A alquimia do corpo perfeito converte vaidade em autocensura

Entre agulhas e algoritmos, a mulher contemporânea segue em busca de um ideal que exige tudo — menos existência

por
Giovanna Montanhan
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12/06/2025

Por Giovanna Montanhan

 

Existe um traço antigo que atravessa os séculos, discreto e contínuo, e que agora reluz com mais nitidez do que nunca: a ideia de que só há lugar para a mulher que se corrige, que se diminui, que se molda até perder o contorno. Nas redes sociais, onde a encenação da liberdade ganha filtros cintilantes, a publicitária Marina Pesciotto se via presa em um palco circular, rodeada por olhos que julgavam em silêncio. Cada deslizar de dedo era sentença. A beleza, ali, não era mais escolha ou expressão. Era condição para existir. E entre imagens milimetricamente polidas, onde só cabiam simetrias impossíveis e cinturas afinadas por promessas estéticas, ela se via apagando partes de si para caber em um molde que nunca fora feito para mulheres reais.

Esse impulso de recuo, no entanto, não surgiu de um dia para o outro. Ainda na infância, a garota percebeu que o corpo feminino era um território vigiado, onde cada gesto era mapeado com precisão. Nada ali era neutro; tudo podia ser lido como ameaça ou falha. Havia regras não ditas — mas implacavelmente impostas — para o modo como se sentava, como se ria, como se existia. Rir com o dente torto era ousadia, andar com os ombros soltos era desleixo, demonstrar cansaço era quase um descuido moral. Logo entendeu que seu corpo não lhe pertencia por inteiro: era um cartão de visitas, uma promessa em construção, uma superfície que precisava ser constantemente ajeitada para não gerar desconforto. Como tantas outras, cresceu vigiando a si mesma antes que os outros o fizessem. Cada passo era treinado. Cada traço, polido. Cada silêncio, ensaiado. E quando se olhava no espelho, não via apenas o próprio reflexo, mas a repetição de uma inquietação ancestral. Via-se ali, junto de todas as meninas que, como ela, já se esconderam para caber. Corrigidas, vigiadas, podadas.

A coreografia da contenção ganhou contornos mais sofisticados quando a lógica do aperfeiçoamento passou a ser ditada por algoritmos. TikTok e Instagram não eram mais distrações — eram vitrines contínuas, corredores envernizados de comparação onde se desfilavam promessas de transformação em tempo recorde. Antes e depois pareciam milagres, mas eram sintomas de algo mais profundo: a dissolução da identidade em nome da aceitação. A realidade, retocada. A imagem, doutrinada. E o desejo, terceirizado — porque já não se sabia se era seu ou apenas herdado da tela. Como tantas mulheres, ela seguia receitas que não escrevia, apenas executava. E se esforçava, dia após dia, para merecer um lugar que nunca fora feito para ela.

Foi nesse cenário que o Ozempic surgiu como resposta. Não para curar, mas para calar o incômodo. Marina adquiriu como quem compra silêncio. Injetou como quem tenta desaparecer pelas bordas. Comer passou a ser culpa, sentir fome virou sinal de fracasso moral. O corpo, um projeto interminável de correção. Aplicava as seringas com a devoção de quem acreditava não haver alternativa. O enjoo tornou-se rotina. A apatia, um efeito colateral tolerável. O rosto mais fino, o olhar de aprovação dos outros — era isso que restava. E quando elogiavam sua força de vontade, sorria. Não porque estivesse feliz, mas porque era isso que esperavam dela.
Logo, os procedimentos se multiplicaram. Lipo de papada, preenchimentos, enzimas, rotinas de privação. Cada intervenção era mais um capítulo de uma narrativa que não escrevera, mas da qual não conseguia escapar. Oferecia partes de si como prova de comprometimento, esperando, no fundo, que alguém notasse o esforço. Mas tudo o que recebia eram aplausos disfarçados de conselhos: você está melhor assim, mais disciplinada, mais bonita. E quanto mais desaparecia por dentro, mais celebrada era por fora. Fragmentada, seguia representando uma versão de si que já não reconhecia.

A maquiagem virou escudo para ela. A voz, um sussurro domesticado. Os gestos, ensaios de delicadeza. Performava leveza como quem sustenta o teto com os ombros. Começou a viver uma caricatura de si, onde cada passo era calibrado para não desagradar. O espelho deixou de ser aliado. Era enigma, vigilante, condenação muda. Foi então que notou como os padrões se reciclavam com sofisticação cínica. A beleza natural virou produto de luxo — exigia disciplina, sacrifício e investimento. A juventude eterna foi convertida em dever moral. Na pele, sentia que o corpo não era mais abrigo, mas vitrine. E o tempo, ao invés de libertá-la, tornava-a cada vez mais ré de sua própria história.

Essa prisão se infiltrava até nas escolhas mais banais. A alimentação virou cálculo. O prazer, uma falha. Sentava à mesa com medo. Recusava convites com desculpas educadas. Preferia a fome à suspeita. Queria controle. Queria ser elogiada pelo autocontrole. Era isso que recompensavam. E mesmo quando a estética do passado retornava travestida de tendência. As modas voltavam em ciclos, como pragas requentadas. Ela via a calça de cintura baixa ressuscitar com a mesma rigidez de antes. O mesmo corpo imposto, os mesmos traços exaltados. Adaptou-se. Retocou ângulos. Copiou poses. Até sua própria imagem parecer reciclada de outra. Diferente da mulher comum, mas idêntica às demais. Na moda, já não buscava expressão. Marina buscava permissão. Acordava e checava referências. Vestia-se para o algoritmo. Improvisar era arriscado. Vestir algo que amava era infantil. Escolhia tecidos como quem escolhe um disfarce.

Mas não era a primeira a viver essa farsa. Descobriu, tardiamente, que essa história não começava com ela. Nos anos 1920, ligas apertavam quadris e coxas em nome da silhueta tubular. Nos anos 1930 e 40, o pó de arroz com chumbo e mercúrio embranquecia rostos sob o pretexto da delicadeza. Os laquês dos anos 1960 endureciam cabelos como concreto estético. Nos anos 1970, passava-se Coca-Cola na pele para acentuar o bronzeado — um ritual abrasivo disfarçado de vaidade. Tudo embalado com cuidado. Tudo parte de uma pedagogia da contenção. Ao reunir as peças, compreendeu que não havia nada de revolucionário no que vivia. As técnicas mudaram, os nomes sofisticaram-se, mas o roteiro era antigo. O que agora fazia com agulhas e restrições já fora feito antes. A pedagogia do aperfeiçoamento feminino apenas trocou de embalagem — e ela, como tantas antes, seguia o script. Foi essa repetição disfarçada de novidade que a fez chorar sozinha, sem grandes gestos, como quem entende tarde demais o truque de um espetáculo que nunca a teve como protagonista.

A nova encenação tinha outra estética: a misoginia não rugia mais. Sorria. Aparecia em forma de dicas, tutoriais, elogios performáticos. Ela internalizava essas vozes, repetia os mantras, buscava a melhora constante. E mesmo adoecendo, defendia o processo. Porque ser admirada, no fim, parecia melhor do que ser ignorada. Até que os primeiros sinais do envelhecimento trouxeram outro tipo de silêncio. Sentiu que os contornos do mundo ao redor se alteravam. Os elogios murchavam, os olhares perdiam doçura e ganhavam avaliação. A pele, antes celebrada em filtros e curtidas, passou a ser percebida como algo a ser contido, tratado, corrigido. Vieram as sugestões, disfarçadas de cuidado: um creme, um laser, uma consulta. Como se a passagem do tempo fosse uma falha técnica, um defeito irreparável.

Nesse descompasso entre o tempo vivido e o tempo aceito, ela enxergou a assimetria cruel entre gêneros. George Clooney, ao acumular rugas, foi descrito como vinho: quanto mais envelhecia, mais parecia ganhar valor — um charme maduro que só reforçava sua autoridade e atratividade, como se o tempo, para ele, fosse um aliado silencioso. Pamela Anderson, que um dia fora símbolo sexual, bastou surgir sem maquiagem para que fosse rotulada de desleixada. O que para ele era charme, para ela virou descuido. Sentiu no próprio corpo o que tantas outras já sabiam em silêncio: o tempo, para os homens, é um acessório que acrescenta. Para elas, um réu que cobra fiança. Envelhecer, quando se é mulher, não é apenas biologia — é desobediência. E o medo que se traduz como vaidade é, na verdade, o pressentimento de que o mundo começará a nos deletar do enquadramento assim que deixarmos de caber no filtro da juventude eterna.

Talvez por isso o filme "A Substância" tenha ecoado com tanta força. A trama, em que uma mulher comum se submete a um tratamento rejuvenescedor que acaba por criar uma versão 'melhorada' de si mesma — mais jovem, mais bela, mais obediente — não parecia ficção. Era metáfora com gosto de déjà vu. Ela entendeu a tentação de injetar o impossível: um frasco que prometesse não apenas juventude, mas permanência — e o desejo masculino como recompensa invisível, mas sempre exigida. Não era apenas sobre a pele mais lisa ou o contorno mais definido. Era sobre continuar existindo nos olhos dos outros. Persistir no campo de visão alheio, mesmo que isso significasse desaparecer de si. O elixir do filme tinha outro nome fora da tela, mas a lógica era a mesma: a promessa de se manter visível num mundo que apaga mulheres com pressa.

E foi nesse espelho distorcido entre ficção e realidade que Marina se viu — dividida entre quem era, quem esperavam que fosse, e quem ainda poderia se permitir ser. Não ascendeu à condição de mártir. Tampouco se converteu em ícone. Permaneceu mulher — mas uma mulher que agora conhecia os bastidores, onde a beleza é encenada como obrigação moral e o envelhecimento, um desvio estético a ser corrigido. Compreendeu que, mesmo na morte, esperariam dela a contenção, a maquiagem discreta, a elegância final. Porque a beleza, em sua lógica mais perversa, ainda é o proscênio onde mulheres devem encerrar seus dias em plena encenação. Ser autêntica, hoje, talvez seja o último ato verdadeiramente subversivo.

Tal como incontáveis outras que transitam nessa fronteira nebulosa entre o aceitável e o reprovável, ela intuiu que o custo da conformidade sempre foi exorbitante — e, paradoxalmente, pago com a própria anulação. Cada sorriso regulado, cada dor cuidadosamente dissimulada, cada tentativa de encaixe em molduras alheias compunham a coreografia exaustiva de uma performance nunca escolhida. E foi nessa lucidez fatigada, própria de quem já encenou demais um papel que nunca escreveu, que Marina — como tantas — enfim se negou a continuar em cena dessa forma.

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