Apostas esportivas escondem os perigos da simples diversão

Mais de 22 milhões de brasileiros estão cadastrados em sites de apostas online.
por
Felipe Abel Horowicz Pjevac
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07/10/2024

Por Felipe Pjevac

 

O relógio marcava 8h23min da manhã de sábado quando Nicolas saiu da cama e foi esquentar o café. 8h30min, quando o despertador tocou, o site da Betano já estava aberto no celular do jovem que, tomado pela ansiedade, já estava acordado há algum tempo. Estava chegando a hora do início da rodada da Premier League, campeonato inglês de futebol, e os jogos do primeiro horário prometiam grandes emoções. Enquanto preparava seu dejejum, o sono de Nicolas o fez pensar que queria conseguir dormir até mais tarde e só depois checar os resultados. Mas era impossível. A torcida pelo sucesso das apostas já havia se tornado uma parte importante do seu dia a dia.

Sentado na frente da televisão assistindo ao duelo entre Bournemouth e Crystal Palace, o jovem de 20 anos relembrava os tempos em que acompanhava o futebol europeu apenas por diversão, sem se preocupar com resultados e gols marcados. Nicolas começou a apostar online em 2020. Na época criava contas usando o CPF de sua mãe, já que ainda era menor de idade. No entanto, o hábito já vinha desde dois anos antes, quando fazia seus bilhetes na banca do seu Chico, na esquina da rua onde mora. Hoje em dia, ele prioriza as contas criadas após a maioridade, já que o saque por PIX apenas pode ser feito através do próprio CPF.

A facilidade de Nicolas em trocar de contas tem uma explicação: de acordo com dados do SimilarWeb, o Brasil tem 238 sites do gênero 'casa de apostas', o maior número em todo o mundo. Além das opções internacionais mais populares, como Bet365, Betano e Sportingbet, o governo brasileiro já emitiu mais de 500 licenças para a abertura de plataformas nacionais. Apenas no primeiro trimestre de 2024, 65 empresas foram registradas, e estima-se que esse mercado movimentará mais de R$ 150 bilhões até o final do ano.

Alguns andares abaixo, Felipe, de 21 anos, acorda após o fim dos primeiros jogos, e antes de mesmo de ir ao banheiro, manda mensagem para Nicolas perguntando se havia dado certo suas pulis. O apelido usado para se referir às bets mostra a convivência dos dois amigos dentro desse universo. A dupla havia montado a 'aposta perfeita' para o sábado de manhã na tarde anterior, na faculdade, usando o período das aulas para analisar os mercados esportivos e escolher as melhores odds. No entanto, Felipe se desespera após ouvir do colega que as partidas tinham se encerrado com placares de 0 a 0 e 1 a 0, ou seja, ambas com total de gols abaixo de 2. Após um breve suspiro, o pensamento otimista passa pela cabeça. Ainda teria muito jogo no resto do dia para recuperar suas perdas .

O vício de Felipe era mais recente; sua primeira conta foi criada em 2021. Durante a pandemia, sem sair de casa e com campeonatos transmitidos na sua televisão durante boa parte do dia, o jovem decidiu tentar transformar seu conhecimento esportivo em dinheiro. Uma decisão que se mostrou presente na vida de muitos brasileiros. Pesquisas do UOL apontam que desde 2020, o número de acessos a sites de aposta no País aumentou em aproximadamente 400%, e o total já ultrapassa os três bilhões. O estudo também aponta que um terço dos apostadores tem entre 16 e 24 anos, e 21% dos homens nessa faixa etária afirmam já ter acessado algum desses sites.

A linha entre o apreço pelas apostas e o vício muitas vezes é imperceptível, e dependendo dos valores, as coisas podem acontecer de maneira muito rápida. Nicolas nunca traçou uma estratégia orçamentária para suas aventuras esportivas, e as quantias apostadas sempre dependeram de quanto estava disponível em sua conta bancária. Ele sabe que o seu interesse por esse mundo começou a se tornar um problema três anos atrás, quando conseguiu seu primeiro estágio. A sensação de conquistar seu próprio dinheiro e poder gastá-lo como bem entendesse foi demais para o apostador, que começou a enxergar nas bets uma forma de investimento e de multiplicar aquilo que ganhava com o próprio trabalho.

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Algumas das opções de sites de aposta disponíveis no Brasil

Os dois amigos se encontram no horário do almoço e o plano era pagar pelos lanches com o dinheiro que teria sido ganho de manhã. Apesar da derrota, o sentimento de frustração já ficara para trás. Enquanto comiam, eles conversavam sobre as possibilidades que o restante do dia oferecia. Ao abrir o celular, Nicolas se depara com o site de apostas, que tinha esquecido de fechar após a rodada da manhã. Ao ver a aba dos jogos ao vivo, Felipe sugere colocar um dinheiro no campeonato japonês, cujos jogos estavam no intervalo.  Ambos decidem apostar, mesmo sabendo que o motivo não era apenas uma distração e sim a incapacidade de passar algumas horas sem apostar.

De volta ao prédio, o clima de alegria já dá lugar a uma nuvem de incertezas e ansiedade. Assistindo aos jogos finais da Premier League, Felipe comenta que a odd do Modric fazer um gol é 6,50. O fenômeno de acessar os sites de aposta quase de que maneira inconsciente, em qualquer momento de tédio que se apresente, é um sintoma do vício que pode ser explicado pela ciência. A ludopatia, nome dado à doença do vício em jogos, atua da mesma maneira que a dependência em substâncias como álcool ou drogas, ativando o 'sistema de recompensas' no cérebro, processo que associa a liberação de dopamina à atividade de apostar por si própria.

Na metade do segundo tempo, a tristeza toma conta da sala de estar da casa de Felipe. Tudo parecia perdido, até que o meia Luka Modric recebe a bola na ponta esquerda, dribla dois marcadores e chuta de chapa no canto do goleiro. Um gol nem tão comemorado pela torcida do Real Madrid na Espanha, que já via a equipe vencer o Elche por 3 a 0, mas que gerou um estado de euforia em um simples apartamento em São Paulo, Brasil. Sensação de prazer sentida de maneira rápida e fervorosa. Tudo que foi gasto no dia até aquele momento havia sido recuperado. Era uma ótima chance de sacar o dinheiro e partir para um churrasco para o qual haviam sido convidados.

O excesso de confiança em lucros cada vez maiores é um dos principais problemas que o vício em apostas traz. A rodada do Campeonato Brasileiro ia começar, e o momento parecia positivo para os dois apostadores, que acharam melhor cancelar a ida ao churrasco. Eles recordaram da última vez que tinham saído para um 'rolê' enquanto jogos aconteciam com seu dinheiro envolvido. A ansiedade, o nervosismo e a vontade de apostar mais ainda para recuperar o prejuízo impedia-os de aproveitar os momentos com amigos.

As partidas do Brasileirão começam, e é impressionante o número de casas de aposta nas placas de publicidade e nas camisas dos jogadores. Esse é um dos motivos que incentivaram Felipe a entrar para esse universo; o enorme número de casas de aposta exibidos tanto durante o evento esportivo quanto em comerciais passam a impressão que é a prática é comum, algo do cotidiano de qualquer fã de esportes. Em 2024, 80% dos clubes da Série A tem alguma plataforma esportiva como patrocínio master, além do próprio torneio nacional (o Campeonato Brasileiro Betano).

Ao final do dia, os amigos comentavam sobre a necessidade de reduzir o tempo e o dinheiro gastos com as apostas. Um tratamento profissional para eventualmente curar o vício foi cogitado, mas rapidamente descartado; ambos eram adultos que poderiam aprender a se controlar sozinhos. No entanto, ao chegar em casa e se deitar em sua cama, Nicolas abre o aplicativo da bet365 para ver os jogos de domingo; além das bets, ele também utilizava os sites de aposta para ver informações sobre os campeonatos. Impressionado com algumas odds, deposita mais 100 reais na plataforma, seleciona suas escolhas, marca o despertador para tocar de manhã, e fecha os olhos, em uma árdua tentativa de descansar a cabeça, horas antes do caos se iniciar novamente.

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