Boulevard Santo Amaro pode piorar a vida de moradores e comerciantes

Obra de transformação da avenida ameaça populações locais.
por
Marcela Rocha
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21/10/2024

Por Marcela Rocha

Ao caminhar pelos blocos de concreto extenso que compõem as calçadas pálidas recém inauguradas, observa-se mudas espaçadas, de caule fino e longo, galhos secos, compridos e com folhas mortas. O ar pesado pela poluição é acompanhado de sons estonteantes de carros, motos e caminhões em movimento. A cada cinco minutos um avião passa cortando o céu e chamando atenção pelo barulho do motor. O calor intenso obriga a procurar uma sombra. As pequenas árvores esturricadas se mostram insuficientes para conter o mal estar causado pelo tempo abafado. A caminhada no primeiro quarteirao da avenida leva à uma esquina com um imóvel vazio que costumava ser uma loja de carros, com vidros altos, agora preenchidos por um grande adesivo vermelho de imobiliária com letras que juntas formam a palavra “aluga-se”.

A parada de pedestre entre o trânsito de sentidos opostos dos carros, antes estreita e visivelmente perigosa, agora está mais larga. Os prédios mais antigos de até três andares, com janelas pequenas de metal emperrado e com pichações na fachada, dão de frente para a avenida e parecem estar em conflito com os novos edifícios de ruas paralelas, verdadeiros arranha céus com seus mais de 15 andares e janelas espelhadas.

Predios antigos e novos em conflito
Edificações antigas resistem em meio a modernização da Avenida Santo Amaro/Foto: Marcela Rocha

Grande parte dos comércios locais que resistiram às mudanças na área são do ramo da mecânica automotiva ou alimentício, como borracharias e autorizadas, lanchonetes e botecos. Entre as exceções, está um toldo azul vibrante que abriga a loja de comércio híbrido de um chaveiro e serviços de manutenção e reforma, com venda de itens de construção civil.

Roni é o apelido de Ronaldo Robert, de 66 anos, chaveiro há mais de 30 anos, e que explica ter sofrido "de tudo" durante os processos da obra que virou a avenida de cabeça para baixo. Diz que o momento em que empilharam terra na frente de seu comércio foi o pior porque obstruiu a passagem e que ninguém conseguia ver que por detrás daquele monte de terra havia um chaveiro 24H. Conta que os funcionários da construção conversaram com ele, solicitando que tivesse calma e que assim que fosse possível tirariam os resíduos da frente do imóvel, e que foi nesse momento que ficou amigo dos trabalhadores. Logo após a remoção da terra, Roni agradeceu os presenteando com paçoquinhas de sua loja e ficaram nessa interação amistosa até o final da obra.

Inicialmente, as obras promovidas na Avenida Santo Amaro pela atual gestão municipal deveriam requalificar 2,7 dos 8 km da via, que corresponde ao espaço entre a Avenida Juscelino Kubitschek e a Avenida dos Bandeirantes, mas apenas os trechos entre a Kubitschek e Rua Afonso Braz foram contemplados, totalizando curtos 1,2 km. Para Ronaldo, a única melhoria foi o alargamento da calçada. Segundo ele, antes a sensação era de sufocamento e que não se pode dizer que está totalmente “limpo”, mas que pelo menos agora um pedestre e um ciclista conseguem dividir a calçada.

Apontando para as árvores do outro lado da rua, Roni reforça que a muda do seu lado da calçada não brotou e que a prefeitura precisa enviar pessoas para fazer a manutenção dessa vegetação e remover as que não resistiram.

 Calçadas mais largas e mudas de árvores fazem parte das mudanças da requalificação da Avenida Santo Amaro/Foto: Marcela Rocha.
Calçadas mais largas e mudas de árvores fazem parte das mudanças da requalificação da Avenida Santo Amaro/Foto: Marcela Rocha.

 

O artista invisível

Deslizando o dedo pela tela do celular, Roni mostra fotos de esculturas de areia que fez na praia de Santos onde morou. Diz que na pandemia passou a morar com a mãe, uma senhora de 90 anos, para fazer companhia e dar algum suporte. Nesse período de quarentena aprendeu a fazer esculturas em frutas, como rosas esculpidas na melancia, flores diversas em um mamão e um tucano no abacaxi. Segundo ele, aprendeu tudo sozinho, de maneira autodidata. Em outra foto, mostra que esculpiu uma estrela e o contorno de uma mulher em 2021 como homenagem para a cantora Marília Mendonça, de quem gostava muito e que perdeu a vida no mesmo período.

Ronaldo tem ainda outra habilidade: em sua página no Facebook, o fotógrafo exibe imagens de animais, plantas, casais e famílias. Sorridente, afirma que cada foto que tira não é apenas uma imagem comum e que sempre tem um detalhe a mais. Ao mostrar a foto de uma borboleta vista de perto, o multiartista explica que a língua comprida do inseto fica enrolada quando está voando e que desenrola e estica apenas para se alimentar.

A nova Faria Lima

Em entrevista para a revista Veja São Paulo em outubro de 2023, Andrea Coelho, diretora-executiva do Grupo Marquise, empresa responsável pela entrega de um edifício corporativo até 2025, com 3.000 metros quadrados e salas comerciais no térreo, diz que o projeto da prefeitura foi decisivo para a escolha da Av. Santo Amaro como o local para a instalação da estrutura comercial, e que viram com bons olhos as mudanças no “estilo Faria Lima”.

A requalificação da avenida faz parte da Operação Urbana Consorciada Faria Lima (OUCFL), um projeto de melhoramento que propõe intervenções nas zonas de interligação da Avenida Brigadeiro Faria Lima, passando a incluir a Av. Santo Amaro a partir de 2015 pela influência nas avenidas Juscelino Kubitschek, Hélio Pellegrino e dos Bandeirantes, áreas de ligação direta com a Faria Lima. O projeto prevê mais segurança e acessibilidade de pedestres, a otimização do tráfego priorizando o transporte coletivo, a qualificação ambiental de espaços públicos e o “atendimento habitacional” para comunidades no entorno que vivem em ocupações irregulares.

Uma dúzia de blocos amarelos de diferentes tamanhos estampam a abertura estreita e alta do comércio de espumas. Outro dono de comércio, diz que quando jovem já foi considerado o químico mais relevante do Brasil nessa área, um verdadeiro especialista em espumas. Conta que deu consultoria para empresas de todo o País e também para políticos da época, e que nunca pediu nada em troca. Só queria que a informação fosse transmitida e que mais pessoas fossem beneficiadas pela tecnologia que dominava tão bem. Conta que quando a obra era apenas um rumor diziam que iria aumentar as faixas de carros para melhorar o trânsito, e que agora já finalizada o número de faixas continua o mesmo, o trânsito continua igual e os comerciantes fecharam suas portas.

Para a construção do visual moderno da principal avenida que liga a região sul da cidade ao centro expandido, foram necessárias desapropriações parciais e totais. Ele explica que grande parte dos imóveis que estão fechados e sem placa já foram indenizados pela prefeitura. No quarteirão de sua loja, apenas 8 dos 15 comércios estavam funcionando. Segundo disse, há expectativa de seus vizinhos comerciais de que a obra suba ainda no ano de 2024 para modernizar e valorizar também este pedaço. De acordo com o art. 77 da Lei nº 9.504/97, está proibida a inauguração de obras públicas até três meses antes da eleição, para evitar que a obra seja usada em benefício de algum candidato.

No vídeo publicado no perfil do Youtube da Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento (SMUL) sobre a projeção da requalificação da Avenida Santo Amaro está presente, em todos os cenários, prédios altos e modernos.


Camadas de enganação

Para Cesar Simoni Santos, doutor em Geografia e professor na Universidade de São Paulo (USP), as áreas da operação urbana dos eixos Faria Lima e Água Espraiada foram objeto de muita atenção da geografia urbana nos anos 90 e são áreas que se constituem como a nova centralidade dos negócios em São Paulo, feitas para receber empresas do mercado financeiro, escritórios de advocacia e contabilidade, sedes de Big techs (gigantes da tecnologia) que atendem desde o agronegócio a seguradoras, redes sociais, plataformas de serviços de entrega e sites de bancos.

Segundo César, não se viabiliza um projeto desse porte apenas com dois eixos, e por isso tem-se o processo de renovação das vias ao entorno, como as marginais, a readequação do sistema viário para a acolher a demanda e um incentivo à construção de edifícios residenciais para acolher as pessoas que estavam indo trabalhar nessas áreas, como uma espécie de deslocamento do setor de negócios. Por esse motivo, a Avenida Santo Amaro acabou por ser incluída na Operação Urbana Consorciada Faria Lima.

Imagem do projeto da obra na av. Santo Amaro pela prefeitura
Projeção digital sobre como ficaria Avenida Santo Amaro após a obra de revitalização/Foto: perfil do Youtube da Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento (SMUL)

O especialista conta que em transformações dessa relevância ocorre em primeiro momento a substituição da população local com a desapropriação para a reconstrução da paisagem. Na operação urbana Água Espraiada, por exemplo, a obra removeu a favela do Jardim Edite com a promessa feita pela prefeitura de que os moradores receberiam o empreendimento Residencial Estevão Baião. O conjunto habitacional teve sua construção iniciada, mas foi interrompida em dois momentos: primeiro em 2016, pelo não cumprimento do cronograma de obras pela empresa contratada, e posteriormente em 2020 devido à pandemia. Desde então está com sua continuidade comprometida, sem previsão para o retorno das obras.

Cesar Simoni explica que circula entre as pessoas a ideia de que a modernização sempre é algo bom porque valoriza o terreno e o imóvel, e isso ilude moradores e comerciantes. Que a consequência da valorização do metro quadrado é a mudança de perfil dos donos dos comércios, do público alvo e de moradores, tudo ao mesmo tempo e de forma relacionada. Esse fenômeno, para Simoni, não é um movimento espontâneo, como se houvesse predileção do mercado pela região, mas sim um produto da ação das incorporadoras em parceria com o Estado.

O professor afirma que valorizar imovel é bom para quem é investidor e não para quem é morador, e que seguindo o padrão dos acontecimentos que foram vistos pela geografia urbana até agora, o que está anunciado é que os proprietários podem até conseguir vender o imóvel, mas que as pessoas não encontram outro imóvel equivalente para recomeçar a vida, seja para abrir um novo negócio ou para morar, e que a tendência é que sejam deslocados para a periferia: ele é taxativo ao afirmar que são camadas de enganação e que a vida vai piorar, como piorou para todos aqueles que saíram do Itaim, da Vila Olímpia. E tem a certeza que tudo funciona sempre assim.
 

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