércio híbrido de um chaveiro e serviços de manutenção e reforma, com venda de itens de construção civil.
Roni é o apelido de Ronaldo Robert, de 66 anos, chaveiro há mais de 30 anos, e que explica ter sofrido "de tudo" durante os processos da obra que virou a avenida de cabeça para baixo. Diz que o momento em que empilharam terra na frente de seu comércio foi o pior porque obstruiu a passagem e que ninguém conseguia ver que por detrás daquele monte de terra havia um chaveiro 24H. Conta que os funcionários da construção conversaram com ele, solicitando que tivesse calma e que assim que fosse possível tirariam os resíduos da frente do imóvel, e que foi nesse momento que ficou amigo dos trabalhadores. Logo após a remoção da terra, Roni agradeceu os presenteando com paçoquinhas de sua loja e ficaram nessa interação amistosa até o final da obra.
Inicialmente, as obras promovidas na Avenida Santo Amaro pela atual gestão municipal deveriam requalificar 2,7 dos 8 km da via, que corresponde ao espaço entre a Avenida Juscelino Kubitschek e a Avenida dos Bandeirantes, mas apenas os trechos entre a Kubitschek e Rua Afonso Braz foram contemplados, totalizando curtos 1,2 km. Para Ronaldo, a única melhoria foi o alargamento da calçada. Segundo ele, antes a sensação era de sufocamento e que não se pode dizer que está totalmente “limpo”, mas que pelo menos agora um pedestre e um ciclista conseguem dividir a calçada.
Apontando para as árvores do outro lado da rua, Roni reforça que a muda do seu lado da calçada não brotou e que a prefeitura precisa enviar pessoas para fazer a manutenção dessa vegetação e remover as que não resistiram.
O artista invisível
Deslizando o dedo pela tela do celular, Roni mostra fotos de esculturas de areia que fez na praia de Santos onde morou. Diz que na pandemia passou a morar com a mãe, uma senhora de 90 anos, para fazer companhia e dar algum suporte. Nesse período de quarentena aprendeu a fazer esculturas em frutas, como rosas esculpidas na melancia, flores diversas em um mamão e um tucano no abacaxi. Segundo ele, aprendeu tudo sozinho, de maneira autodidata. Em outra foto, mostra que esculpiu uma estrela e o contorno de uma mulher em 2021 como homenagem para a cantora Marília Mendonça, de quem gostava muito e que perdeu a vida no mesmo período.
Ronaldo tem ainda outra habilidade: em sua página no Facebook, o fotógrafo exibe imagens de animais, plantas, casais e famílias. Sorridente, afirma que cada foto que tira não é apenas uma imagem comum e que sempre tem um detalhe a mais. Ao mostrar a foto de uma borboleta vista de perto, o multiartista explica que a língua comprida do inseto fica enrolada quando está voando e que desenrola e estica apenas para se alimentar.
A nova Faria Lima
Em entrevista para a revista Veja São Paulo em outubro de 2023, Andrea Coelho, diretora-executiva do Grupo Marquise, empresa responsável pela entrega de um edifício corporativo até 2025, com 3.000 metros quadrados e salas comerciais no térreo, diz que o projeto da prefeitura foi decisivo para a escolha da Av. Santo Amaro como o local para a instalação da estrutura comercial, e que viram com bons olhos as mudanças no “estilo Faria Lima”.
A requalificação da avenida faz parte da Operação Urbana Consorciada Faria Lima (OUCFL), um projeto de melhoramento que propõe intervenções nas zonas de interligação da Avenida Brigadeiro Faria Lima, passando a incluir a Av. Santo Amaro a partir de 2015 pela influência nas avenidas Juscelino Kubitschek, Hélio Pellegrino e dos Bandeirantes, áreas de ligação direta com a Faria Lima. O projeto prevê mais segurança e acessibilidade de pedestres, a otimização do tráfego priorizando o transporte coletivo, a qualificação ambiental de espaços públicos e o “atendimento habitacional” para comunidades no entorno que vivem em ocupações irregulares.
Uma dúzia de blocos amarelos de diferentes tamanhos estampam a abertura estreita e alta do comércio de espumas. Outro dono de comércio, diz que quando jovem já foi considerado o químico mais relevante do Brasil nessa área, um verdadeiro especialista em espumas. Conta que deu consultoria para empresas de todo o País e também para políticos da época, e que nunca pediu nada em troca. Só queria que a informação fosse transmitida e que mais pessoas fossem beneficiadas pela tecnologia que dominava tão bem. Conta que quando a obra era apenas um rumor diziam que iria aumentar as faixas de carros para melhorar o trânsito, e que agora já finalizada o número de faixas continua o mesmo, o trânsito continua igual e os comerciantes fecharam suas portas.
Para a construção do visual moderno da principal avenida que liga a região sul da cidade ao centro expandido, foram necessárias desapropriações parciais e totais. Ele explica que grande parte dos imóveis que estão fechados e sem placa já foram indenizados pela prefeitura. No quarteirão de sua loja, apenas 8 dos 15 comércios estavam funcionando. Segundo disse, há expectativa de seus vizinhos comerciais de que a obra suba ainda no ano de 2024 para modernizar e valorizar também este pedaço. De acordo com o art. 77 da Lei nº 9.504/97, está proibida a inauguração de obras públicas até três meses antes da eleição, para evitar que a obra seja usada em benefício de algum candidato.
No vídeo publicado no perfil do Youtube da Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento (SMUL) sobre a projeção da requalificação da Avenida Santo Amaro está presente, em todos os cenários, prédios altos e modernos.
Camadas de enganação
Para Cesar Simoni Santos, doutor em Geografia e professor na Universidade de São Paulo (USP), as áreas da operação urbana dos eixos Faria Lima e Água Espraiada foram objeto de muita atenção da geografia urbana nos anos 90 e são áreas que se constituem como a nova centralidade dos negócios em São Paulo, feitas para receber empresas do mercado financeiro, escritórios de advocacia e contabilidade, sedes de Big techs (gigantes da tecnologia) que atendem desde o agronegócio a seguradoras, redes sociais, plataformas de serviços de entrega e sites de bancos.
Segundo César, não se viabiliza um projeto desse porte apenas com dois eixos, e por isso tem-se o processo de renovação das vias ao entorno, como as marginais, a readequação do sistema viário para a acolher a demanda e um incentivo à construção de edifícios residenciais para acolher as pessoas que estavam indo trabalhar nessas áreas, como uma espécie de deslocamento do setor de negócios. Por esse motivo, a Avenida Santo Amaro acabou por ser incluída na Operação Urbana Consorciada Faria Lima.
O especialista conta que em transformações dessa relevância ocorre em primeiro momento a substituição da população local com a desapropriação para a reconstrução da paisagem. Na operação urbana Água Espraiada, por exemplo, a obra removeu a favela do Jardim Edite com a promessa feita pela prefeitura de que os moradores receberiam o empreendimento Residencial Estevão Baião. O conjunto habitacional teve sua construção iniciada, mas foi interrompida em dois momentos: primeiro em 2016, pelo não cumprimento do cronograma de obras pela empresa contratada, e posteriormente em 2020 devido à pandemia. Desde então está com sua continuidade comprometida, sem previsão para o retorno das obras.
Cesar Simoni explica que circula entre as pessoas a ideia de que a modernização sempre é algo bom porque valoriza o terreno e o imóvel, e isso ilude moradores e comerciantes. Que a consequência da valorização do metro quadrado é a mudança de perfil dos donos dos comércios, do público alvo e de moradores, tudo ao mesmo tempo e de forma relacionada. Esse fenômeno, para Simoni, não é um movimento espontâneo, como se houvesse predileção do mercado pela região, mas sim um produto da ação das incorporadoras em parceria com o Estado.
O professor afirma que valorizar imovel é bom para quem é investidor e não para quem é morador, e que seguindo o padrão dos acontecimentos que foram vistos pela geografia urbana até agora, o que está anunciado é que os proprietários podem até conseguir vender o imóvel, mas que as pessoas não encontram outro imóvel equivalente para recomeçar a vida, seja para abrir um novo negócio ou para morar, e que a tendência é que sejam deslocados para a periferia: ele é taxativo ao afirmar que são camadas de enganação e que a vida vai piorar, como piorou para todos aqueles que saíram do Itaim, da Vila Olímpia. E tem a certeza que tudo funciona sempre assim.