Por Antonio Bandeira
Era uma sala escura, na qual a arquitetura não permitia a entrada da luz solar, os dias de Édson Antunes eram marcados pela previsibilidade das horas em um período quase sem fim. Os dias se emendavam, um após o outro, sem a limitação do que o que era terça ou quarta-feira. O ambiente era silencioso, exceto pelos sons distantes de alas do hospital que se misturavam com os gritos de seus próprios pensamentos. Édson, quando conseguia dormir, despertava completamente imobilizado. Braços presos contra o corpo, em uma camisa de força que limitava até os movimentos mais simples. Não podia ajustar a posição do seu corpo, tocar o seu rosto, ou pintar. Não podia sequer usar o banheiro de forma descente.
Por cerca de quatorze dias Édson ficou trancado em uma das alas do Hospital Psiquiátrico Engenho de Dentro, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Ele foi um dos últimos pacientes a passar pelos tratamentos tradicionais da Psiquiatria. Por mais de duas semanas, o artista ficou sem ver a luz do Sol, e conta que tinha dias em que acordava sujo e “mijado”, com seus movimentos restritos pela camisa de força. Até que, ainda “amarrado”, foi liberado para tomar um banho de sol. Ali reencontrava o pátio, onde estava acostumado a passear, que por um longo período parecia muito distante.
Suas tentativas de suicídio começaram ainda criança. Nesse momento, Édson procurou ajuda – ajuda que não encontrava em casa - e pelo encaminhamento de um médico, encontrou o instituto, momento que descreve como um dos mais importantes da sua vida. O artista não contou ao certo quando foi internado, mas lembra que, embora hoje olhe com bons olhos, passou por um começo difícil na instituição. No início, ele ficava isolado em seu canto, conversava apenas com os “doutores”. Ele se descreveu, na sua chegada ao Hospital, como um “Édson isolado e fechado, trancado em um mundo que não existia, um mundo só de fantasmas.
O artista viveu, ao longo dos anos, momentos muito tristes no hospital. Sofreu e viu muitas pessoas sofrendo. Em seus primeiros dias no local a frustração era grande, as palavras ficavam presas na garganta e não conseguia se comunicar com outros pacientes ou com os enfermeiros. A sensação de opressão causava um desconforto físico e psicológico, gerando uma ansiedade que consumia seus dias. Mas, com o passar do tempo, o paciente se acostomou com o local e passou a enxergar na camisa de força um escudo que seu “guardião” (o médico) usou pra lhe proteger.
Édson contou que foi um dos últimos pacientes do hospital a ser tratado com a camisa de força, embora seu relato não bata com a descrição de funcionários que dizem que quando o paciente estava internado o método já não era mais utilizado. Ainda assim, Édson foi capaz de descrever como eram seus dias na camisa de força.
Já internado no hospital, ele entrou em contato com a arte, através do Museu do Incosciente e dos tratamentos aplicados por Nise, o que lhe apresentou uma nova visão de mundo. Tinta, tela e cor representam, para ele, uma nova vida, um novo Édson, apaixonado por viver, casado e pai de dois filhos. Édson contou que a arte terapia foi a verdadeira virada de chave em sua vida.
Apesar de todo o sofrimento passado ali, ele continua a frequentar constantemente o local. Édson Antunes, é, hoje, um artista plástico e ex-paciente do instituto. Um homem com cerca de 60 anos, cabelos grisalhos e mais ou menos 1,75m de altura, que anda sempre com roupas pintadas por ele próprio e com as mãos sujas te tinta.
Onde já funcionou o Hospital Engenho de Dentro, ou Hospital Pedro II, um dos maiores e mais antigos hospitais psiquiátricos do País, funciona hoje o Instituto Municipal de Assistência à Saúde Nise da Silveira, espaço dedicado a memória e à promoção da saúde mental. Mais precisamente no prédio da Casa do Sol, o antigo Núcleo de Atenção a Crise (NAC) do Hospital Pedro II, está hospedado o Núcleo de Cultura, Ciência e Saúde Espaço Travessia, espaço cultural-artístico, ponto de encontro de artistas, usuários da rede de saúde mental educadores e coletivos, das mais diversas origens, atuações e trajetórias, e lugar de realização de experimentos e ocupações artísticas.
O Centro Cultural (Espaço Travessia) ocupa dois andares de enfermarias desativadas do hospital, dividos em quatro alas, estando as alas 01 e 02 no terceiro andar do edifício, e as alas 03 e 04 no quarto andar. Por sua vez, cada ala é composta por um salão grande, cozinha, corredores, um salão médio, banheiros e 7 quartos, antigamente denominados de baias, agora transformadas em pequenas galerias de arte e ateliês, onde são realizadas ocupações artísticas. Em uma dessas salas se encontra o ateliê de Édson.
No ateliê o artista produz obras, que vão de mandalas coloridas a esculturas em barro. Mas, ele destacou os trabalhos de sua série chamada “Minhas Carrancas, Meus Pesadelos”, nos quais a tonalidade era mais escura, com tinta preta e tons de azul, características comuns aos quadros em que pintava cenas ou pessoas. Em uma dessas obras, há no centro do quadro um homem negro, em um fundo azul, e no lugar dos olhos, boca, orelhas, nariz e cerébro havia escorpiões. Para ele, essa série descrevia sentimentos e traumas já vividos, ainda presentes em sua memória, mas que, hoje, foram substítuidos por uma vida nova.
Por fora, um prédio típico da arquitetura modernista brasileira, amarelo, alto, mas que se caracteriza mais pela sua largura, com brises por toda sua extensão, que permitem a entrada do ar, mas ao mesmo tempo dificultam a entrada de chuva e protege da luz natural. O caminho de cimento entre árvores altas e jardins leva ao edificio onde o concreto domina, causando uma sensação de opressão. Por dentro, o espaço com paredes grafitadas e coloridas não esconde, e nem tenta esconder, seu passado recente. A atmosfera é carregada com a memória, a história e o sofrimento de antigos pacientes. As marcas nas paredes das antigas baias preservam os gritos silenciados e as paisagens frias, ao mesmo tempo em que as pinturas, as músicas, as perfomances, as obras, preenchem o espaço de cor e ressignificam os gritos. O contexto dos traumas de onde está o Travessia é, de certa forma, transformado na potência política e artística da ocupação do espaço causando na visita uma mistura complexa de sentimentos.
Em uma dessas paredes, há uma foto de 1928 que resgata as origens do hospital. Nela vemos pacientes trabalhando na colônia agrícola do Engenho de Dentro, como o centro psiquiátrico começou. Ali foi, um dia, uma colônia agrícola para mulheres alienadas criada em 1911. Com a alta demanda de “casos incuráveis” no Hospício Pedro II, primeiro hospital psiquiátrico criado em 1852 no bairro carioca da Praia Vermelha surgiu a colônia agrícola do Engenho de Dentro. As colônias foram concebidas como um projeto terapêutico auxiliar ao tratamento do hospício tradicional. Nelas, os pacientes faziam trabalhos de lavoura e cultivavam seus próprios alimentos, sustentando as colônias com o próprio trabalho. Além de ser considerado como tratamento, muitos médicos da época as consideravam a solução econômica para a ampliação dos gastos públicos com o aumento das intituições de tratamento de alienados. A colônia que vemos na foto funcionou dessa forma até 1944, quando o Hospício da Praia Vermelha fecha e suas ações são transferidas ao Engenho de Dentro.
Nesse momento, o local deixa de ser apenas uma colônia para os casos tidos como incuráveis de mulheres alienadas e recebe todos os pacientes e acervo do antigo Hospital Pedro II, passando a ser o principal centro psiquiátrico da cidade.No local aconteciam tratamentos psiquiátricos violentos e desumanizantes, com fortes intervenções físicas e químicas, como eletrochoque (tratamento através da aplicação de correntes elétricas no cerébro dos pacientes para tentar “corrigir” os transtornos mentais), lobotomia (tratamento invasivo que envolvia a remoção de partes do cérebro, com o objetivo de controlar comportamentos considerados indesejados), confinamento e camisas de força, além de outras formas de controle físico. E assim foi por muitos anos.
Para Marcelo Valle, curador e diretor do Espaço Travessia, a memória do hospício resiste em um espaço onde se tenta criar uma ideia de pertencimento, em um jogo de subjetividades em permanente construção, um lugar de vazio e de afeto. Ali a arte é central para o funcionamento do espaço, produzindo um contraste entre o potencial criativo da arte e o histórico opressor, segregado e privado de liberdade de um hospício, de forma em que o passado melancólico é apropriado na paisagem artística.
Entretanto, ela não faz parte apenas da “história recente” do hospital. Nise da Silveira, a quem o instituto homenageia com seu nome, foi uma psiquiatra brasileira que revolucionou o tratamento de pacientes com transtornos mentais no Brasil e é a pioneira do uso de abordagens humanistas na psiquiatria. Se opondo aos métodos tradicionais já estabelecidos, a médica já defendia a arte e o afeto como tratamento.
A médica começou sua história na psiquiatria no Hospital Praia Vermelha na década de 1930, onde ela se recusava a aplicar os tratamentos agressivos. Mas, foi mesmo após sua trasnferência para o Hospital Pedro II, depois do seu tempo na cadeia durante a ditadura de Getúlio Vargas, quando foi perseguida e presa, acusada de envolvimento com o comunismo, que fez suas maiores contribuições para a área.
Nesse mesmo hospital, em 1946, cerca de 78 anos antes das entrevistas, Nise criou a Seção de Teurapêutica Ocupacional e Reabilitação, na qual eram feitas oficinas de pintura, modelagem e escultura, como uma forma de terapia ocupacional. Essa foi uma das suas maiores contribuições para a luta antimanicomial. Por meio dessas atividades, os pacientes expressavam conflitos internos, sentimentos e aspectos mais profundos do incosciente. As obras, que fomentam o autoconhecimento e a expressão criativa, produzidas na Seção, estão expostas em outra ala do hospital, o Museu de Imagens do Inconsciente, também criado pela psiquiatra. Nise é uma das responsáveis por estabelecer a conexão entre arte, inconsciente e tratamento psiquiátrico.
Embora ela tenha revolucionado o tratamento psiquiátrico, suas ideias foram apenas o começo. O projeto da época era o uso das intervenções clássicas e da estrutura do hospício, baseados nos princípios de violência e isolamento dos indivíduos. Suas ideias não tiveram a aceitação de grande parte dos psiquiatras da equipe, sendo muitas vezes negligenciadas, e os príncipios clássicos do manicômio só começaram a ser questionados no começo da década de 1980.
Esse esforço de Nise refletiu na criação da Lei da Reforma Psiquiátrica (Lei nº 10.216), sancionada em 6 de abril de 2001, marco da luta antimanicomial brasileira. A lei favoreceu a desinstitucionalização e a gradual substituição dos manicômios por serviços de atenção comunitária e ambulatorial. Entre os principais pontos da lei estão o tratamento digno, com respeito a individualidade e com o minímo de restrição à sua liberdade; a substituição dos hospitais psquiátricos por redes de serviços de atenção comunitária, criando unidades de atendimento multidisciplinar focadas na reabilitação psicossocial, os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS); a garantia da reinclusão social, incentivando políticas que proporcionam o convivívio comunitário e a inserção no mercado de trabalho; e internação apenas para casos extremos e por períodos pequenos, sendo priorizado o tratamento em regime ambulatorial.
É devido a essa lei que os dois últimos internos do instituto foram realocados para uma residência terapêutica em novembro de 2021, encerrando as atividades do hospital psiquiátrico e potencializando o processo de refuncionalização do local. Marcelo trabalha no Espaço Travessia há cerca de oito anos e acompanhou de perto a despedida do último paciente internado. Flávio foi o último morador do hospital desisntitucionalizado, dando fim a longa história de internações psquiátricas do local.
Marcelo reforçou que hospital não é moradia, que as pessoas não estão lá para morar e que, muitos, passam períodos de longa permanência. Essas pessoas, perderam o contato com a "realidade" e são privadas da liberdade. Não podem escolher o horário em que vão dormir, comer, ou mesmo as roupas que vão vestir. Com as limitações criadas pelo hospital, a vida passa a ser institutocionalizada, condenada a um certo fazer que controla sua mente e o seu corpo.
O processo de "desins" (desinstitucionalização, reduzida no dia a dia por ser uma palavra muito grande, contou Marcelo) implica no retorno a uma vida comum e no resgate da cidadania das pessoas que foram institucionalizadas. Essas pessoas, perderam o convivío social e foram privadas da liberdade, muitas vezes, por anos. Não podiam sair, escolher o horário em que iam dormir, comer, ou mesmo as roupas que vão vestir. Com as limitações criadas pelo hospital, a vida é condenada a um certo fazer que controla sua mente e corpo.
A última enfermaria do hospital fechou em 2019 e a expectativa é transformar o complexo hospitalar em um parque voltado para a população, sem perder a relação com a saúde mental, mas promovê-la. Transformando um lugar aterrorizante em lugar acolhedor, voltado para toda a população, sem perder a memória do passado.
Édson é um exemplo dessas transformação.A arte e hospital se tornaram, em suas palavras, uma salvação. Ainda hoje, o artista escuta vozes, vê gnomos e vultos e convive com fantamas de seu passado, mas consegue viver bem com isso. Sua imaginação se torna arte que pode ser vista nas suas mandalas coloridas e na série de obras “Brincadeira de Criança”, na qual o artista pinta diferentes quadros com jogos de criança, como esconde-esconde, bolinha de gude, futebol e pula-corda, em tons de vermelho, azul, amarelo e branco.
.