Arquitetura urbana condena as periferias ao calor extremo

Especialistas apontam concreto e falta de verde como causas de mortes silenciosas: idosos sofrem colapsos térmicos em casas sem ventilação.
por
Carolina Rouchou
|
12/06/2025

Por Carolina Rouchou

 

O sol nascia como uma lâmina sobre Perus, incendiando o zinco dos telhados antes mesmo do primeiro galo cantar. Davi despertou com a boca seca e o corpo grudento, lençóis baratos colados à pele como uma segunda pele. Do lado de fora, o asfalto da rua sem árvores já soltava vapores que distorciam o ar, transformando o horizonte num espelho quebrado. Sua avó, dona Marlene, remexia panelas no fogão a lenha, as costas curvadas sob o peso do calor que escorria em fios pelos sulcos do seu pescoço. Um olhar para o céu branco-leitoso confirmava o que os ossos já sabiam: mais um dia de fornalha.

Enquanto isso, nos jardins suspensos de um apartamento no Morumbi, o menino Rafael acordava sob lençóis de algodão egípcio. Sensores invisíveis mantinham o ar a 22°C, enquanto do lado de fora, jatos d’água automatizados regavam palmeiras-imperiais. Seu maior dilema matinal era escolher entre piscina coberta ou olímpica.

O caminho de Davi para a escola era uma peregrinação pelo deserto de concreto. Quarenta minutos sob um sol que queimava através dos chinelos rotos, as solas derretiam-se nas manchas negras de alcatrão. Muros altos de tijolos nus refletiam ondas de calor como paredes de forja, aprisionando o ar numa redoma sufocante. Terrenos baldios exalavam um cheiro ácido de lixo fermentado e plástico derretido, onde cachorros esqueléticos farejavam restos impossíveis. Nas paradas de ônibus, outdoors prometiam condomínios com florestas privativas enquanto, lá embaixo, crianças pisavam em poças de água suja evaporando a 50°C.

Paralelamente, na Avenida Faria Lima, executivos cruzavam calçadas refrigeradas por sistemas subterrâneos. Árvores centenárias plantadas em canteiros com irrigação computadorizada lançavam sombras perfeitas sobre cafés ao ar livre, onde máquinas de nebulização criavam microclimas de primavera eterna.

A sala de aula da escola municipal cheirava a desespero e química: giz úmido, suor e tinta fresca tentando encobrir mofo. Janelas sem cortinas deixavam entrar a luz que refletia nas carteiras de madeira rachada. O ventilador parado no canto era testemunha silenciosa do abandono e acumulava poeira sobre pás imóveis. Davi encostava a testa na superfície áspera, sentindo o suor correr em riachos salgados pela coluna vertebral.

Nesse mesmo horário, em um colégio particular no Morumbi, alunos em uniformes impecáveis assistiam aulas em anfiteatros com ar filtrado. Telas interativas projetavam ecossistemas tropicais enquanto sensores monitoravam níveis de CO2, garantindo que nenhum cérebro privilegiado sofresse queda de oxigenação.

Dona Marlene declarava guerra ao meio-dia. Quando o sol atingia ápice, sua casa de um cômodo transformava-se em armadilha térmica. O termômetro de plástico colado à parede marcava 42°C, número que parecia zombar da sua existência. Enchia a banheira com água reaproveitada das chuvas que a poucos dias inundaram sua rua, arrastando móveis e esperanças. Seu corpo mergulhava devagar, articulações rangendo, enquanto imagens de panelas de feijão borbulhante invadiam a mente. Enquanto isso, nas coberturas dos Jardins, diaristas limpavam piscinas aquecidas. Uniformes de brim azul colavam-se aos corpos sob o sol, enquanto as patroas reclamavam do "frio" dos 20°C mantidos por sistemas centralizados. Com sorte, os funcionários conseguiam resgatar para si alguns mililitros de água gelada, escondendo garrafas plásticas no bolso do avental.

Quando as chuvas de verão chegavam, a geografia da desigualdade revelava-se cruel. Em Perus, as ruas sem drenagem transformavam-se em rios de lama e detritos. Dona Marlene empilhava sacos de areia na porta, sabendo que a água carregaria ratos e esgoto para dentro de casa. No inverno, o frio úmido infiltrava-se nas paredes descascadas, transformando cobertores finos em armadilhas geladas.

Já no bairro de Moema, sistemas de drenagem inteligentes sugavam a água em minutos. Em dias frios, calefação embutida mantinha pisos de mármore aquecidos, enquanto residentes observavam a garoa pela janela tripla, tomando vinho ao redor de lareiras elétricas.

Mas as tardes na periferia eram desertos de movimento. Homens dormiam sob lonas amarradas em postes, suas redes balançando sobre sombras raquíticas. Crianças chutavam garrafas PET em terrenos onde, algum dia, existiram árvores. Davi voltava da escola esquivando-se de calçadas queimantes, o asfalto derretido colando-se às solas como goma quente. Contraste brutal com o Parque Ibirapuera, onde mães empurravam carrinhos de bebê com filtros UV integrados. Ciclovias com asfalto especial absorviam calor, enquanto nebulizadores criavam arcos de névoa refrescante sobre quadras de tênis.

Enquanto turistas fotografavam os chafarizes do Vale do Anhangabaú, onde executivos de ternos italianos refrescavam as mãos entre reuniões, Marlene observava o musgo avançar na parede de seu banheiro. Manchas verdes-escuras espalhavam-se como mapas de territórios hostis, alimentadas pela umidade que nunca abandonava os tijolos. A menos de 10km, nos banheiros de spa da Oscar Freire, paredes revestidas de ônix são esterilizadas com luz UV após cada uso. A umidade controlada mantinha toalhas fofas e aromatizadas, longe do espectro do mofo.

Quando a noite caía sobre as periferias, o alívio prometido era miragem. O calor irradiava do concreto como memória de um dia incendiário. Davi dormia no chão de cimento, ao lado de uma bacia com água parada que mais parecia sopa morna. Na mesma hora, nos rooftops de Pinheiros, jovens bebiam coquetéis com gelo esculpido, admirando a skyline iluminada. Aquecedores de infravermelho combatiam a leve friagem da noite paulistana, enquanto decks de madeira tropical permaneciam secos sob toldos automáticos.

Marlene caminhava até o centro comunitário onde um único ventilador soprava ar viciado. Encontrava sua antiga colega do ginásio, com pernas inchadas como troncos, sintomas de um coração que lutava contra a espessura do sangue engrossado pelo calor. Enquanto isso, no Hospital Sírio-Libanês, cardiologistas ajustavam marcapassos em pacientes que reclamavam de "estresse térmico" durante partidas de tênis em quadras climatizadas. Quando o inverno chegava com suas chuvas finas, novos sofrimentos emergiam. Em Paraisópolis, o frio úmido apodrecia remédios nas prateleiras, enquanto goteiras transformavam colchões em esponjas geladas. Crianças tossiam em quartos sem janelas, onde o mofo avançava mais rápido que o socorro público.

Os noticiários exibiam termômetros digitais em bairros nobres, mas não as lajes de Perus ao meio-dia, superfícies nas quais ovos fritavam em minutos. Nem as filas em Guaianases, onde idosos cambaleavam tontos pelos vapores de esgoto fervente. Tampouco mostravam os sensores térmicos de edifícios na Berrini, que desligavam fachadas de vidro quando o sol ameaçava elevar a conta do ar condicionado.

Quando o verão se rendeu, troncos de árvores mortas foram serrados na praça do bairro. Homens comentavam sobre futuros estacionamentos enquanto serras elétricas roíam madeira petrificada. Davi recolheu uma vagem seca de um flamboyant, guardando-a como amuleto involuntário. Naquele mesmo dia, no terraço do Iguatemi, paisagistas trocavam palmeiras ornamentais por espécies mais "fotogênicas". Os exemplares descartados seriam triturados para adubo de novas áreas verdes em bairros fechados.

Enquanto isso, na casa de Marlene, o mofo alcançara o teto. Cobria as manchas com santinhos, orando por um clima menos cruel. Sabiam ambos que viriam novas formas de sofrimento, chuvas que inundariam, frio que penetraria ossos. Já, na Cidade Jardim, construtores anunciavam "ilhas de clima controlado": condomínios com parques internos onde estações do ano eram simuladas por algoritmos.

A cidade seguia sua expansão canibal, concreto sobre concreto. Nas periferias, o calor plantava raízes profundas. Nos jardins dos ricos, sistemas criavam micro-estações perfeitas. Duas cidades num mesmo território, separadas por muros invisíveis mais altos que qualquer cerca elétrica. E enquanto Davi fechava os olhos sentindo a água morna da bacia evaporar, Rafael programava o teto solar de seu quarto para exibir constelações artificiais, totalmente imune ao cheiro de mofo que atravessava a cidade como um fantasma térmico.

Tags:

Meio Ambiente

path
meio-ambiente