No dia 12 de março de 2023, Michelle Yeoh entrou para a história como a primeira mulher asiática a ganhar o Oscar de Melhor Atriz. A primeira edição da premiação ocorreu em 1929 e, em 95 cerimônias, apenas duas mulheres de cor levaram a estatueta para casa. Em um ato simbólico, Halle Berry, que recebeu o prêmio em 2002 por A Última Ceia, entregou o prêmio à protagonista de Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo.
Outro grande nome da noite foi Ke Huy Quan, que interpretou o marido de Michelle no filme que ganhou 7 das 11 categorias em que foi indicado. O artista vietnamita-americano conquistou a estatueta de Melhor Ator Coadjuvante, se tornando o segundo homem na história da premiação a realizar o feito. Antes dele, apenas o ator cambojano Haing S. Ngor tinha levado o prêmio, em 1985, por sua atuação em Os Filhos do Silêncio.
No Oscar 2023, Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo foi indicado a 11 categorias no Oscar e ganhou 7 delas – Melhor Filme, Melhor Atriz, Melhor Ator Coadjuvante, Melhor Atriz Coadjuvante, Melhor Direção, Melhor Roteiro Original e Melhor Montagem. No entanto, antes mesmo da cerimônia, o longa-metragem entrou para a história ao se tornar o filme mais premiado de todos os tempos, segundo levantamento do IGN. O recorde pertencia ao longa Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei, que detém 101 prêmios. O longa dirigido por Daniel Kwan e Daniel Scheinert havia conquistado 158 prêmios, número que aumentou para 165 após o Oscar.
O Contraponto Digital entrevistou Pedro Ortiz, jornalista e documentarista que dá aulas nos cursos de Rádio & TV e Cinema no Centro Universitário Belas Artes de São Paulo. O professor fez uma leitura sobre o contexto em que Michelle e Ke foram premiados.
“O Oscar é o prêmio da indústria cinematográfica de Hollywood. Ele vem mudando de uns anos para cá, eles vão procurando trazer uma diversidade maior de profissionais, tanto os que estão atrás das câmeras, quanto os que estão à frente”, disse Pedro. “O colégio eleitoral que vota nas categorias vem sendo ampliado também por profissionais de outros de outros países. Inclusive, hoje temos muitos brasileiros. Esse ano a gente teve uma convergência em torno do filme que foi o mais premiado, com atores e atrizes asiáticos”, finalizou o jornalista.
O professor completou que o cinema sempre foi um espaço multiétnico, mas a representatividade em premiações foi tardia.
“Isso mostra que o Oscar vem tentando se atualizar, porque havia essa crítica de que era uma premiação tão importante que deixava de fora muito dessa diversidade étnica, de gênero e cultural que faz parte do cinema”, começou o documentarista. “Ele sempre foi multicultural, multiétnico e polifônico, um cinema de muitas vozes. Mas até alguns anos atrás ainda não tinha essa representatividade dentro da premiação”, observou Ortiz.
Por outro lado, o ator de ascendência japonesa Ricardo Oshiro trouxe uma visão crítica sobre o assunto. Apesar de comemorar as vitórias, também ressaltou que gostaria de ver ainda mais artistas amarelos recebendo reconhecimento.
“É muito gratificante, a gente se sente representado. Por outro lado, poxa, só dois? Sendo que o masculino foi depois de 30 anos. Todo esse panorama não mostra a realidade para mim de tantas qualidades, de tantos talentos. O Oscar ainda tem essa aura, esse glamour”. O artista ainda acrescentou: “Talvez o recado seja que eles querem ampliar mercado, mas também é bom saber que são excelentes atores, não deram um prêmio apenas porque são amarelos. E que bom que são amarelos. [...] Se eles não ganhassem o Oscar, para mim ainda são excelentes atores. Para mim é só Hollywood reconhecendo que tem filmes excelentes fora do umbigo deles”.
Ke Huy Quan, a personificação de um ideal
Ke Huy Quan se tornou um símbolo de superação e resiliência, pois passou quase 20 anos longe das telas sem nunca ter desistido do seu sonho de fazer sucesso na indústria cinematográfica. O ator nasceu em Saigon, no sul do Vietnã, de família descendente de chineses. Em 1978, sua família fugiu do país arrasado pela guerra e foi morar nos Estados Unidos através de um programa de reassentamento de refugiados em 1979.
Em 1984, o ator estrelou o filme Indiana Jones e o Templo da Perdição como o personagem Short Round, ajudante chinês de Indy. Em 1985, fez parte do elenco de Os Goonies como Richard “Data" Wang. Outro sucesso de sua carreira foi o filme O Homem da Califórnia. O último trabalho de Ke no cinema foi em um filme de Hong Kong lançado em 2002. Como ator- mirim, Quan teve dificuldades em conseguir novos papéis, uma vez que os protagonistas eram majoritariamente interpretados por atores brancos.
Em entrevista à revista Variety, o vietnamita-americano declarou que o filme Podres de Ricos, lançado em 2018, o motivou a retornar ao cinema. O longa-metragem é uma comédia-romântica norte-americana produzida pela Warner Bros e conta um elenco completamente asiático.
“Quando Podres de Ricos saiu e eu vi meus colegas atores asiáticos na tela, eu queria estar lá com eles. Liguei para um agente amigo meu e perguntei se ele queria me representar, e ele disse que sim. Duas semanas depois, recebi uma ligação sobre esse filme estrelado por Michelle Yeoh, escrito e dirigido pelos Daniels [Kwan e Scheinert] e Waymond era um dos protagonistas.”, começou o artista. “Quando decidi voltar a atuar, pensei que conseguiria pequenos papéis aqui e ali, mas nunca em minha imaginação mais louca pensei que um roteiro como esse estaria na minha frente e proporcionaria uma oportunidade de fazer um teste para um dos melhores papéis que eu já li”, finalizou o ator.
No entanto, Ricardo Oshiro opinou que a vitória de Ke no Oscar pode ter se dado ao fato de o ator ser a representação viva do ideal de ‘sonho americano’.
“Eu acho que ele tem aquele tipo de história que Hollywood adora, de superação. Eu vim como imigrante, em um navio, fiquei em campo de concentração, depois de tantos anos cheguei aqui... Ele é realmente a representação desse sonho americano se realizando, o self-made man”. O ator ainda frisou: “É inspirador, tem a ideologia americana.”
A vitória de Parasita como Melhor Filme no Oscar de 2020 mostrou a potência no cinema sul-coreano. No ano seguinte, Minari: Em Busca da Felicidade foi indicado a seis categorias e levou para casa a estatueta de Melhor Atriz Coadjuvante, com a interpretação de Yuh-jung Youn. A artista se tornou a primeira mulher sul-coreana a ganhar a categoria. Para além das produções dramáticas, Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis mostrou ao mundo que a Marvel também é capaz de apresentar um super-herói amarelo.
No entanto, o fenômeno envolvendo o sucesso do cinema asiático nos anos recentes não está presente apenas nas telonas, podendo ser observado também em plataformas de streaming. Empresas como Disney, HBO e Netflix passaram a desenvolver narrativas com personagens centrais de origem oriental. As produções Alice in Borderland (Japão), Round 6 (Coreia do Sul) e Garota de Fora (Tailândia) entraram para a lista de títulos mais assistidos nos anos de seus lançamentos. O continente asiático passou a perceber que a exportação de produtos culturais pode ser usada como uma estratégia de soft power, trazendo lucros às nações que souberem utilizar produções audiovisuais para expansão comercial.
Ricardo é consciente deste fator mercadológico e levantou uma importante pauta ao questionar como as vitórias asiáticas no Oscar 2023 afetam a realidade enfrentada por artistas amarelos fora dos Estados Unidos.
“Eu sou brasileiro de ascendência asiática. A gente aqui parece que fica sempre surfando na onda do que acontece fora. No caso, a de cultura pop asiática. Agora, isso me representa como brasileiro de biotipo amarelo? Acho que não, eu não posso me iludir.”