Arte tradicional e NFT confrontam valores na criação digital

Os tokens não fungíveis estão redefinindo o valor e o propósito da arte na era digital, trazendo mudanças e preocupações ao mercado
por
Beatriz Tiemy, Ricardo Dias Filho
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28/09/2023

Em um passado não muito distante, os NFTs, conhecidos como "tokens não fungíveis", foram aclamados como uma revolução na criptografia e na arte digital. Entretanto, um estudo intitulado "Dead NFTs: a evolução do mercado de NFTs", conduzido pela comunidade de especialistas em finanças e tecnologia blockchain conhecida como DappGambl, identificou uma tendência oposta. Após uma análise minuciosa de mais de 73 mil coleções de NFTs, os pesquisadores revelaram que aproximadamente 70 mil delas agora possuem um valor de mercado equivalente a zero Ether (ETH), a segunda criptomoeda mais popular no universo dos NFTs. Em termos práticos, isso implica que 95% dos NFTs atualmente não têm valor monetário algum, marcando uma queda notável para ativos que geraram um movimento de mais de US$17 bilhões em 2021. Estima-se que cerca de 23 milhões de investidores estejam em posse desses "tokens não fungíveis", que, ao que parece, perderam completamente sua utilidade e valor prático.


Nessa investigação, um grupo de pesquisadores está dedicado a desvendar o enigma por detrás da gradual extinção de uma espécie de macacos expressivos. A notável conexão entre essa espécie e a "Bored Ape Yacht Club", uma coleção de arte digital que recentemente perdeu o brilho de sua exclusividade, está lançando luz sobre um fenômeno surpreendente. Nos últimos meses, os valores das peças dessa coleção despencaram para cerca de modestos US$ 53 mil, um contraste chocante em relação aos preços exorbitantes que eram comuns anteriormente, incluindo a compra notável de uma dessas figuras digitais por mais de US$ 1,29 milhão pelo cantor canadense Justin Bieber.

"The Creation of Pepe, peça de Lucas Marculino
"The Creation of Pepe, peça de Lucas Marculino


O fenômeno atraiu até mesmo a atenção de celebridades mundialmente conhecidas. Neymar, por exemplo, demonstrou grande entusiasmo pelo mercado de arte em NFT ao adquirir duas obras da coleção "Bored Ape Yacht Club" em 2022, investindo o equivalente a R$6,2 milhões. Outras figuras famosas, como Jimmy Fallon, Eminem, Snoop Dogg, Post Malone, Paris Hilton e Serena Williams, também injetaram milhões de dólares em suas coleções de NFTs entre 2021 e 2022, antes que esses ativos perdessem o brilho que outrora os envolvia.


Os NFTs têm conquistado os holofotes nos últimos anos, transformando a maneira como concebemos a propriedade e a comercialização de ativos digitais. A ideia por trás dos tokens é criar um registro digital de propriedade para ativos digitais, como arte digital, vídeos, música, itens de jogos, artigos colecionáveis e até propriedades virtuais em mundos virtuais. Cada NFT é armazenado em uma blockchain, geralmente a blockchain Ethereum, que garante a autenticidade, a rastreabilidade e a propriedade única do ativo. A blockchain é um registro público e imutável que torna praticamente impossível falsificar ou duplicar NFTs.
Embora os NFTs tenham ganhado reconhecimento global recentemente, sua história remonta a 2017, quando o desenvolvedor Matt Hall e o artista virtual CryptoPunks lançaram os primeiros tokens não fungíveis na forma de avatares digitais colecionáveis chamados "CryptoPunks". Na época, o potencial dos NFTs como uma revolução na economia digital estava apenas começando a ser vislumbrado.

Arte NFT
"The Last web3 Supper", uma das obras mais famosas do artista Lucas Marculino


A origem dos NFTs remonta a 2017, quando o desenvolvedor Matt Hall e o artista virtual CryptoPunks lançaram os primeiros NFTs em forma de pequenos avatares digitais colecionáveis chamados "CryptoPunks". No entanto, a popularização dos NFTs ocorreu em 2020 e 2021, quando artistas, músicos e celebridades começaram a adotá-los para vender obras de arte, músicas exclusivas e outros ativos digitais. Um marco importante foi a venda de uma obra de arte digital intitulada "Everydays: The First 5000 Days" do artista digital Beeple por US$ 69 milhões em um leilão da casa de leilões Christie's em março de 2021.
Segundo Nietzsche, a arte, em particular a tragédia, permitia que os seres humanos confrontassem e reconciliassem as forças aparentemente opostas da Apolo (representando o racionalismo, a ordem e a beleza) e do Dionísio (representando o caos, o instinto e a paixão). Através da tragédia, as pessoas podiam abraçar tanto a razão quanto o irracional, enfrentando os desafios da vida e a inevitabilidade da morte. A arte, nesse sentido, não era apenas uma expressão estética, mas também uma forma de dar significado à existência humana e de explorar as complexidades da condição humana.


Hoje, à medida que se observa o mercado de NFTs e a monetização da arte digital, surge a questão de como essa comercialização afeta a integridade da arte. O foco excessivo nos valores financeiros pode obscurecer a capacidade da arte de provocar reflexões, de transmitir emoções profundas e de questionar as normas sociais. Há uma preocupação de que, quando a arte se torna um veículo principalmente para o lucro, seu verdadeiro propósito seja comprometido.


A tendência de investir em NFTs por seu potencial de retorno financeiro levanta questões sobre se a arte está perdendo sua essência como meio de expressão criativa e social. Deve a arte ser reduzida a uma mercadoria valiosa, além de reafirmar seu papel como uma voz poderosa na cultura, capaz de inspirar, provocar pensamentos e promover mudanças.


Afinal, o que é arte?


Jonnefer Francisco Barbosa, professor do curso de Filosofia da PUC-SP, afirmou que uma definição da arte a partir dos objetos artísticos fica sempre limitada. Ele destacou que historicamente, em longos períodos da chamada história ocidental, o conceito de arte não existia como uma figura autônoma. Ele mencionou que no mundo grego, por exemplo, não havia uma distinção clara entre arte e outras atividades como Tecneia e Poiesis. O conceito de arte, de acordo com o docente, é uma criação moderna ligada ao ocidente, e ele situou esse desenvolvimento em um período específico, que pode ser demarcado entre os anos 1400 e 1500, nos séculos XV e XVI.


Durante esse período, Jonnefer Barbosa explicou que certas atividades e resultados específicos, bem como as obras resultantes dessas atividades, passaram a ser consideradas especialmente artísticas. Essas obras passaram a ser vistas como tendo independência e autonomia, seja no âmbito visual, como pinturas e esculturas, no âmbito auditivo, como música, ou no âmbito das gestualidades, como a dança. Ele enfatizou que surgiu um campo específico de produtos artísticos e objetos artísticos que ganharam independência em relação ao que na antiguidade era chamado de ofícios, como a atividade técnica dos artesãos, conhecida na antiguidade grega, como "banausos”.


Para o filósofo Platão, a arte estava intrinsecamente ligada ao mundo das ideias e da realidade transcendental. Ele acreditava que o mundo visível era uma mera sombra do mundo das ideias perfeitas e imutáveis. Na visão platônica, a arte imitava essa realidade ideal de forma imperfeita e, portanto, era considerada uma imitação da imitação. Platão também tinha preocupações morais em relação à arte, argumentando que ela poderia influenciar negativamente as emoções e a moral das pessoas. Ele preferia uma forma de arte que promovesse valores éticos elevados e educação, em vez de simplesmente buscar a imitação da realidade.


Aristóteles, por outro lado, tinha uma visão mais pragmática da arte. Ele acreditava que a arte tinha o poder de imitar a realidade, mas que essa imitação podia ser feita de maneira habilidosa e criativa. Para Aristóteles, a arte era uma forma de mimese, ou imitação da vida, que permitia às pessoas compreenderem melhor o mundo ao seu redor. Ele reconhecia que a arte podia evocar emoções e catarse, proporcionando uma experiência emocional e intelectual enriquecedora para o público.


Uma das principais preocupações geradas pelo advento dos NFTs está relacionada à autenticidade da arte. Enquanto as obras de arte tradicionais muitas vezes passam por processos rigorosos de autenticação e proveniência, os NFTs enfrentam desafios distintos. A facilidade de criar e vender NFTs pode abrir espaço para a produção em massa de ativos digitais, levantando a questão sobre o que se pode definir verdadeiramente uma obra de arte autêntica. A relação entre valor monetário e autenticidade torna-se, assim, um dilema que abala a essência da criação artística.


Jonnefer explicou como poderíamos caracterizar o que era arte e o que não era. Ele observou que o conceito moderno de arte, que teve início por volta de 1400, estava vinculado ao conceito de artista, e antes disso, mesmo que houvessem quadros, imagens, mapas e ícones, eles não eram definidos como arte, e o conceito de arte não desempenhava nenhum papel anteriormente. Ele também mencionou que muitas imagens devotas, como as religiosas, feitas antes desse período, não enfatizavam os artesãos que as criavam, mas o conceito de artista se tornou central no Renascimento. O professor ainda destacou que Giorgio Vasari escreveu um livro canônico, "A vida dos artistas", que desempenhou um papel importante na definição moderna da arte como um todo.


Thiago Radice, artista digital, destacou que há uma comparação sendo feita com a especulação de obras de arte, uma prática que existe há séculos. No entanto, ele ressaltou que a diferença fundamental está no fato de que essas obras de arte tradicionais são genuínas expressões artísticas, enraizadas em um processo criativo autêntico, enquanto os NFTs podem ser percebidos como criações geradas de maneira mais comercial e rápida, visando principalmente o lucro. A verdadeira autenticidade na arte não está relacionada ao valor monetário que ela pode gerar, mas sim ao sentimento que ela evoca no espectador. Ele argumentou que a arte não deve ser reduzida a meros ativos financeiros, mas deve permanecer como uma forma de expressão que transcende o valor material.


Quanto à integridade da cena artística, o artista compartilhou sua opinião de que a arte gerada por inteligência artificial (IA) pode ter um impacto potencialmente mais negativo do que a arte NFT. Ele explicou que, de uma forma ou de outra, a comercialização de NFTs tende a ser nichada ou elitizada, o que, de certa forma, limita seu alcance e impacto prejudicial. No entanto, ele apontou que a arte gerada por IA pode ter um alcance mais amplo e, portanto, um impacto mais abrangente na cena artística. Outra fragilidade exposta pelo fenômeno é a possível inversão de prioridades entre o valor financeiro e o valor artístico. A busca por lucros rápidos pode eclipsar a valorização da arte por sua expressão, inovação e capacidade de provocar emoções profundas. Os NFTs, muitas vezes, são comercializados como investimentos em potencial, e essa mentalidade pode comprometer a integridade da criação artística, onde o foco deveria ser o impacto cultural e emocional.


NFTs: este é o futuro da arte?


De acordo com Jonnefer Francisco Barbosa, os NFTs, ou tokens não fungíveis, estão mais associados à comercialização de ativos digitais do que à esfera artística. Em sua análise, ele ressalta a longa e intrínseca relação entre a arte e o mercado ao longo da história, começando desde a Renascença até os tempos modernos, quando a arte muitas vezes foi considerada uma mercadoria de alto valor.
Entretanto, Jonnefer argumentou que os NFTs não teriam um impacto direto no que tradicionalmente entendemos como arte. Ele explicou que o campo da arte já tinha evoluído para um conceito mais autônomo e aberto, onde a criatividade e a expressão artística muitas vezes transcendem os limites tradicionais. Portanto, para ele, os NFTs eram mais uma representação de um índice mercadológico com características criptográficas do que uma obra de arte em si.


No caso do artista Thiago Radice, ele compartilhou sua perspectiva sobre o impacto do NFT nas artes. De acordo com suas palavras, com a chegada dos NFTs às artes, muitos viram a oportunidade de criar uma suposta escassez de produtos digitais, o que levou muitas pessoas a se envolverem profundamente com o objetivo de monetizar seu trabalho. No entanto, Radice observou que, para alguns artistas, essa nova abordagem acabou se tornando o foco central de suas carreiras, e até mesmo de suas personalidades.
Ele expressou preocupação de que alguns artistas, que anteriormente se dedicavam a criar obras de arte inspiradoras e desafiadoras, tenham passado a produzir trabalhos padronizados, sem vida e carentes de personalidade. Essas peças, segundo sua observação, compartilham uma base comum, com mudanças superficiais, como uma simples "mudança de pele". Radice enfatizou que não critica aqueles que venderam suas obras de arte através dos NFTs para atender às necessidades financeiras mensais, mas considera difícil justificar a ideia de abandonar anos de dedicação artística e desenvolvimento criativo em prol dessa abordagem.


NFTs e a economia 


Os NFTs  causaram mudanças no cenário da economia digital, gerando debates e questões profundas. Esta tecnologia baseada em blockchain torna possível autenticar e negociar ativos digitais únicos, que inclui diversos segmentos digitais como obras de arte, vídeos, tweets e até  memes, conferindo-lhes valor e exclusividade. 


Co fundador, Rodrigo do Caramelo Club projeto social que une universo das NFTs e arrecadações destinadas a ajudar animais de rua, explica um pouco sobre o que são NFTs.


Por um lado do debate se defende a ideia dos entusiastas do NFT que veem esta inovação como uma revolução na monetização das criações digitais. Até facilitando o processo de venda dos artistas,  agora podem vender suas obras diretamente aos colecionadores, sem passar por intermediários, e receber royalties por cada revenda. É uma mudança  que garante a independência maior financeira dos criadores e traz novas fontes de rendimento na economia digital, ampliando horizontes, segundo o projeto ARCCA que é um projeto que une a arte e a tecnologia para a preservação e criação de memórias urbanas diz “A tecnologia blockchain permite que esse ativo digital seja negociado diretamente do artista para seu público, permitindo também um rastreio da propriedade intelectual da obra, bem como a imutabilidade da criação”
No entanto, surgiram alguns pontos que causaram preocupações e controvérsias. O mercado de NFT enfrenta críticas no quesito sustentabilidade ambiental por ter um alto consumo de energia associado ao blockchain, com foco em redes que utilizam mecanismos de consenso de prova de trabalho.

 
Surge também uma  preocupação no quesito de investimento, em relação ao campo especulativo, com o aumento de preços pode gerar grandes perdas financeiras aos investidores. Um ponto de grande preocupação entre artistas em contrapartida à independência financeira é o fato de possíveis cópias das suas obras de forma não autorizada, mesmo os NFTs garantindo uma autenticidade dos ativos digitais.
A pirataria digital vem crescendo o debate da necessidade de leis em relação à tecnologia que deve se adaptar à proteção dos direitos dos criadores no mundo NFT. Ao mesmo tempo que os NFTs apresentam um novo mundo fértil e cheio de possibilidades de inovação e experimentos, é necessário pensar em uma integração responsável  e bem planejada, para que seja uma economia digital segura e sustentável.

Arte NFT
"The Snow Monkey", uma das obras da coleção Koko Monkes, do artista Lucas Marculino


Os NFTs vieram não somente para desafiar a forma em que a arte é pensada, mas também desafia as noções tradicionais de propriedade e direitos de autor. Devido ao uso da tecnologia blockchain, o NFT expande o horizonte para novas maneiras de proteger e transferir direitos de propriedade intelectual. 


Os tokens representam ativos digitais únicos e indivisíveis que são registrados na blockchain, provendo uma  autenticidade e propriedade indiscutíveis. Por meio de contratos inteligentes, os criadores podem incluir direitos específicos em NFTs, incluindo royalties por cada revenda, assim fazendo com que cada vez mais os ativos digitais se valorizem. Virando o jogo para artistas e criadores de conteúdo, pois fornece para eles um fluxo contínuo de receitas de negócios futuros que não é possível com os modelos de vendas tradicionais. Além disso, os NFTs deram uma nova perspectiva ao conceito de propriedade, permitindo aos compradores não apenas uma cópia digital, mas a autenticidade do item digital. Isto quebra a ideia tradicional de que as cópias digitais são infinitamente replicáveis ​​e subvalorizadas. 


Mas esta inovação tecnológica também levanta questões jurídicas e éticas. O panorama jurídico ainda está em evolução e é importante garantir que os direitos dos criadores sejam adequadamente protegidos e que os direitos de propriedade intelectual sejam geridos de forma justa e transparente. 

Examinar como os NFTs desafiam as noções tradicionais de propriedade e direitos autorais revela o enorme potencial  para uma economia digital mais inclusiva e dinâmica. No entanto, é necessário criar um quadro jurídico forte e normas éticas para garantir um equilíbrio entre a inovação tecnológica e a proteção dos direitos dos criadores. Cada transação está moldando o futuro dos NFTs e seu impacto na propriedade intelectual, e a comunidade global está acompanhando esses desenvolvimentos. 

Em relação a aplicação da NFTs no dia a dia e o como os consumidores utilizam e quais benefícios os trazem, Rodrigo do projeto Caramelo Club, explica um pouco esse fato.


No processo de compreensão e exploração das nuances entre a arte tradicional e os NFTs, ficou claro que ambos têm seu espaço e valor únicos no cenário da arte contemporânea. Embora a arte tradicional envolva história, interação humana e materialidade, os tokens representam a vanguarda da digitalização e a potencial democratização do acesso à arte. O choque de valores entre estas formas têm suscitado debates importantes sobre a autenticidade, a propriedade e a própria natureza da arte. O futuro parece caminhar no sentido da coexistência, onde cada forma de expressão, tradicional ou digital, possa ser valorizada pela sua especificidade e influência no mundo da criação e avaliação artística. A intersecção destes campos promete moldar uma paisagem em que a diversidade das expressões artísticas é a verdadeira campeã, enriquecendo a paisagem cultural e desafiando as nossas percepções da arte.

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