Analfabetos têm dificuldades estruturais para o convívio social

Um Brasil que ainda não sabe ler é fruto do ensino precário e do sucateamento da Educação.
por
Victoria Leal
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11/11/2024

Por Victoria Leal

 

Luzia Francisca da Conceição, de 67 anos, ou Dona Lu, como costuma ser chamada, observa a cidade de São Paulo com um olhar que já se habituou ao movimento, mas que nunca se ajustou completamente à velocidade da maior metrópole do País. Entre o barulho dos ônibus, o vai e vem de pessoas apressadas, ela busca, com os olhos, as cores conhecidas da linha que a leva para casa, no bairro do Ipiranga. O letreiro digital com nomes de ruas e destinos não lhe diz nada, a não ser por um combinado de letrinhas que ela já aprendeu a ignorar. Ela vai pela cor do ônibus e pelo ponto onde sempre desce, mas quando mudou a linha, já se perdeu muitas vezes.

Essa cena, tão cotidiana para muitos, é um emaranhado diário. Analfabeta funcional, a costureira sabe apenas assinar seu nome e o nome dos quatro filhos. Nascida no interior da Bahia chegou a São Paulo em 1976 com o marido e a primeira filha, ainda bebê. Vieram buscar uma vida melhor, mas a cidade que prometia tantas coisas se revelou um desafio quase intransponível para quem não sabe ler. Tudo era muito rápido, e as pessoas não tinham tempo para ajudar. Ela foi aprendendo sozinha vendo as coisas, ouvindo e perguntando quando precisava.

Dona Lu passou a vida se guiando pela intuição. Como costureira, aprendeu observando, replicando os gestos que via nas outras operárias da fábrica no centro da cidade, onde trabalhou por anos, mas foi na morte precoce do marido que as letras, ou a falta delas, se tornaram ainda mais significativas. Ela criou os filhos sozinha, sem jamais conseguir compreender a complexidade uma receita de remédio, uma carta da escola, ou entender um contrato de trabalho. Às vezes, ela se sente traída pela própria intuição, pois uma mudança repentina, formalmente comunicada por um conjunto de letrinhas e sinais que para ela não fazem sentido, alteram toda a dinâmica de um aprendizado construindo dia após dia.

Essa traição a acompanha até hoje, especialmente em tarefas simples, mas cruciais, como organizar os remédios. Para conseguir tomar as medicações corretas, Luzia conta com a ajuda dos netos, que enfeitam as caixinhas com desenhos e fitas coloridas. Eles fazem as caixinhas com florzinhas, corações e fitas de cores diferentes para que ela possa identificar qual é o remédio de manhã, qual é o da noite. Ela olha para as caixinhas e é capaz de compreendê-las visualmente, mas se houverem só letras, não é possível, relata.

Caixas de remédios decoradas de Dona Luzia.
Caixas de remédios decoradas de Dona Luzia. Créditos: Victoria Leal

O “Não saber”

O Brasil está repleto de Luzias. Segundo dados do IBGE de 2022, mais de 11 milhões de brasileiros acima dos 15 anos são analfabetos, e a taxa de analfabetismo funcional, que abrange aqueles que, como a idosa, sabem apenas identificar algumas palavras ou escrever o próprio nome, é ainda maior. Estima-se que quase 30% da população adulta no Brasil se enquadre nessa categoria. O impacto dessa invisibilidade é profundo, e vai muito além das dificuldades diárias de compreensão de textos. São barreiras ao acesso ao emprego, à cidadania, à saúde e até à segurança.

Essas barreiras se manifestam de formas pequenas, mas constantes. Luzia queria poder ler a agenda do colégio dos netos, poder ajudá-los na escola. Mas não consegue. Quando chega alguma coisa, uma cartinha ou um aviso, ela espera explicarem, pois não compreende.

O analfabetismo no Brasil tem raízes profundas, estruturais, e está diretamente relacionado a desigualdade social. Regiões como o Nordeste, onde Luzia nasceu, ainda concentram as maiores taxas de analfabetismo do país. Segundo o IBGE, em 2022, o índice de analfabetos na região Nordeste era de 13,4%, quase três vezes maior que o das regiões Sul e Sudeste. Essas estatísticas, no entanto, não expressam plenamente a complexidade que acompanha essa falta, o sentimento constante de estar com esse déficit predomina.

Para Dona Lu, São Paulo sempre pareceu funcionar mais rápido do que ela. Ao longo dos anos, a costureira aprendeu a se adaptar, achar caminhos e soluções que lhe permitissem sobreviver na cidade sem o alfabeto como guia. Nunca se viu como uma pessoa burra, mas sente que faltam coisas que todo mundo tem. Diz sentir que parece que as pessoas letradas sabem de tudo e que ela não entende nada.

Apesar de todas as dificuldades, ela se orgulha de sua jornada. Criou quatro filhos, viu a família firmar raízes, e ainda mantém sua casa em ordem, com paninhos bordados, costuras feitas à mão e um carinho que transparece nos pequenos pontos. Ela foi aprendendo pela vida, vendo as coisas, prestando atenção nos outros. E, no fim, deu certo, mas ela reforça que não é fácil. Mesmo que não consiga decifrar as letras que a cercam, Dona Lu continua guiada por sua intuição e pela vontade de continuar aprendendo, juntando cuidadosamente o emaranhado de experiências em uma colcha de memórias compreendidas por ela.

Em cada esquina, em cada documento não compreendido, em cada linha de ônibus que muda sem aviso claro, as pessoas usam de suas particularidades para tentar compreender um mundo domesticado pelo letramento, e enquanto o País “funciona”, dentro desses moldes dados como norma, milhões de brasileiros enfrentam barreiras invisíveis todos os dias.

 

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