Por Khadijah Calil
Chega o temido fim do mês e Ana se prepara para um doloroso ciclo menstrual e, junto com ele, um período de tortura. Vômitos, náuseas, dores fortes de cabeça e pelo corpo, desmaios e um fluxo de sangue que sempre a assusta. Desde sua primeira menstruação, aos 14 anos, Ana enfrenta esses fatores incapacitantes mensalmente, mas sempre escutando de sua mãe que era mal de família, algo que ela também havia passado. Com o tempo, a adolescente assustada se transformou em uma mulher em alerta.
A longa saga nas filas do SUS para conseguir uma consulta ginecológica já fazia parte de sua realidade há tempos, com idas e vindas sem respostas. Seus pedidos de ajuda, feitos através de relatos aos médicos, eram constantemente desconsiderados, sendo tratados como algo normal do corpo feminino e sem nenhum encaminhamento para exames específicos. A intensificação dos sintomas não era o único motivo que a preocupava, pois ela havia se casado e tentava engravidar, mas sem sucesso. Buscando ajuda, ela modificou seu discurso, abordando a questão da fertilidade, mas o suposto profissional da saúde justificava o problema dizendo que era apenas estresse do trabalho, sem investigar a fundo, de novo. De pessoas à sua volta chegou a ouvir que o problema poderia ser a performance sexual dela e do marido, como a falta de preliminares. Aquilo não só não foi convincente para Ana, mas também fez com que ela se culpasse por essa possibilidade.
Sozinha, numa luta praticamente invisível aos olhos alheios, começou a buscar informações por conta própria. Ana chegou a fazer parte de programas para desintoxicação do corpo, mudando seus hábitos na esperança de ajudar no sonho da gestação, mas nada dava certo. Junto a isso, ela fez muitas pesquisas, tentando descobrir a possível causa de tudo aquilo, e se deparou com uma palavra estranha: Endometriose. Apesar de não encontrar muito conteúdo sobre e sem nunca ter ouvido falar, as descrições batiam com suas vivências dolorosas. Se agarrando nessa opção, foi atrás de uma nova consulta pela rede pública de saúde. Nesse ponto ela já havia perdido as contas de por quantas consultas havia passado.
Ao entrar no consultório, Ana se depara com o ginecologista da vez, um homem de meia-idade com um semblante não muito convidativo que foi direto ao ponto perguntando o que ela tinha. O médico nem a espera concluir e pergunta se ela sabe como era o fluxo menstrual de sua mãe. Ela responde o que sabia, que era como o dela. Isso já bastaria para ele justificar tudo com a genética, mas ela se adianta e menciona seu palpite sobre a Endometriose. Nesse momento, o médico diz que vai fazer um exame de toque para averiguar, mas por algum motivo, ele parece ofendido com a menção de algo diferente do que ele tinha superficialmente diagnosticado.
Deitada para ser examinada, Ana sente um objeto ser inserido em sua vagina, parecia uma espécie de coletor, sem qualquer explicação prévia sobre o que estava sendo feito ou para que servia. O médico, impassível, observa seu rosto, que já denunciava desconforto e dor, e começa a mover o coletor de um lado para o outro, tão profundamente que parecia tocar seu útero. Então, com frieza, ele diz que se ela tivesse Endometriose, não aguentaria aquilo que ele estava fazendo. Sua fala grosseira foi abruptamente interrompida pelo grito estrondoso de Ana, um grito de dor tão intenso que ela ficou atordoada, suando frio. Ela só queria sair dali o mais rápido possível. Se vestiu e notou vários olhares voltados a ela no caminho até a saída. Seu grito provavelmente ecoou pelo prédio, mesmo assim, não foi suficiente para transmitir o trauma que ficou marcado naquele dia.
No meio disso tudo, Ana passa por uma mudança dentro do seu estado capixaba e vai morar na cidade de Vitória. Na capital, ela se depara com muitas oportunidades novas e acaba conseguindo um emprego. Um dos primeiros passos da artista foi conversar com sua mais nova chefe sobre sua situação de longa data. Por sorte, a empatia da empregadora foi instantânea, respondendo a Ana que poderia trabalhar de casa quando não se sentisse bem. Esse trabalho já estava fazendo muito bem a ela, além de trabalhar com arte — algo que amava — ainda teria plano de saúde como benefício e um ambiente acolhedor.
Após um longo período com receio de enfrentar a insensibilidade diante de suas dores, Ana esperava que com a rede privada de saúde as coisas seriam diferentes. Na sua primeira experiência, ela logo percebeu os privilégios: a agilidade para agendar uma consulta com um ginecologista. Relatando, mais uma vez, o seu discurso de dor – que já vinha repetindo exaustivamente – ela o fez com um certo entusiasmo, pela primeira vez fora do SUS. O médico, ouvindo com atenção, a encaminhou para exames de ultrassom e ressonância magnética da pelve.
Já com os resultados, o ginecologista confirmou o diagnóstico: tudo o que Ana enfrentou era, de fato, Endometriose, no último estágio da doença. As palavras do médico chegaram aos seus ouvidos como um alívio profundo. Embora estivesse diagnosticada com essa condição crônica, pelo menos agora ela tinha uma explicação. Ela não estava sendo exagerada ou maluca, como haviam feito ela acreditar. Tudo o que sentiu, finalmente, tinha uma causa. No entanto, a notícia da infertilidade veio devastando seus planos. Sua decepção foi suavizada pelo acompanhamento psicológico, mas a dor ainda permanecia ali, viva e latente.
Enfim, é marcada a cirurgia com urgência. Seria a primeira operação cirúrgica de Ana e era impossível ver um resquício de medo em seu rosto, apenas uma ansiedade por dias melhores. Mesmo o plano de saúde não cobrindo os valores exorbitantes da operação, aquilo era prioridade, e Ana usou suas suadas economias para pagar o que ela pensava que seria a solução de seus problemas.
Feita a videolaparoscopia, o cirurgião lhe explica o repouso. E assim foi, atenta com todos os cuidados. Ana voltou ao médico para avaliar o pós-cirúrgico e aproveitou para informar que ainda sentia muito desconforto. O médico disse ser normal até o organismo se recuperar totalmente. Passou 1 mês, 2 meses, 3...E as dores de Ana conseguiam estar piores do que antes da cirurgia. Assustada e devastada por suas expectativas de melhora não estarem acontecendo, ela procura outro médico de seu plano de saúde. Apelando para juntar tudo o que tinha: exames, suas experiências e, inclusive, tirou foto de um dos coágulos que costumavam sair junto da menstruação. Desespero definia sua situação, pois não era possível que aqueles profissionais, que estudaram anos e anos, não conseguiam ajudá-la.
Um fio de esperança
Por uma coincidência muito boa, ao chegar nesse outro consultório, a médica ginecologista era uma mulher, que tinha sua área especializada em Endometriose. Ao ouvir e ver tudo aquilo, a ginecologista não conteve as lágrimas. Ela estava habituada com discursos de dor e luta de suas pacientes e mesmo assim se emocionou ao ver que Ana passou não só pelo desamparo da desinformação, mas por negligência e, por fim, falha médica em sua operação cirúrgica. O médico que havia a operado não era especialista em Endometriose e acabou não retirando corretamente todos os focos, que a doutora viu que já haviam se espalhado pelo abdômen de Ana. Ela precisaria passar por uma nova cirurgia.
Com a ajuda financeira de seu marido, ela se submeteu a outra operação, mais cara e desgastante, com uma equipe de 5 médicos e mais de 10 horas de cirurgia. Por fim, foi um sucesso, apesar dos danos encontrados...A cirurgiã revelou que foi necessário remover o útero e 20 cm do intestino, devido às lesões causadas pela Endometriose. Mesmo com medo, Ana não se impressionou, pois já sabia que havia algo errado com seu corpo há muito tempo.
Já no fim de sua longa recuperação, Ana percebeu que as dores não estavam mais ali, mas restavam as memórias. Perto das datas que costumava ter seu ciclo menstrual, ela sentia seu corpo se tensionar, ficando rígido em algumas partes, como se preparasse para as sensações dolorosas que estava acostumada e forçada a sentir por mais de 30 anos.
Hoje, aos 37 anos, Ana reflete sobre sua trajetória e descreve tudo o que viveu como uma experiência profundamente revoltante. Junto ao seu marido, está na fila de adoção desde 2021, em busca de realizar o sonho da maternidade, que lhe foi cruelmente negado. Sua saúde ainda carrega sequelas, e ela enfrentará uma terceira cirurgia, desta vez no intestino, devido ao diagnóstico tardio e os erros médicos que comprometeram seu bem-estar.
A Endometriose é uma doença ginecológica crônica que afeta cerca de 10% das mulheres em idade reprodutiva no Brasil, impactando cerca de 6 milhões de brasileiras. Caracterizada pela presença de tecido semelhante ao endométrio fora do útero, a condição pode causar dor intensa, infertilidade e outros sintomas debilitantes, comprometendo significativamente a qualidade de vida das portadoras. Um dos maiores desafios é o diagnóstico tardio, que costuma levar de 7 a 10 anos, o que agrava tanto o sofrimento das pacientes quanto a progressão da doença. Além disso, nenhum estudo até hoje define exatamente as causas e qualificações da doença, o que causa a falta de informações precisas e um grande despreparo dos profissionais da área, fazendo com que o direito à saúde se torne, muitas vezes, uma promessa distante e mal cumprida.
A experiência pessoal de Ana se reflete em suas obras. A artista critica o olhar da sociedade sobre a questão feminina e busca conscientizar sobre a importância de dar voz ao corpo e de reconhecer que sentir dor não é normal. Além de compartilhar sua própria história, Ana lembra que uma a cada dez mulheres no Brasil enfrenta a invisibilidade dessa doença silenciosa, que precisa ser reconhecida e tratada com a devida seriedade.