Arte Independente tem sustento invisível

Em meio a editais e dupla jornada, atores e atrizes lutam para exercer a profissão em um cenário difícil ao fazer teatral.
por
Laura Boechat
|
18/06/2024

Por Laura Boechat

 

A porta sanfonada vermelha e tomada por pichações, tão comuns do centro de São Paulo, lembra a entrada de uma loja de rua que não resistiu à concorrência de um mundo que corre rápido demais. Espremida entre uma oficina mecânica e uma fabricante de móveis refinados, está quase sempre fechada. Se não fosse o entra e sai por uma portinha de serviço de pouco mais de um metro de altura e uns 40 centímetros de largura, tudo faria crer que o número 1218 da Rua da Consolação é um dos quase 600 imóveis vazios da cidade de São Paulo. Mas basta cruzar a porta ordinária, sem encantos, para compreender que ali se esconde um mundo de fantasia e excentricidade. Após cruzar o longo corredor de entrada, repleto de fotos nostálgicas espalhadas pelas paredes e bonecos em tamanho real despendidos pelo teto, sobrevoando como que figuras místicas, uma sala. Dentro dela, poltronas em fileiras, dezenas delas, de um vermelho brilhante, começam a se desenhar, me lembrando um desses cinemas antigos que sobreviveram ao tsunami pentecostal. Mas então a escuridão se dissipa e enxergo adiante. Próximo ao mar de cadeiras vermelhas retrô, um palco rasteiro, intimista. Estou em um teatro.

Corredor que leva à sala de espetáculos do Teatro Commune
Entrada do Teatro Commune. Créditos: Lívia Soriano

Mal me coloco naquela cena tão distante da Consolação numa tarde dessas da semana e Augusto Marin chega esbaforido.

- "Que dia cheio, gente!", dizia ele como se estivesse num palco, falando com todos e com ninguém ao mesmo tempo. Do alto dos seus quase 1,85 de altura, Augusto usava uma camisa de botões azul, ostentava um cabelo liso e grisalho perfeitamente penteado para o lado e tinha óculos de grau retangulares que ocupavam boa parte do seu rosto. Nada parecido com o adoravelmente grotesco Pai Ubu, o personagem que ele interpreta há mais de 5 anos na peça Ubu Rei, um clássico do teatro independente paulistano.

Augusto é é ator, diretor, empreendedor, ministrador de oficinas, organizador e o que mais for necessário do coletivo e teatro independente Commune. Criado em 2003 e pautado pela Commedia dell ́Arte, o Commune é um dos tantos grupos que resiste às adversidades para o fazer da arte em uma cidade gelada, tomada pela brevidade das telas, pela correria do cotidiano e pelo desprezo às artes, estimulado por políticas que desprezam a civilidade e o pensamento crítico.

Augusto marin
Augusto Marin no Teatro Commune. Créditos: Lívia Soriano

O Commune é um retrato do que é o teatro independente no Brasil. Rememorando o teatro mambembe, que percorria diferentes vilas nos séculos XIX e XX, montando tendas e apresentando seus mundos fantásticos aos moradores locais com números circenses, grupos como o Commune abraçam a arte sem grandes estruturas e recursos disponíveis para a montagem de espetáculos que se pagam sozinhos. Experimental e alternativo, se opõe aos mecanismos impostos pelo grande mercado.

O espaço na Consolação, alugado pelo grupo em meados de 2007, foi descoberto por acaso. "Estava abandonado, totalmente largado há uns oito anos. Já foi uma pizzaria, um cursinho…", conta. Hoje, o lugar é onde acontecem os ensaios e algumas das apresentações do grupo, além de oficinas como a ministrada por Jorge Julião, que interpretou a personagem transsexual Lilica no longa "Pixote: a lei do mais fraco", para idosos com afinidade com a atuação. Esse é o lugar do coletivo, escondido em uma porta tão comum no centro da cidade, mas detentor de um mundo imaginário ao cruzá-la.

O teatro Commune é um retrato da cena independente, mas apresenta as suas facetas. Ostentar um espaço próprio para ensaios e apresentações pode ser um luxo para a maior parte das companhias independentes. Segundo o IBGE de 2021, apenas 23,3% dos municípios brasileiros possuem casas de espetáculo e teatros – o que, ainda assim, representa um pequeno avanço se comparado à pesquisa de três anos antes, quando apenas 20,6% das cidades apresentavam esse tipo de espaço. Mas os gastos para manter um teatro podem explicar o porquê do número ínfimo deles pelo Brasil.

O próprio espaço do Commune, segundo Augusto, já equivale a cerca de dez mil reais mensais. Mesmo com a casa disponível, o diretor conta que as despesas envolvidas na montagem de um espetáculo são ainda maiores. "Os gastos em geral são, primeiramente, da equipe: diretor, atores, técnicos, cenário, figurino, cenógrafo, figurinista, iluminador, sonoplasta, musicista, músico", explica. Mas as contas não param por aí. Há, ainda, o figurino, cenário e a divulgação. No caso do Commune, o coletivo conta com outras duas pessoas à parte: uma assessora de imprensa e uma social media, que faz as artes do grupo para as redes sociais, o que Augusto aponta como importante para a manutenção da peça. "Ela posta, reposta, faz vídeo, faz entrevista, é um gasto importantíssimo", opina.

Com a agenda cheia e vários espetáculos aguardando pelo retorno aos palcos, Augusto explica que, ainda assim, não é possível arcar com tudo só com o dinheiro da bilheteria, mesmo com a ajuda da divulgação. "Nosso espaço conta com 100 lugares, então a bilheteria não chega a ser significativa", esclarece. Diante do baixo retorno, acaba sendo crucial à vida do show business que não tem espaço nos grandes palcos a adesão aos editais públicos.

Ubu Rei por Carlos Garcia clbgarciamg
Augusto Marin e Fabricio Garelli em Ubu Rei. Créditos: Carlos Garcia @clbgarciamg

 

APOIO

Um dos recursos que ofereceu editais à cultura foi a Lei Federal Aldir Blanc, regulamentada em 2020. A lei, que leva o nome do compositor e cronista carioca, foi uma resposta à pandemia da Covid-19 em apoio ao setor cultural, que, na época, ficou paralisado. Durante o período, a Lei Aldir Blanc determinou repasse de R$ 3 bilhões a estados, municípios e Distrito Federal, destinados a três eixos de atuação: renda emergencial para trabalhadores da cultura; manutenção de espaços culturais prejudicados com interrupção de atividades; e apoio de projetos culturais que foram impactados pelas restrições impostas pelo período. De acordo com a pesquisa do IBGE de 2022, 2.368 editais foram distribuídos pelo Brasil, sendo o Nordeste a região mais contemplada, com 933 editais oferecidos.

Durante a pandemia, o teatro Commune permaneceu de portas fechadas. Parou por um ano e meio. O diretor conta que foi difícil. Graças à Lei Aldir Blanc, assim como muitos espaços, o Commune pode retomar as suas atividades – seguindo, é claro, todos os protocolos de segurança. Os Segredos da Commedia Dell? Arte foi à cartaz em janeiro de 2022 à partir do edital 43 da lei de fomento à cultura do Governo Federal. A peça mostra narrativas contadas por personagens fantásticos como Arlecchino, Zanni, Pantaleão, Doutor, Capitão, entre outros. Revelando a loucura, a paixão ou a vaidade dos personagens, cada um a seu modo conta histórias para matar o tempo, mas também para sobreviver – o que remete e muito aos tempos sombrios vividos durante a doença que assolou o mundo durante dois anos.

Em 2022, o ex-presidente Bolsonaro editou uma Medida Provisória que alterava leis como a Aldir Blanc, protelando o prazo para os repasses. Na ocasião, Márcio Tavares, secretário-executivo do Ministério da Cultura da época, criticou a ação afirmando que o veto presidencial à Lei Aldir Blanc era mais uma mostra do descompromisso com a cultura. Segundo Tavares, o objetivo do governo foi silenciar artistas e fazedores de cultura através da asfixia do financiamento à produção. Na sequência, o ex-secretário declarou que iria lutar no Congresso pela derrubada do veto com força porque [as leis] são vitais para a cultura brasileira. Em 2022, o Supremo Tribunal Federal decidiu, por maioria, suspender a MP alterada por Bolsonaro. No ano passado, o Congresso Federal aprovou a Lei Aldir Blanc 2, que, diferente da primeira, tem recursos assegurados até 2027, visando consolidar o Sistema Nacional de Cultura. Ao final de cinco anos, R$15 bilhões terão sido aplicados no setor.

Apesar de o Governo Federal oferecer apoio a partir de leis como a Aldir Blanc, Augusto conta que as instâncias que mais liberam editais de fomento à cultura são as Prefeituras e Governos de Estado. "Com a Secretaria de Educação, agora, a gente conseguiu um edital de circulação e foi contemplado, fizemos 'Otelo nos CEUs'", conta Augusto. A peça a que o diretor se refere, uma tragicomédia com a linguagem da comédia física de John Mowat, conta a história shakespeariana 'Otelo' de forma bem humorada, diversa e reflexiva. O "CEUs" no nome acaba funcionando como um trocadilho devido aos locais das apresentações: a comédia rodou por São Paulo nos Centros Educacionais Unificados nas unidades de Carrão, Arthur Alvim, Cidade Dutra, Parque Novo Mundo, Parque Bristol e Perus.

O edital mencionado por Augusto é um dos propostos pelo ProAC, o Programa de Ação Cultural do Estado de São Paulo, que se destina a apoiar financeiramente a circulação de espetáculos de teatro –exceto para o público infanto-juvenil– realizados por proponentes no Estado de São Paulo. Com inscrições gratuitas, o edital "Teatro/Circulação de Espetáculo" oferece cinquenta mil reais no primeiro módulo, para pessoas físicas ou jurídicas, e cem mil no segundo, exclusivo para pessoas jurídicas. Além do projeto de circulação, o Governo do Estado oferece outros editais voltados à manutenção, reforma e ampliação, produção e realização de mostras, projetos voltados à cultura popular indígena, realização de projetos audiovisuais etc. Há, ainda, os editais propostos pela Prefeitura, viabilizados pela Secretaria de Cultura. No momento, o Programa Municipal de Fomento ao Teatro da Cidade de São Paulo se encontra em sua 44ª edição.

Além dos editais públicos, por vezes, as companhias dão a sorte de serem contempladas pela iniciativa privada. "A gente levou o grupo por todo o interior pelo Sesi, que também nos contrata para fazer circulação", relembra o diretor. Apesar da existência do apoio de entidades privadas, Augusto aponta que o fomento particular é mais escasso. "A gente gostaria de ter mais patrocínio privado. Temos mais apoio do estado do que do privado hoje", conta. Mesmo tendo a possibilidade de fomento a partir dos editais, a aplicação não é tão simples quanto parece.

Mesmo com a ajuda dos editais, os entraves econômicos continuam. Augusto explica sobre a destruição do valor do ingresso afirmando que as pessoas não querem pagar porque se acostumaram com a gratuidade. Além disso, a meia-entrada também aparece como um problema já que em uma bilheteria há muitas meias-entradas, o que é justo com estudantes, mas não é justo com a companhia, porque o governo não dá nada em troca, não compensa os teatros.. Com a dificuldade para arrecadar bilheteria, a jornada dupla aparece como uma segunda via de sustento. Mas ela pode não ser nada fácil.

É o caso de Natália Albuk, professora e atriz do teatro Commune. Membro do coletivo desde 2021, Natália também leciona teatro em uma escola judaica na Faria Lima. "Tem semanas que fica uma loucura. Às vezes eu perco alguma aula, às vezes peço pra alguém me substituir…". Felizmente, além de contar com a parceria dos outros professores, Natália também tem o apoio da equipe do teatro, que busca entender a jornada dupla dos envolvidos e esquematiza os espetáculos para que todos possam participar, na medida do possível. "Nessa última apresentação de Otelo, o Augusto colocou [as apresentações] em horários que eu poderia estar", conta a atriz. Ainda assim, há momentos em que a solidariedade dos colegas não basta para conseguir dar conta do malabarismo de horários. "Às vezes eu perco pros dois lados", desabafa Natália, que já teve seis aulas para substituir, mas, no mesmo dia, uma apresentação. Nas seis aulas ganharia mais do que apresentação, e aí acabou perdendo dinheiro. "Também acontece de ter um teste de propaganda e não poder participar porque é no horário da minha aula, então já perdi uns cachês", conta.

Nathalia Albuk em Ubu Rei, por Carlos Garcia
Natália Albuk e Fabricio Garelli em Ubu Rei, por Carlos Garcia @clbgarciamg

Assim como Natália, muitos artistas e envolvidos no mercado do espetáculo levam uma vida de jornada dupla, mantendo o trabalho formal (de CLT em horário comercial), mas também a paixão e dedicação pelos palcos quando sobra algum tempo. Isso acontece porque, na maioria das vezes, não dá para pagar as contas só com o pagamento do ofício do coração. O problema se agrava diante do ganho por gênero. Segundo dados do IBGE, no estado de São Paulo, o rendimento médio mensal de homens no setor cultural é de R$ 4.294 enquanto o das mulheres é de R$ 2.974, uma diferença de quase 30%. No cenário nacional, o quadro não é muito diferente: homens que trabalham com cultura ganham R$ 3.116, enquanto mulheres, R$ 2.265. Mas nem mesmo a disparidade de gênero parece diminuir o amor e a sede de subir no palco. Natália diz se sentir realizada nas duas profissões, principalmente sendo atriz, que é seu maior objetivo de vida, ilustrando o sentimento de tantos artistas pelo Brasil, que lutam pelo direito de poder exercer o ofício ao qual doam seus corações.

Augusto acredita que o grande porquê de os artistas não desistirem da carreira tão penosa e cheia de obstáculos é uma paixão enlouquecida. Afirma que é como se o ato de fazer teatro fosse um alimento para a alma. "Interagir com o público, de apresentar, é alguma coisa que te renova". 

O Commune é um retrato pouco glamouroso mas realista do teatro independente. Não conta com atores globais, que atraem milhares de pessoas, e tampouco tem a força midiática de um Teatro Oficina, do emblemático Zé Celso, mas, apesar disso, são dificuldades como a busca por verba para a realização dos espetáculos, as jornadas duplas e a correria do dia-a-dia que representam a maior parte do setor cultural no Brasil. Este é um retrato mambembe do cenário, mas que é a porta de entrada para maior parte dos diretores e atores do mundo do sustento invisível das artes cênicas.

Tags:

Cidades

path
cidades

Cultura e Entretenimento

path
cultura-entretenimento