Bar une prazer e a dor do chifre

O local tornou-se um ponto de encontro onde amores e desilusões continuam reunindo clientes.
por
Lídia Rodrigues de Castro Alves
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07/10/2024

Por Lídia de Castro Alves

 

Jair da Silva Santos, foi o fundador do bar. Era um homem de estatura média, que  tinha cabelos negros, que depois, se transformaram num discreto grisalho que se tornava visível à medida que passava pelas mesas do boteco. Mesmo após sua morte o "Bar do Corno" segue atraindo clientes. O estabelecimento que está aberto desde 1976, não passa de um espaço que antes era uma garagem, onde Jair começaria uma funilaria, mas que depois de muitos pedidos de um bêbado que passava naquela rua todas as sextas, reclamando de ter sido traído, virou um bar. 

Naquele tempo, o espaço era pequeno e a clientela também. Santos, então, que chegara recentemente de uma  pequena cidade do interior de Minas Gerais, não tinha muito a oferecer além de seu carisma e uma vontade inabalável de fazer amigos. Ele veio sozinho e começou com uma modesta oferta de petiscos caseiros e cerveja gelada, servida em canecas de alumínio que ele mesmo polia até brilharem. As mesas de madeira eram rudimentares, e as cadeiras tinham a sensação de ter sido compradas em uma liquidação de móveis usados. Mas havia algo que ninguém podia negar: a atmosfera acolhedora e o calor humano que emanava de cada canto do bar. É possível que, por não ter sido abraçado pela cidade quando chegou, resolveu abraçar, não só os cornos, mas todos que entravam. 

O bar rapidamente se tornou um ponto de encontro para os moradores da Zona Norte paulistana. Tinha um charme rústico, com uma decoração desajeitada, que reflete até hoje a personalidade do criador: uma mistura de entusiasmo e um toque de desorganização afetuosa. Era lá que se celebravam os pequenos triunfos da vida ou resultados de futebol. Era também o lugar onde se compartilhavam as tristezas e as frustrações, como a perda de um emprego, uma briga familiar, ou traições, principalmente traições. 

Seu Ivo, o bêbado traído, passava no bar todas as sextas, sentava na guia e fazia o mesmo pedido, era quase religioso: um litrão da mais barata, uma pequena porção de torresmo e  uma dose de hidromel. Ele era sempre atendido por Jair, que fazia questão de sentar ao seu lado, mas não no chão, pegava uma das cadeiras bambas e deixava o tempo passar.  Quando acabava a cerveja, a garrafa de vidro virava microfone, Ivo cantava as mais sofridas das músicas sertanejas, tinha descoberto uma traição há meses, da mulher que segundo ele, mais amou em toda vida. Ele saiu de casa e disse que não voltaria mais, nunca mais. 

Um dia, uma linda mulher com cabelos cacheados e pretos, apareceu no bar, o que era inédito, aquele lugar era frequentado majoritariamente por homens, mais especificamente os cansados e desiludidos. Margarete era seu nome. Quando vista por Jair, foi desejada instantaneamente, mas não foi avisada. A mulher se dirigiu ao balcão e pediu um copo de água, nada mais que isso. O que logo chamou atenção  do anfitrião, ela queria mesmo só água num bar de esquina? Bebeu naquela caneca de alumínio, desconfiada da procedência não só da limpeza, mas da bebida.   

Depois disso, Jair não pensava em outra coisa, esperava ansiosamente pela próxima visita, fez questão de trocar as canecas por copos de vidro, lustrou mesa por mesa, arrumou umas cadeiras mais novas e firmes e continuou à espera do seu grande amor. Meses depois, Margarete apareceu novamente, num dia que o bar, por pura coincidência estava mais vazio que o normal, ficaram os dois, Jair e Margarete, conversando horas e horas, como se nada mais importasse a não ser aquele momento tão intenso e tão distante da realidade conhecida por Jair. 

Não deu outra, os dois começaram uma história de amor. Ivo não tinha mais o mesmo destaque que antes, agora, era atendido por funcionários e Margarete começou a fazer parte da administração do estabelecimento, botou as coisas em ordem. Pelos relatos, os dois se amavam de verdade, dançavam no salão do bar, enquanto tocava alguma música chiada no rádio, todos acompanhavam e gostavam do que viam. 

Todos, com exceção de um. Ivo, que se sentiu traído novamente e prometeu outra vez nunca mais voltar para casa, aquela casa de esquina, mais especificamente, a guia da calçada do bar. 

O tempo ia passando, e a grande notícia chegou. Margarete estava grávida. Era sexta-feira quando Jair parou o bar para fazer o anúncio. Muito feliz, esperava a presença de seu primeiro e grande amigo, Ivo, que apareceu mais tarde, já mais pra lá do que pra cá e gritando que o corno da vez era Jair. Margarete estaria secretamente apaixonada por Ivo, que justificou assim sua ausência repentina, dizendo que eles estavam saindo juntos. Por incrível que pareça, Jair não duvidou nem acreditou 100% na informação, mas num sofrimento quase que teatral sentou-se na guia e começou a cantar, dizia que dali não sairia mais. Agora, o corno cantor era ele. 

Margarete afirmava que a história era mentira, mas de nada adiantou, Jair só saiu de lá na manhã seguinte.  Ele era muito ciumento e Ivo sabia disso. Rodrigo, o filho do casal, nasceu tempo depois, Jair e Margarete não estavam mais juntos. Todo aquele amor do início havia se desgastado, Jair começou a beber sem parar, chegava atrasado, saía de manhã, tinha ficado bem perdido. Ivo sumiu. 

Jair morreu quando Rodrigo tinha 19 anos, problemas no coração. Antes de morrer, a tradição do corno já havia sido firmada, toda sexta algum sofredor sentava numa cadeirinha e cantava, podia ser ou não um homem traído, mas a emoção tomava conta de todo mundo que ali estava. 

Margarete passou algum tempo tomando conta do bar junto com o filho, ela que cuidou do Jair nos seus últimos anos. No fundo, ele não acreditava naquela história, mas não queria dar o braço a torcer e voltar com a mulher que o traiu com seu único amigo, que inclusive, só apareceu na semana de sua morte, pedindo desculpas pelo que tinha acontecido. A dúvida estava lançada sobre se Margarete havia traído ou não havia traído Jairzinho.

Hoje, o Bar do Corno, recebe bastante gente, a cantoria acontece não mais com uma garrafa de vidro e um radinho velho, mas sim com uma caixona de som bluetooth que pisca e muda de cor, um microfone de verdade e um chapéu de plástico com dois chifres que quem estiver cantando tem que usar.  Mesmo não tendo mais Jair, Margarete ou Ivo, o lugar é mais do que um local para beber e comer; é um espaço onde memórias  permanecem vivas e outras continuam nascendo. 

 

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