Por Laura Paro
Na boca do sertão do interior de Minas Gerais, Luana teve sua vida de volta após uma viagem de quase 800 km até o Triângulo Mineiro. A dor por carregar um feto em sua barriga por mais de vinte e duas semanas, proveniente de um estupro, tomou conta de sua vida por mais de cinco meses. Ela se encontrava perdida, sem rumo e totalmente fora de sua rotina; procurava por assistência em sua cidade, mas a falta de informação e a negligência não permitiram que ela conseguisse ajuda. Foi somente depois de atravessar todo o Estado que conseguiu se livrar de uma dor que não fazia parte dela – como se tivesse, depois de 30 anos, nascido de novo.
Luana nasceu e foi criada no Rio de Janeiro, mas decidiu se mudar para o interior de Minas para estudar. Ela, que é estudante de Ciência e Tecnologia em Laticínios, estava aguardando ansiosamente pelo retorno do resultado de um processo seletivo de estágio, pelo qual havia se candidatado alguns dias atrás. Até então, vivia sua vida normalmente como estudante; porém, ao perceber que sua menstruação estava atrasada, passou a conviver com uma angústia muito grande – pelo momento que estaria vivendo em sua vida, não se sentia preparada para enfrentar uma gravidez.
Ela contou ao namorado sobre suas angústias, ainda incrédula ao pensar na possibilidade de gestar e criar um filho. Resolveu procurar por atendimento médico; chegou em um hospital de sua cidade e, após aguardar vinte minutos para ser atendida, entrou no consultório. A médica era uma clínica geral e disse que a última vez que havia tido contato com Ginecologia e Obstetrícia, havia sido na faculdade – dando a entender que não saberia dizer ao certo se estava grávida ou não. Assim, a encaminhou para uma ginecologista.
Luana foi ao atendimento com a profissional da área. Ao ser atendida, a médica lhe afirmou com certeza: ela estava grávida de mais de 9 semanas. A partir daí, começou a fazer cálculos mentais e foi quando caiu a ficha – a gravidez não era fruto da relação amorosa que tinha com seu namorado. E sim, de um estupro, que havia sofrido meses atrás, no Rio de Janeiro.
Ela se sentia perdida, sem saber o que fazer. Ela não conseguia prestar atenção em nada que a médica lhe falava; a profissional estava comentando sobre a bateria de exames que ela precisava fazer, as vitaminas que era necessário tomar e várias outras informações que Luana não conseguia ouvir atentamente, já que seus pensamentos ecoavam em sua cabeça. Em nenhum momento a ginecologista se preocupou em perguntar como a sua própria paciente estaria se sentindo após descobrir que estava grávida, mesmo não sabendo que a mesma era oriunda de um estupro.
Atordoada, Luana saiu da consulta já decidida em interromper essa gravidez, já que tinha conhecimento que era um direito previsto em lei – o aborto é legal no Brasil desde 1940, em casos de gravidez resultante de estupro, risco de morte para a gestante e anencefalia do feto. Porém, tomada pelo medo e pela insegurança, ela sabia que mesmo tendo esse direito seria difícil consegui-lo, pois imaginava que sua cidade dificilmente teria hospitais ou instituições com estrutura e recursos suficientes para realizar o procedimento.
Segundo a legislação brasileira, as mulheres vítimas de estupro que quiserem interromper a gravidez têm o direito de fazer o procedimento pelo SUS, sem a apresentação de registro policial da violência sexual. Mesmo assim, não é o que acontece na prática, pois nem sempre os municípios têm estrutura de internação hospitalar – etapa necessária para realizar o aborto legal por conta da medicação necessária para realizar o procedimento no país –, segundo especialistas.
Luana sabia que viveria essa dificuldade em sua pele e resolveu buscar ajuda. Ela entrou em contato com um serviço de amparo para meninas e mulheres de sua cidade, pedindo por orientações, pois nem ela sabia com certeza qual seria o primeiro passo a se tomar. As mulheres que prestaram atendimento à ela deram o apoio psicológico necessário e a orientaram entrar em contato com um hospital de Belo Horizonte – o mais próximo de sua cidade que talvez poderia realizar o aborto –, para saber sobre as disponibilidades de internação para fazer o procedimento.
Ao ligar para a recepção de tal hospital diz que foi super bem atendida, pelo menos até então. Mas no momento em que mencionou a procura pelo serviço de aborto legal, ao explicar que havia sido estuprada, a funcionária que atendeu o telefone mudou completamente o seu tom de voz: “Não. Nós não fazemos”, e desligou a chamada.
Luana retornou o contato com as meninas do serviço, já desesperançosa e com vontade de desistir. Ela ainda estava dentro das vinte e duas semanas de gravidez e, após passado esse tempo, seria ainda mais difícil conseguir algum lugar que realizasse o procedimento: após a criação de um projeto de lei que pretende igualar qualquer aborto realizado no Brasil após 22 semanas de gestação à um crime de homicídio (mesmo em situações em que o aborto é permitido no país, como no caso de um estupro), o PL 1904/2024, a interrupção de gravidez de forma legal no Brasil se tornou ainda mais difícil de acessar. Os hospitais, os médicos e as instituições preferem muitas vezes recusar pacientes com esse histórico para não se relacionarem com essa pauta, que é considerada “polêmica”.
O tempo passava. Eram noites sem dormir com a mesma ansiedade, e ela ainda não sabia para onde ir e o que fazer. Com a dificuldade de encontrar acesso ao aborto legal, Luana se sentia obrigada a gestar e parir, mesmo sabendo que era algo que definitivamente não queria fazer; pensava o que poderia fazer por conta própria, buscando por outras alternativas. Foi quando as meninas do serviço de amparo à mulheres da sua cidade entraram em contato novamente, dizendo que estavam conversando com uma assistente social para orientá-la de forma mais direta. Essa, por sua vez, solicitou que Luana fosse à um atendimento presencial com a assistente social.
Ela precisou contar toda a sua história novamente, do episódio de violência sexual até aquele momento pelo qual estava passando. A cada palavra dita por ela, era um momento que revivia em sua mente; arrepios, calafrios e lágrimas passavam por seu corpo. Era muito difícil falar sobre o que estava passando e ter que contar tudo novamente a cada vez que buscava ajuda, sem saber se de fato teria o seu problema resolvido. E foi nesse atendimento que foi encaminhada para mais uma ginecologista para fazer exames, como a ultrassonografia.
Foi em uma quinta-feira de manhã que Luana foi até o hospital de sua cidade para fazer o exame de imagem. A médica foi atenciosa e a atendeu super bem desde o início, mas tudo desmoronou ao descobrir que no exame constava que ela já estava grávida de vinte e duas semanas e dois dias. Sua situação era ainda mais complicada – antes dentro do período de cinco meses de gestação já estava difícil de conseguir amparo; agora, após quase seis meses de gravidez, ela sabia que seria quase impossível realizar o aborto. E foi exatamente isso que a médica lhe disse.
A conversa foi guiada pela possibilidade de gestar o feto, parir e colocar a criança para adoção. A médica explicou que nenhum hospital da região iria fazer o aborto na situação em que se encontrava, por estar “fora do prazo”. A profissional fez questão de deixar bem claro sobre a dificuldade que ela teria para interromper a gravidez legalmente, mas que ainda tentaria contato com outros médicos que talvez poderiam realizar o aborto. Foi nesse instante em que Luana entrou em desespero, pois tinha conhecimento de que apesar de todo o seu sofrimento, a possibilidade de não conseguir acesso ao serviço a que tinha direito era muito grande – e isso poderia custar a sua própria vida.
“Não é que não dá pra fazer. É preciso encontrar quem faça”, afirmava a médica, ciente sobre a baixa possibilidade de dar certo, mas ainda esperançosa de conseguir ajudá-la. A ginecologista já havia conversado sobre o caso de Luana com alguns médicos de Belo Horizonte, mas até então, nada de novo – nenhum aceitava tomar conta do caso. Tentou com profissionais de todo o Brasil, mas todos declinaram com o argumento de que “após esse prazo de vinte e duas semanas, o feto já é considerado ter vida”; e, em meio a problemática que envolvia o PL 1904/2024, ninguém queria se envolver em situações do mesmo nível.
Entre uma crise de ansiedade e outra, Luana aguardava o retorno da ginecologista pelos próximos dias, quando recebeu a notícia de que estava em contato com uma profissional de Uberlândia, cidade do Triângulo Mineiro: a médica, que atendia a quase 800km da cidade de Luana, concordou em recebê-la no hospital de clínicas de Uberlândia para realizar o procedimento. Luana respirou fundo, com o sentimento de que a partir dali, talvez as coisas pudessem se ajeitar; mas sabia que de qualquer forma, não seria fácil. Ela não sabia como faria para chegar até a cidade, que fica do outro lado do Estado, sem contar que a transferência de um hospital para outro seria complicada na sua situação.
Alguns dias depois, a ginecologista de sua cidade a encaminhou para ser internada no hospital de sua cidade para tentar a transferência para Uberlândia, mesmo sem saber quantos dias isso levaria – o processo pelo SUS Fácil (sistema de regulação de leitos e transferências em Minas Gerais) costuma ser bem burocrático, ainda mais na situação em que se encontrava. Além de tudo, o tempo que ela tinha era curto, pois já estava combinado que Luana devia chegar à cidade do Triângulo Mineiro em menos de uma semana, mesmo sem a transferência aprovada e muito menos o transporte até lá.
Ao chegar no hospital para solicitar a internação pela manhã, ela precisou explicar toda a sua situação, mais uma vez. Ela mostrou ao plantonista do turno o encaminhamento e mesmo com toda a documentação necessária, ele se recusou a interná-la, afirmando não poder prosseguir em situações como a dela: “Meu plantão é de emergência e urgência, e você não se encaixa em nenhum dos dois. Não vou te internar”. A essa altura, ela já não sabia mais o que fazer.
Luana se encontrava preocupada: ela tinha aulas, a segunda etapa da entrevista de estágio que se candidatou, provas e uma vida inteira para cuidar. Ela se encontrava cada vez mais perdida, sem dar conta de tudo o que estava acontecendo; ela não conseguia viver sua vida normalmente. A angústia se acumulava cada vez mais e a preocupação em não conseguir se livrar da dor, era maior – ela sabia que se não conseguisse por meios legais, teria de arriscar sua própria vida ao recorrer a procedimentos ilegais. Mesmo assim, ela sempre esteve muito determinada com o que queria e iria fazer de tudo para conseguir sair viva dessa história.
Ela insistiu novamente, pois sabia que estava lhe sendo negado um direito básico previsto em lei. No dia seguinte, voltou ao hospital e, por sorte, a ginecologista que a havia atendido anteriormente estava lá. Conseguiu ser internada e estava tudo certo – em dois dias, ela chegaria em Uberlândia para realizar o procedimento, após uma longa viagem de doze horas. A enfermeira que iria viajar com ela no carro de ambulância demonstrava todo o apoio, assim como o motorista do veículo. Eles se propuseram a levá-la mesmo se acontecesse algum imprevisto, e a encorajaram a persistir. Ela se sentia mais acolhida.
A viagem
Dois dias depois saiu de sua cidade para ir até Uberlândia. A viagem foi longa: foram 748 km em um trajeto que durou cerca de doze horas – o caminho que parecia ter sido o mais longo de toda a sua vida. Ela se questionava o por quê estava passando por tudo isso, de forma tão lenta e dolorosa, como se já não bastasse o trauma que impregnou em sua história desde o dia em que foi estuprada. Mesmo estando dentro da lei, era complicado ter acesso a um aborto decorrente de violência sexual. Ela não deveria cogitar gestar um feto que não lhe pertencia. Mesmo após 84 anos de lei, o aborto legal é um assunto considerado polêmico e “mal resolvido” pela Constituição Brasileira e, em pleno século vinte e um, ainda é tão difícil ser mulher no Brasil.
Luana chegou no hospital de Uberlândia refletindo sobre essas questões. Ainda não conseguia sentir alívio por estar ali, pois ainda seria necessário viver todo o procedimento que envolve o aborto. Ela foi atendida pela médica, que a explicou com toda a calma e cautela sobre o que seria feito e todas as etapas, que levariam dois dias até ser totalmente completa. Foi quando, finalmente, foi internada na cidade do Triângulo Mineiro, para começar a se livrar de toda a sua angústia – que tomava conta de si por quase seis meses.
Um dia depois, continuou o contato e o acompanhamento de perto com a médica uberlandense, no hospital de lá. Mesmo internada, Luana estava estudando para uma prova que faria quando chegasse em sua cidade; ela tentava se distrair da forma que podia, pois a ansiedade tomava conta de seu corpo a todo momento. Foi quando, passado mais um dia, fez a utilização do misoprostol – tratamento para induzir o parto –, que lhe causou contrações e muita dor,
Luana tinha em mente um medo muito forte: ela não queria ver o feto e isso era uma grande preocupação. Ela não queria lidar com mais um trauma e relatou isso para as enfermeiras que estavam a supervisionando, que a acalmaram e deram a ela a certeza de que isso não aconteceria: deitada na cama de um leito do hospital, ela estava toda coberta por um lençol, que impossibilitava que ela visse qualquer coisa. As cólicas continuavam e quando as contrações começaram a ficar mais fortes, foi levada pela médica para o centro cirúrgico.
Ela sentia uma vontade enorme de chorar e não sabia se chorava pela dor que sentia, ou pela ansiedade que a assolava por meses. Chegando no centro cirúrgico, parecia que não conseguia ouvir e nem enxergar absolutamente nada: seus sentimentos e pensamentos falavam muito mais alto. Até que, de repente, a médica apareceu em seu campo de visão – quando Luana, finalmente, conseguiu enxergar uma luz em meio ao caos que estava em sua cabeça.
Enquanto ela entrava aos poucos no centro cirúrgico, a médica lhe apresentava toda a equipe que seria responsável pelo procedimento: as estagiárias do hospital, as enfermeiras e a ginecologista assistente. Luana se emocionou: pela primeira vez, percebeu que não estava sozinha. A sensação de tranquilidade começou a se instalar em seus pensamentos quando se deu conta de que todas aquelas pessoas estavam ali para salvá-la. Ela começou a chorar e uma das estagiárias presentes na sala de cirurgia começou a acalmá-la, dizendo que tudo daria certo, enquanto a anestesista aplicava a anestesia para finalmente começar o procedimento. Luana dormiu profundamente.
Algumas horas depois, acordou com uma enfermeira medindo a pressão em um de seus braços. Ainda sob efeito da anestesia, lhe disseram que tudo havia dado certo: a cirurgia foi feita, tudo ocorreu bem e ela já estava no quarto do hospital novamente. Mesmo com tudo já resolvido, ela precisaria esperar até que o transporte de volta para a sua cidade fosse autorizado – o que conseguiu apenas dois dias depois. Enquanto isso, manteve contato próximo com a médica, que lhe explicou com detalhes sobre os possíveis sintomas depois de realizado o procedimento, dando todo o acompanhamento necessário e demonstrando estar sempre disponível caso precisasse.
Luana finalmente voltou para casa, após mais uma viagem cansativa de doze horas, mas dessa vez para voltar à sua cidade. Ao chegar em seu quarto, após três semanas de uma história que parecia não ter fim, sentiu ter a sua vida de volta. Podia finalmente voltar à sua rotina, frequentar as aulas da faculdade, estudar, trabalhar e até mesmo se preocupar com coisas fúteis – como por exemplo, se seu cabelo está bonito ou não –, coisas essas que foram tiradas dela por muito tempo. Ela sentiu que finalmente poderia ser quem ela era, de novo.
No Brasil, 4 em cada 10 abortos legais no Brasil são feitos fora da cidade onde a mulher mora, com pacientes que chegam a percorrer mais de mil quilômetros para ter acesso ao procedimento, segundo o G1. Dados do Ministério da Saúde mostram que, em 2021, foram 1.823 procedimentos de aborto legal realizados no país e 711 ocorreram em uma cidade diferente da que as mulheres moravam. Dentre as outras milhares de meninas, mulheres e pessoas com capacidade de gestar que passaram por essa situação, encontra-se Luana: mais um caso de uma cidadã brasileira que precisou percorrer uma longa distância para ter acesso a um serviço de direito próprio.
Quanto maior a distância, maiores ficam as barreiras para o acesso ao serviço de aborto legal, e as pessoas que superam esses empecilhos geralmente são as menos vulneráveis, segundo especialistas. Luana conseguiu se livrar de sua dor e teve sua vida de volta após uma longa viagem; mas grande parte das mulheres que pertencem às camadas invisíveis da sociedade tiveram suas vidas perdidas. E muitas ainda lutam para sobreviver em um País onde para ser mulher é preciso resistir.