Apesar de ser um tema mais discutido em abril, devido ao mês ser dedicado à conscientização do transtorno, o autismo ainda fica de fora das principais pautas. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que 1 em cada 160 crianças no mundo sejam autistas. Mesmo sendo uma porcentagem relativamente grande, a condição não recebe tanta visibilidade e acaba sendo desconhecida por muitos.
O que é autismo e quais são seus sintomas
O Transtorno do Espectro Autista (TEA) está relacionado ao desenvolvimento neurológico e expressa-se na dificuldade em criar laços ou se comunicar com outras pessoas. Além disso, o autista tem um comportamento “restritivo e repetitivo”, segundo o oncologista Drauzio Varella. O nome “espectro” surge pelo fato de que cada indivíduo tem uma realidade diferente, variando conforme o grau do transtorno.
A medicina identifica três tipos de autismo. O primeiro classifica-se como clássico, quando o autista é mais voltado para si, não faz contato visual com as pessoas e tem um impasse na hora de compreender o significado das palavras. Por outro lado, no autismo de alto desempenho - conhecido como Síndrome de Asperger -, as dificuldades são menores, a interação social sendo a maior barreira. Enfim, no distúrbio global do desenvolvimento sem outra especificação (DGD-SOE), os sintomas não são tão evidentes, o que pode atrasar o diagnóstico.
Por mais que as pesquisas médicas tenham se aprofundado nos últimos anos, não há uma causa específica para a manifestação do transtorno. Assim, para a sociedade científica, a condição pode estar atrelada a fatores genéticos e biológicos, além de o ambiente também ser capaz de influenciar seu desenvolvimento. O diagnóstico, dessa forma, é dado nos primeiros três anos de vida, mas pode ser confirmado anos depois. O exame baseia-se nos principais sintomas e segue os critérios do Manual de Diagnóstico e Estatística da Sociedade Norte-Americana de Psiquiatria (DSM-IV) e da Classificação Internacional de Doenças da OMS (CID-10).
Tratamentos
Para o tratamento de autistas em seus diferentes graus, são necessárias intervenções de médicos, psicólogos, fonoaudiólogos, pedagogos e fisioterapeutas, além da orientação dos pais ou cuidadores. Recomenda-se que uma equipe estude e desenvolva um programa de intervenção personalizado, já que as pessoas com TEA são diferentes entre si.
Theo, por exemplo, tem acompanhamento psicológico desde os 4 anos. “É algo que me ajuda a manter alguma saúde mental”, afirmou o jovem. Ele também se consulta com uma psiquiatra desde os 16 anos, quando começou a tomar medicamentos para depressão e ansiolíticos. Diferente de alguns autistas, não tem problemas com a fala, não precisando de um fonoaudiólogo. “Apesar de falar bem, tem problemas em se comunicar. Seu autismo é leve, não compromete sua cognição, controle motor, fala”, confirma a arquiteta e mãe de Theo, Rosely Muniz.
Existem três tipos de tratamento mais conhecidos e utilizados internacionalmente para promover o desenvolvimento social e cognitivo do autista. O primeiro é o Treatment and Education of Autistic Related Communication Handcapped Children (TEACCH), um programa que combina diferentes materiais visuais para organizar o ambiente por meio de rotinas e sistemas de trabalho, tornando-o mais compreensível. Assim, visa a independência e o aprendizado.
O segundo meio é o Picture Exchange Communication System (PECS). Trata-se de um método de comunicação alternativa por meio da troca de figuras. Logo, é um programa que pode ser usado tanto com autistas que não desenvolvem a linguagem, quanto para pessoas que apresentam dificuldades ou limitações na fala.
Outro tratamento é o Applied Behavior Analysis (ABA), que se fundamenta na aplicação dos princípios da teoria do aprendizado, com o objetivo de incrementar comportamentos sociais significativos, reduzir comportamentos indesejáveis e desenvolver habilidades. Existem técnicas e estratégias de ensino e tratamento comportamentais associados à análise do comportamento, que se mostraram úteis na intervenção.
Já o último tratamento é o uso de medicações. O medicamento precisa ser prescrito pelo médico e indicado quando existe comorbidade neurológica ou psiquiátrica e quando os sintomas apresentam algum prejuízo – social ou ocupacional ao cotidiano. Entretanto, até o momento, não existe uma medicação específica para o tratamento. É importante o médico informar sobre o que se espera da medicação, qual o prazo esperado para que se percebam os efeitos, assim como os possíveis efeitos colaterais e particularidades ligadas à condição.
Vale salientar que os tratamentos podem ser mais eficazes se o transtorno for identificado antes. “É importante realizar as terapias de uma forma séria e, quanto mais cedo, melhor para que esse indivíduo tenha todo o potencial desenvolvido”, conforme a fonoaudióloga Diana Faria.
Além de o transtorno não ser palco de debate, há ainda a problemática dos efeitos sociais e direitos humanos. Discriminação e estigmatização são alguns dos empecilhos que pessoas com TEA têm que lidar, segundo a Associação de Amigos do Autista (AMA). Aliás, o preconceito visto na sociedade alcança também as telas do cinema, dificilmente nota-se autistas em papéis de destaque ou em grandes produções.
Representação cultural
No audiovisual, há poucos exemplos de representatividade da pessoa com TEA. A quantidade de personagens com a condição é pequena, como indica um estudo do Gay & Lesbian Alliance Against Defamation (Glaad), mostrando que, em 2020 e 2021, apenas 3,5% dos papéis principais de séries possuíam alguma deficiência ou transtorno. Quando apareciam, acontecia o cripface, que é a interpretação de personagens com condições neurológicas atípicas por atores que não a possuem. Isso leva a uma atuação marcada por exageros e estereótipos.
O capacitismo, preconceito contra pessoas com deficiência, é um dos principais motivos para a indústria não contratar autistas. É manifestado de diversas maneiras, algumas até com a justificativa de “cuidado”, com a imagem da PCD como alguém sem capacidade para realizar ações e ter determinados hábitos.
“Acredito que os transtornos de ordem comportamental e os transtornos mentais ainda são vistos com muito preconceito, quaisquer pessoas com transtornos mentais ou comportamentais merecem compaixão. Elas não escolheram ser assim, simplesmente são. Porque então excluí-las ao invés de ajudá-las?”, analisou Rosely.
Produções audiovisuais que retratam o autismo
Muitas obras audiovisuais que retratam autistas tendem a usar a condição como algo a ser superado, além de se basearem em estereótipos. A dificuldade de séries, filmes e novelas em representar o tema se dá por essa visão minimalista e, devido à falta de conhecimento, algumas produções acabam sendo rasas ou superficiais.
Para a sociedade, fazer produções com temas esquecidos ou desconhecidos por uma parcela da população é interessante, mas a linha tênue entre representatividade e cuidado é perigosa. Assim, ao tratar a temática, a pessoa tem que ter conhecimento e exemplos na vida, do contrário, será superficial. Por isso, no momento que decidir montar uma personagem com TEA, estudos terão que ser feitos para que não haja a chance de destruir algo que traria expressividade.
Lucas, um jovem de 23 anos que tem a Síndrome de Asperger, utiliza seu Instagram para explicar a condição e levá-la de uma maneira engraçada às pessoas. Em seu perfil, indicou produções que o ajudaram no processo de autoaceitação do autismo, dentre elas destacam-se Amor No Espectro e Atypical. A seguir, saiba mais sobre as produções e outras que abordam a temática.
Atypical
Lançada em 2017, Atypical retrata a vida de Sam (Keir Gilchrist), um autista de 18 anos em busca de sua independência. A produção mostra os desafios enfrentados por ele e sua família. Apesar de Keir não ter o transtorno, recebeu elogios da crítica por sua sensibilidade, entrega e entendimento do personagem. O ator compreendeu que o autismo tem vários níveis e se preocupou em saber mais sobre o assunto, entregando um papel digno e representativo.
Vale lembrar que a 2ª temporada trouxe um grupo de apoio a pessoas com TEA. Os presentes eram autistas, exceto o protagonista e a líder das reuniões. Em entrevista à Netflix, distribuidora da série, o ator Domonique Brown contou que é extremamente difícil para atores com autismo terem oportunidades em grandes produções e que papéis como esses são muito importantes para quebrar estigmas.
A 4ª temporada já foi confirmada pelo serviço, mas a data de lançamento ainda não foi anunciada. Como a pandemia do coronavírus adiou as gravações, é provável que a última parte estreie apenas no segundo semestre de 2021.
The Good Doctor
A produção acompanha o médico autista Shaun Murphy (Freddie Highmore), que tem a síndrome de Savant, um desequilíbrio no intelecto, e que busca um trabalho em um grande hospital na cidade de San José. Contudo, apesar de brilhante, ele enfrenta diversos preconceitos, tendo como único favorável à sua contratação o presidente do local, Aaron Glasman (Richard Schiff).
The Good Doctor, que fez sucesso na versão estadunidense, é original da Coreia do Sul e estreou em 2013, quando o produtor Daniel Dae Kim assistiu à série e decidiu levá-la a CBS, que recusou duas vezes. Após sua estreia, chamou a atenção das emissoras e culminou em uma parceria com a ABC.
Shaun tem a síndrome de Savant, que consiste em um dos espectros do autismo, e apresenta como principais habilidades o aprendizado de línguas, a memorização e o cálculo. Contudo, dificulta ações corriqueiras, como amarrar os cadarços.
Highmore não tem autismo, mas estudou o tema e conviveu com filhos autistas de amigos para a criação do personagem. Além disso, Melissa Reiner, mestra em educação especial, faz parte da equipe do audiovisual e ajuda na representação mais fidedigna do autista.
A série está em sua 4ª temporada e não tem previsão de ser renovada. O Globoplay é responsável pela exibição no Brasil.
Amor no Espectro
“Mesmo que eu esteja no espectro, ainda sou capaz de me apaixonar e ser uma pessoa compreensiva e atenciosa.” Essa frase é de Mark, 29, um dos participantes de Amor no Espectro. Quando questionado se gostaria de se apaixonar, Mark não pensou duas vezes: "Há muito tempo, sim. Isso está sempre na minha cabeça, mas é tão difícil de acontecer".
Outro participante, Michael, 25, revelou que seu maior sonho é "se tornar um marido". Já Maddi, 23, contou que prefere um parceiro que também esteja no espectro porque "traços de personalidade semelhantes são muito bons" para uma relação bem-sucedida. Na jornada, guiam suas tramas, mostrando que têm pensamentos, desejos e necessidades pessoais. À medida que permitem que o público se aproxime de suas histórias, ensinam e detalham o universo autista.
Um dos acertos da série é mostrar os tipos de espectro. Algumas pessoas gostam mais do toque, outras não, todos têm seus limites. Quem ajuda nessa questão é a sexóloga e especialista em TEA, que ajuda os participantes com seus sentimentos, metas e dificuldades.
Amor no Espectro é um reality show australiano original da Netflix. Dessa maneira, está disponível somente no catálogo da gigante do streaming.
Representatividade e inclusão
Em uma pesquisa feita com mais de 100 pessoas para saber se consideravam o Oscar, a premiação mais famosa do mundo, como inclusiva e diversificada, 92% afirmaram acreditar que a cerimônia não é representativa. De fato, poucas vezes um artista com TEA venceu o prêmio.
Anthony Hopkins, conhecido por diversos papéis, ganhou dois Oscars de melhor ator, em 1992, por sua atuação em O Silêncio dos Inocentes, e em 2021, por Meu Pai. Além do troféu, foi premiado com dois Emmys, um Globo de Ouro, seis Baftas e um Critics Choice. Considerado um dos maiores atores, Hopkins só descobriu que tinha Síndrome de Asperger quando entrou na terceira idade. O artista acredita que sua condição não o atrapalha no trabalho.
Em 2013, a Rede Globo transmitiu a novela Amor à Vida, de Walcyr Carrasco. A história teve grande repercussão por seus enredos, um dos principais foi a autista Linda, interpretada pela atriz Bruna Linzmeyer. Mas alguns especialistas da psicologia constataram que a emissora e o autor foram irresponsáveis com a forma que trataram o tema.
Segundo a pesquisadora Ana Arantes, da Universidade Federal de São Carlos, o caso de Linda foi desconectado da realidade de um verdadeiro autista. “As características demonstradas pela Linda no desenvolvimento da personagem são confusas e jamais se enquadrariam nas características de pessoas com TEA”, explicou.
Desde então, a última novela que abordou a condição autista foi ao ar em 2017, também pela Rede Globo. Malhação: Viva a diferença mostrou Benê, uma jovem com a Síndrome de Asperger, que foi interpretada pela atriz Daphne Bozaski. Três anos após o fim da história, a emissora utilizou sua plataforma de streaming, Globoplay, para produzir uma série derivada da novela. As Five traz Benê como uma das principais personagens e já está disponível para assistir.
Outra produção brasileira sobre o espectro autista que vale ressaltar é o documentário Em um Mundo Interior, que foi o primeiro longa-metragem nacional estritamente sobre autismo, participando da seleção do festival É Tudo Verdade em 2018. O filme acompanha o dia a dia de sete famílias de diferentes classes sociais e regiões do Brasil. Pode ser assistido através do Globoplay ou do Amazon Prime Video.
As produções sobre autismo começam a ganhar espaço e visibilidade, mas é raro observar atores e atrizes com diferentes níveis de espectro. Os audiovisuais que contam com personagens autistas não contratam atores com a condição, mostrando que a quebra de preconceitos quanto à diversidade nas premiações, produções e até no dia a dia está longe de ser alcançada.