Arquibancadas de concreto mostram desigualdade social

8 ou 80. Com o peito cheio de amor pelo clube e a barriga vazia.
por
Luísa Ayres
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23/09/2024

Por Luísa Ayres

 

Arquibancadas antes quentes, aquecidas pelo calor humano de milhares de pessoas que em cima delas festejavam, pulavam e esbravejavam se fosse preciso. Agora, mero concreto, frio e duro. Para quem estava acostumado a frequentar a arena toda semana, passar mais de um ano sem sequer sentir o cheiro do lanche de pernil antes do jogo ou o gelo na mão daquela latinha discutindo a escalação com os amigos antes de adentrar ao espetáculo, fez-se sentir como uma verdadeira abstinência. Algo enlouquecedor. Triste e vazio assim como ficaram os estádios durante a pandemia.

Os anos de 2020 e 2021 foram marcados pelo Covid-19. Mais dura e ferrenha do que qualquer adversário que um time de futebol poderia imaginar enfrentar um dia. O vírus foi um rival comum a todos e que também uniu equipes antagonistas em prol de arrecadação de doações e protestos políticos.  Em vez de se arremeter atrás da bola, a corrida era pela chegada das vacinas ou nas filas dos supermercados, pelos frascos de álcool e pacotes de máscara. O apito final parecia distante e muitos profissionais da saúde deram tudo de si em nome da camisa que vestiam.  O mundo parou tal qual nas copas do mundo em dia de se reunir com os amigos para ver a seleção brasileira. As ruas vazias, o silêncio característico da tensão no ar. Um ar que nem todos mais conseguiam respirar, que parecia para muitos faltar, como se em um momento de tensão antes do gol perdêssemos o fôlego. 

Até que no dia 30 de janeiro de 2021 o País pode ouvir, para além de um vazio perturbador, gritos e mais gritos de "campeão". Homens, mulheres e crianças nas janelas. Pais que ligavam desesperadamente para seus filhos já que não podiam assistir ao jogo juntos. Avós que sentiram a falta do abraço de seus netos ao verem, quem sabe, pela última vez, a história acontecendo novamente diante de seus olhos, 20 anos depois. O estopim de uma temporada gloriosa. Eterna e longínqua.  

Meses antes, um campeonato paulista em cima do maior rival. Arena vazia. O som da torcida nas caixas tentava se sobrepor aos palavrões proferidos pelos jogadores. Assim como na conquista da Copa do Brasil, quase que de goleada em cima do Imortal do Sul, que pouco tempo depois, mostrou não ser tão imortal assim. Foi difícil para a maior parte dos torcedores palmeirenses aceitar que, os melhores anos da história de 110 anos de seu time seriam acompanhados de longe. Longe dos bares sempre cheios da Palestra Itália. Longe da família e dos amigos naquele churrasquinho de domingo às 16h00min. E, principalmente, longe das arquibancadas.

Sem ingresso. Sem bandeiras. Sem pipoca. Sem "churrasco de gato". Sem o abraço do estranho do lado na hora do gol. Sem o tapa na cadeira da frente em forma de comemoração. Ficou difícil ao menos não tentar imaginar como é a vida daqueles que se sentem, em todas as quartas e domingos, dessa mesma forma. Do lado de fora. Renegados. Sem reconhecimento facial na porta ou plano de sócio validado no cartão de crédito. Sem a blusa do time do coração, que parece bater a cada dia mais devagar.  E para piorar, sem radinho de pilha para acompanhar a partida. Sem televisão para assistir ao lance. Sem ouvir o narrador e suar as mãos de nervoso. Passar pela pandemia e pela melhor fase do Palmeiras ao mesmo tempo provou aos fãs do futebol brasileiro que, para muitos, a calçada é a única arquibancada, desde sempre. Sempre Gelada. Sempre vazia.  Uma eterna pandemia de fome, dor, pobreza e frio. 

Verde: de Palmeiras e de esperança

Bem ali na Marginal Tiête, em frente a um Pet Shop desses de rede famosa, um barraquinho de lona parece diferente de todos os outros. Um pouco mais à frente uma placa indica "Perdizes", bairro da capital paulista onde está localizado o Allianz Parque, uma das arenas mais caras e modernas da América Latina. Casa do Palmeiras há mais de 100 anos e também onde mora o coração de Deivisson, mesmo que, na verdade, ele esteja desabrigado e em situação de rua há mais de 10. Chama a atenção de todos que ali passam uma bandeira vermelha, verde e pouco branca, toda manchada e repleta de sujeira, mas ainda assim estendida com orgulho. Um pouco mais à frente o manto alviverde esticado no chão.

-"Essa tá rasgada", tenta justificar o homem com moscas no cabelo e voz embolada. E ele emenda afirmando que na casa da sua mãe diz ter várias, de todas as torcidas organizadas. Só não tem a da TUP (Torcida Uniformizada do Palmeiras), mas o presidente falou que irá entregar uma para ele, esperançoso, como se fosse uma criança que espera ansiosamente pelo presente de Natal.

Blusa
Deivisson estende sua velha blusa com o mesmo orgulho que estende sua bandeira no muro em frente à calçada onde dorme // Reprodução própria

Deivisson tem um nome muito parecido com o de Deyverson, ex-jogador do clube oriundi e autor do gol da final de Libertadores de 2020, aquela conquistada na pavorosa pandemia que falávamos. Ali percebi que o amor por essa e tantas outras memórias é o que parecia aquecer sua alma enquanto conversávamos, ainda que fizesse cerca de 13 graus naquele fim de tarde. 

Segundo estudo da Pluri Consultoria, o ingresso para assistir ao futebol brasileiro é o mais caro do mundo, custando, em média, 5,6% do salário mínimo. E para piorar, a entrada mais cara da série A no ano passado foi justamente a cobrada pelo Palmeiras. O que sobra para Deivisson é falar, com saudosismo, dos tempos antigos de Palestra Itália, como era conhecido o estádio do time antes da reforma, finalizada no ano de 2014 em comemoração ao centenário da Sociedade Esportiva.

Deivisson afirma que já dormiu na arquibancada do Palestra Itália. Conhecer o Allienz foi coisa que nunca fez e confidencia que esse é seu maior sonho. Em quase todos os dias de jogo ele atravessa a ponte, percorrendo seus cerca de 3 km, e assiste às partidas do lado de fora. E assim têm sido por quase toda uma década, vestindo o manto verde do clube e mentalizando o verde da esperança de que um dia posso realizar aquele que é seu maior desejo. Sentado ao seu lado, Edson, seu amigo corintiano, tenta timidamente interromper as falas de Deivisson e logo é silenciado. Surpreende como Deivisson em nenhum momento traz rancor ou raiva em sua voz. Suas falas são tomadas de nostalgia e boas memórias da Era Parmalat, até então, uma das maiores patrocinadoras da história do clube alviverde. Ao mesmo tempo, o homem baixo e de olhar perdido, pouco fala da Era Crefisa, atual patrocinadora do time.

Ele deixa evidente que desde o processo de elitização e reforma do estádio, não pode mais torcer da mesma forma. Deivisson, ainda que bem recebido pelos bares e camelôs não é mais bem vindo em sua própria casa. A casa que mora, não que é morada. Que mora em seus pensamentos, sonhos e anseios. Que mora em seu coração. Suas mãos, cansadas, trêmulas e entrelaçadas enquanto volta no tempo, parecem atadas, como se nada pudesse fazer para que essa realidade seja, pelo menos, um pouco diferente. 

O amor de Deivisson pelo Palmeiras é concreto. E tudo aquilo que ele pode ter está amarrado, pendurado ou esticado sob o concreto da calçada. Sua cama é de concreto. Sua fome é concreta. E por mais irônico que a vida faça tudo isso parecer, Deivisson só queria poder estar em um pedacinho específico de concreto nesse mundo. Aquele que treme com os pulos, não com os carros que passam. Aquele se aquece com os pés nervosos ao invés de permanecer sempre frio. Aquele concreto da geral, sujo de pipoca.  O concreto das ruas, da dor, da pobreza e da marginalização está sempre ali. Mas as arquibancadas de concreto não. Essas serão, sempre, a concretude da desigualdade social.
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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