Aposentadoria pode significar um refúgio para o relógio da produtividade

57% da população brasileira não se prepara para a aposentadoria, mas o sistema previdenciário segue sendo maior de todos os programas sociais no País.
por
Ana Julia Bertolaccini
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12/06/2025

Por Ana Julia Bertolaccini

 

A igreja é um dos lugares em que "seu Pedro" ocupa parte de seu tempo. Por 26 anos, ele foi voluntário na instituição católica São Judas Tadeu, em Mairinque. Apesar disso, essa é mais uma das tarefas que foram deixadas para trás. Tudo que é fixo e com horário marcado não se encaixa mais no seu dia a dia. Aos seus olhos, o descanso pleno e o entendimento do tempo como um benefício pessoal não deve envolver grandes contribuições às associações e sindicatos. Uma grande parte de sua vida já foi dedicada à sociedade através de seu trabalho. Hoje, o tempo é dele e de mais de ninguém. Entre uma viagem e outra, tradições religiosas, aniversários, encontros em família e convites de amigos são bem recebidos por ele, que não é fã de ficar dentro de casa.

No município de Mairinque, interior de São Paulo, seu Pedro toca uma vida sem saudades do trabalho para o qual contribuiu por 30 anos no setor de tratamento de água da Companhia Brasileira de Alumínio (CBA).  Desapegado do passado, ele ocupa a maior parte de seu tempo viajando de carro, com o propósito visitar a família, encontrar conhecidos e conhecer lugares novos, sem esquentar muito a cabeça com data e horário. Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Santa Maria, Aparecida e Mato Grosso são alguns dos destinos de suas viagens, que embora possam ser compartilhadas com a namorada do lado, nem sempre possuem o requisito de uma companhia, a não ser a própria. 

Seu Pedro foi casado por 55 anos. A esposa faleceu há 3 e assim como todas as fases de sua vida, esta é mais uma que ficou na lembrança e que mudou sua maneira de pensar o presente e o futuro. Sua namorada, Emília Firmino, também foi casada por 18 anos. Sem filhos e também aposentada, ela divide os mesmos propósitos e objetivos de vida, ambos bem longe da racionalidade econômica da hiperprodutividade, mas nunca inativos. Com medo de avião e não muito fã de passeios de ônibus, o carro é o seu maior companheiro. Em casa, ele é responsável pela própria comida e por todas as tarefas domésticas, já que agora mora sozinho, algo que não fazia parte de sua rotina quando trabalhava fora. 

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Seu Pedro em uma festa de aniversário 

 

1º de setembro de 1994 foi quando seu Pedro obteve sua aposentadoria especial, recebendo a primeira parcela do salário no mês seguinte. Suficiente para o lazer e para a sobrevivência, o dinheiro que ele recebe permite com que o descanso da aposentadoria seja legítimo, o que não ocorre para todos. No Brasil, 70% dos pagamentos feitos pelo INSS são de até um salário-mínimo. Pensando no atual salário da empresa para a qual contribuiu por 30 anos, Seu Pedro afirma com convicção que não trabalharia mais lá, se estivesse em sua vida ativa. A baixa remuneração é vista como exploração por ele, que hoje vive com um benefício de cerca de 6 mil reais mensais e não consegue imaginar a possibilidade de uma vida digna com 1.518 reais. 

Ao contrário da tranquilidade e da aceitação plenaoo de seu Pedro acerca dessa nova etapa da vida, Nilton Santos de Souza ainda acorda às 3h30min achando que tem que levantar para trabalhar, mesmo depois de 4 anos de aposentado. Apesar do alívio imediato que sentiu ao saber que não precisaria mais correr o risco de viajar de moto de madrugada ou de ter que trabalhar 12 horas por dia, Nilton passou muitos dias sentindo culpa simplesmente por sentar-se no sofá e assistir a um filme. Somada a essa sensação de estar fazendo algo de errado em um momento de descanso e lazer após 38 anos dedicados à uma mesma empresa, ele teve vontade de voltar a trabalhar, chegando até a receber uma proposta da antigo local de trabalho para que voltasse à ativa. Três meses foi o período necessário para que Nilton entendesse que o valor que receberia e o risco que voltaria a correr todos os dias ao viajar de uma cidade para a outra não era uma melhor opção do que aceitar e remanejar o tempo disponível da aposentadoria. 

Foto 2
Nilton Santos de Souza antes de ir para a musculação 

Nascido e crescido em Ribeira do Pombal, município do Estado da Bahia, Nilton mudou-se para o interior de São Paulo aos 18 anos, em busca de melhores condições de vida. A partir daí, “Baiano” como é chamado pelos amigos e conhecidos aqui da Região Sudeste, conseguiu o cargo de ‘“encarregado de extrusora” numa empresa de tecelagem. Apesar de ter um horário fixo de 8 horas por dia, ique é o limite permitido pela legislação trabalhista, as horas extras chegavam a somar 4 horas a mais que o expediente definitivo, que por 28 anos se iniciava às 10 horas da noite e se encerrava às 5 horas da manhã. Fins de semana e feriados eram quase nulos e os dias de folga inexistiam por longos períodos. Nilton chegou a ficar 4 anos sem folgar um dia sequer. 

A tranquilidade de saber que não seria chamado a qualquer momento do dia para atender à uma demanda da firma só foi possível depois que ele se aposentou. Torcedor apaixonado pelo Flamengo, os únicos compromissos com data e hora marcada de Nilton hoje são os jogos do time do coração e as consultas marcadas pelos médicos que cuidam da sua saúde. Outras tarefas diárias que incluem levar e buscar a sogra no supermercado, lavar o carro, ir à musculação, correr aos domingos e ir à missa, se encaixam na rotina de acordo com sua disposição e com os horários disponíveis de sua esposa, que o acompanha nas atividades físicas e em outras ocupações sempre que possível. O tempo livre agora é entendido por ele como um intervalo de horas em que não há obrigações a serem cumpridas. Tomar uma cerveja, ouvir música, assistir a um filme e acompanhar partidas de  futebol pela televisão  são a maneira como ele decide usufruir  desses momentos. 

Nos anos finais de sua vida ativa do trabalho, Nilton sentia um cansaço físico e mental acumulativo e não via a hora de parar. Mesmo assim, quando finalmente obteve o direito da aposentadoria, ele demorou muito tempo para entender que já contribuiu com aquilo que podia e mais do que deveria para a sociedade. A remuneração das horas extras era mais uma das justificativas para aguentar uma carga horária excessiva em turnos durante a madrugada. O cansaço que ele sentia diariamente era, de certa forma, tratado como algo normal. Hoje, com exercícios diários e uma rotina tranquila, Nilton não se sente cansado. Parte desse cansaço crônico era proveniente do estresse e das demandas infinitas que à ele eram atribuídas. Seu sono é de melhor qualidade, sua disposição durante o dia aumentou e o motivo maior para que Nilton sorria todos os dias é a sua saúde. Junto a todas as coisas que ele não podia fazer por conta das limitações do trabalho, surge também a sensação de liberdade.

Acordar e decidir o que quiser fazer. Tomar uma cerveja, ouvir música, ir à missa ou ir à academia. Não há nada que o impeça de fazer qualquer uma dessas atividades. Nada é mais uma obrigação. A não ser, é claro, os jogos do Flamengo. Estes passam na frente de toda e qualquer ação. Nilton é feliz hoje e aceita sua condição de aposentado. Ainda sim, existem alguns efeitos psicológicos que demonstram uma certa contradição em suas falas. Discursando sobre uma perspectiva de futuro da nova geração e da necessidade da aposentadoria, Nilton diz acreditar profundamente que toda e qualquer pessoa precisa ter esse benefício concedido ao final de sua vida ativa. No entanto, não é difícil perceber que o sentimento de culpa pela inatividade ainda existe, mesmo que inconscientemente, em seu interior. Ele acredita que as pessoas em vida ativa devem trabalhar o máximo que puderem para evitar transtornos psicológicos, os quais já, em algum momento, devem ter dado sinais no início de sua jornada como um homem aposentado. 

Durante sua vida ainda na ativa, Nilton sofreu dois acidentes de moto na estrada. Essa é uma das principais razões pelas quais ele preferiu não voltar a trabalhar. O medo e as condições financeiras, pesadas em uma balança, o impediram de ceder à lógica produtivista que busca fundamentar a nossa existência no trabalho. Musculação, religião, lazer e viagem nunca seriam suas prioridades se voltar a trabalhar não significasse correr risco de vida na pista. Ao menos a vida ainda vale mais que o trabalho. Assim, torna-se preferível reestabelecer os limites do orçamento de uma aposentadoria vivida com um salário no limite do necessário. 
 

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