Por Giovana Yamaki
O assédio desperta sensações de nojo e repugnância. Dele, restam as lembranças de toques indesejados e a angústia de ter passado por uma situação dessas. Maria Vitórya Angelo Barbosa, graduanda de Direito da Fachusc e fundadora e administradora do perfil @alutadelas, no Instagram, fez esse relato de como se sente todas as vezes que isso ocorre.
Qualquer circunstância pode ser propícia para que uma mulher seja vítima de assédio. Independentemente se o dia está chuvoso, com nuvens cobrindo todo o azul do céu ou repleto de raios de sol, com uma sensação térmica de 40ºC, alguém (mais comumente, uma mulher) está vulnerável a sofrer importunações de todos os tipos. O Instituto YouGov realizou um estudo com 2500 mulheres com mais de 16 anos no Brasil, no Reino Unido, na Tailândia e na Índia. Todas disseram que já foram vítimas de assédio, podendo esse ser cometido por meio de abuso sexual, emocional ou físico. Tendo isso em vista, é imprescindível que sejam analisados os fatores culturais existentes por trás dessa conduta abusiva.
Professora do Departamento de Ciências Sociais da Faculdade de Ciências e Letras, da UNESP e integrante do Núcleo de Antropologia do Direito, da FFLCH/USP, Renata Medeiros Paoliello explica que assédio é a aproximação agressiva que um homem, em geral, faz em direção a uma mulher. Agressiva no sentido de se impor e não aceitar recusa. Seja cercando no ambiente de trabalho, quando tem uma posição hierarquicamente superior a da pessoa assediada, seja em outras situações que favoreçam a conduta impositiva e importuna que envolve, de alguma forma, uma relação de poder.
E essa conduta que remete à moléstia pode ser recorrente após um dia longo de trabalho, muito cansaço, quando tudo que todos querem é somente percorrer os trilhos e avenidas que te levam até em casa e descansar. Em um transporte que a essas horas deve estar lotado por ser horário de “pico”, ainda é preciso se deparar com pessoas te esbarrando acidentalmente ou propositalmente para passar as mãos em você. Mas nem é preciso de muito, pode ser em um momento qualquer, o veículo não precisa nem estar cheio para que ocorram situações como essa.
E foi exatamente em uma conversa inesperada dentro de um ônibus lotado ao meio-dia, cheio de estudantes que saíam da faculdade e caminhavam para suas casas ou para seus respectivos trabalhos, que um grupo de mulheres, de aproximadamente 20 anos, colocava para fora suas angústias. Ao sair às ruas, é possível se deparar com os assuntos mais diversos possíveis e foi dentro de um transporte público, em plena a luz do dia, que algumas jovens decidiram expor situações de assédio que tinham enfrentado.
Em pé, uma de frente para outra comentavam sobre os últimos casos de assédio que passaram. Uma delas, de cabelo comprido e tons amarelados replicava as falas amedrontadoras que ouvira. “Loirinha, loirinha, vem aqui, loirinha, como você é linda”. Ela contou que saía tarde do trabalho. O sol já havia ido embora, as estrelas e a lua pairavam no céu escuro e somente as luzes dos postes iluminavam seu percurso. Segundo a garota, todas as vezes que ia embora e passava por essa rua, o mesmo homem estava lá dizendo em voz alta – e sem parar – essas palavras. Com muito medo, disse que andava o mais rápido possível. E a solução foi ter que fazer outro caminho para voltar para casa.
Inclusive, os dados dos institutos Locomotiva e Patrícia Galvão mostram que as mulheres nas ruas, em transporte público, sofrem mais com assédio sexual do que são vítimas de assalto, ao contrário dos homens. Maria Vitórya Angelo Barbosa explica que isso ocorre pelo fato de os homens acharem que os corpos femininos são posse deles e que eles têm o direito de violar as mulheres. Enquanto o assalto, por outro lado, faz relação com os bens materiais da mulher e não com seus corpos.
Da pesquisa dos institutos, 36% disseram ter sido submetidas a interações de teor obsceno, enquanto 34% foram furtadas e/ou roubadas. As mulheres têm mais medo de que passem a mão nelas para assediar do que para roubarem seu celular. Das 2 mil pessoas ouvidas, sete em cada 10 entrevistadas afirmaram ter sido incomodadas por comentários desrespeitosos e olhares insistentes enquanto se deslocavam.
Onde está o respeito à integridade da mulher, seja ela uma jovem, maior de idade ou uma senhora? A mulher, que deveria ser livre para explorar o mundo todo assegurada de seus direitos, depara-se com pedregulhos pelo meio do caminho que as ferem através de carícias de dedos alheios que percorrem seus corpos sem autorização. Ou então, mediante a buzinadas, olhares e comentários, como “eu levaria você para casa”, “por que uma menina bonita como você está sem namorado?”.
Maria Vitórya traz sua visão a respeito desses “elogios” que são travados às mulheres quando elas só querem andar livremente sem serem perturbadas.
E esse medo comentado pela estudante de Direito provocado pelo assédio verbal é justamente o que uma das outras meninas que estavam na roda de desabafo do ônibus contaram. A outra jovem, que tinha uma estatura um pouco menor e de cabelos mais escuros, dissera que perdeu as contas de quantas vezes tinha sido assediada no dia anterior em um momento que ficou sozinha por alguns minutos. E o sentimento que ficou dentro dela foi em comum ao das outras mulheres, constrangimento, culpa, nojo e dor.
Há cantadas que são mais agressivas e essas, conforme afirma a jornalista Brenda Fucuta à BBC News, são abusos sexuais falados que tentam intimidar e colocar o orador da frase em uma posição de superioridade, de poder. A Rede Nossa São Paulo divulgou uma pesquisa que mostra que os casos de assédio sexual e violência contra mulher aumentaram na cidade de São Paulo, foram de 74% em 2020 para 83% no ano passado. O estudo analisa também a quantidade de mulheres que já sofreram agressão verbal, foram atacadas fisicamente e sofreram preconceito somente pelo simples fato de serem mulheres. 59% delas temem o assédio sexual.
Mas nem sempre o assédio sexual foi visto dessa maneira e com a amplitude que se enxerga hoje. A professora Renata discorre que em um passado relativamente recente, assédio não era conduta ilegal e, em nosso país, havia, como há, recorrências de práticas de assédio, sobretudo em ambientes de trabalho.
Para a docente, a mentalidade ainda corrente é a de que a mulher - especialmente, a que “não tem dono”, isto é, pai ou marido, e não está recolhida ao espaço doméstico - deve estar disponível para os homens, sem qualquer direito de recusá-los, o que, em alguns locais, é ofensa grave à masculinidade e pode resultar em respostas violentas. São essas “pequenas práticas” do cotidiano que alimentam a cultura machista e são delas que partem o assédio.
As mulheres já foram vistas e julgadas de diferentes maneiras. Já se imaginou que elas engravidavam dos deuses e pela sua capacidade de conceber outras pessoas, eram um ser sagrado. No entanto, ao longo do desenvolvimento dos corpos sociais e do mundo, isso foi se transformando. O ser feminino foi sendo colocado em uma posição de submissão aos homens, como se seu único dever fosse o de gerar vidas.
Patriarcado
Conectado a isso, tem-se o surgimento da sociedade patriarcal, onde os homens exercem funções de liderança de forma hegemônica. Vivendo nesse sistema social, em que os indivíduos masculinos são considerados superiores, é muito propício que seja comum – mas não deveria – que as mulheres sofram danos à sua completude.
Além disso, buscando compreender ainda mais as razões para essa perpetuação do assédio, Augusto Caccia-Bava, mestre em Ciências Sociais, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e doutor em Ciências Sociais, da Universidade Estadual de Campinas considera que um dos motivos para os homens cometerem essa prática é a questão do ímpeto. Ele enuncia que o impulso do assédio é consequência de um sentimento de atração dos homens pelas mulheres.
Para a mulher, é extremamente árduo denunciar. Para isso, demanda muita coragem. O sentimento de culpa corrói sua mente e perpassa em forma de remorso no seu peito. E ainda, quando toma a iniciativa de abrir a boca e colocar para fora o que aconteceu, muitas vezes, não tem sua voz escutada e é desacreditada. Todo o esforço de falar é jogado ao vento, visto que muitos vão considerar o caso como insignificante.
Foi em razão dessa culpa que as meninas do ônibus, em nenhum dos momentos que foram assediadas denunciaram. Elas comentaram sobre a dificuldade em aceitar que aquilo realmente aconteceu e falaram sobre como suas dores seriam tratadas com descaso pelas autoridades. Em um baixo tom de voz, com os dedos das mãos entrelaçados uns aos outros, uma das garotas dissera que a polícia não resolveria seu problema por ser algo que ocorre frequentemente com as mulheres e nunca é visto como relevante. Ela acrescentou falando que se sentiria ainda mais exposta, humilhada e não receberia apoio.
Renata Paoliello profere que a descrença e a surdez às denúncias das mulheres fazem parte deste conjunto de valores e crenças machistas. Ou seja, os homens são postos em um lugar de que eles não são os responsáveis pelo próprio desejo e por lidar com ele; as mulheres é que os "tentam". Esta é a essência das agressões sexuais.
Tomando essa perspectiva, a roupa que a mulher está usando se torna um motivo pelo qual é assediada. Mas a sua vestimenta não importa. As linhas compridas ou curtas de uma veste, os braços e pernas cobertos ou à mostra não devem ser vistos como uma justificativa para que sejam cometidos atos inconvenientes. Afinal, em 2018, mulheres muçulmanas, que usavam roupas que cobriam todo seu corpo, fizeram muitas denúncias de assédio sexual em uma peregrinação à Meca. Isso deixa evidente que a roupa não é uma interferência e a culpa nunca é da vítima.
A professora de Ciências Sociais revela que não pode dizer que já foi assediada, pois nunca esteve em posição subordinada a um assediador. Contudo, como praticamente todas as mulheres, já foi sexualmente importunada algumas vezes no trabalho e fora dele. Ela concluiu que não deixa de ser violento, enojante e abusivo. Afinal, ninguém, seja mulher ou não, gosta de ser alvo de um desejo - se é que se pode chamá-lo assim - agressivo, paranóico e degradante. Essas são as marcas que a cultura machista alastra pela vida das mulheres. Traços esses que ficam tatuados junto a outras lembranças degradantes que são construídas no passar dos dias.
Por fim, os relatos do ônibus terminaram ali. Cada uma seguiu sua vida, enfrentando os obstáculos e correndo risco de ser assediada a qualquer momento. Talvez um dia, infelizmente, voltem a essa conversa com novos relatos caso a sociedade não mude seu comportamento e as autoridades continuem sendo imprudentes.