Por Luana Galeno
Há algo de ritualístico na ida ao cinema. O apagar das luzes, o silêncio da sala, o som que reverbera pelas caixas. E, de repente, o filme começa. A luz do projetor dança no escuro, e, aos poucos, a plateia é enfeitiçada por personagens desconhecidos, mas que, ao fim da projeção, parecem velhos amigos do público, que se torna cúmplice de suas aventuras, dores e êxtases compartilhando com eles angústias, medos, desejos, mesmo quando suas histórias acontecem em diferentes partes do mundo.
Ao sair do cinema, um grupo de amigos se reuniu sob as luzes suaves da rua em frente ao Cinesesc na conhecida rua augusta como quem precisa se aquecer após o mergulho na ficção. A conversa fluía leve, entre risos e ponderações, enquanto trocavam impressões. Concordavam que o filme havia sido bom, com cenas de uma beleza impressionante, mas faltava-lhe algo, uma intensidade que haviam visitado no último encontro em frente às telas, como uma sombra vibrante que ainda perseguia cada um do grupo. Era como se esse novo filme não tivesse alcançado a mesma profundidade ou tocado aquelas camadas mais íntimas que só certas histórias despertam - é difícil competir com ERA de Veniamin Ilyassov. Ainda assim, havia cumplicidade nos olhares e nas palavras, uma celebração silenciosa de estarem juntos, de viverem, juntos, a magia e a frustração que apenas o cinema é capaz de provocar.
Experiência primorosa comemorada na 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Em outubro de 2024, as luzes majestosas da Sala São Paulo se apagaram e a expectativa pairou no ar. A Mostra abriu suas cortinas, convidando o público a uma viagem cinematográfica inesquecível. A apresentação de Serginho Groisman e Renata Almeida, diretora da Mostra, contextualizou todos os fãs da sétima arte que os próximos quinze dias seriam a chance de provar os melhores pratos de um cardápio mundial. Foi exatamente a experiência que veio se repetir para diferentes pessoas nos próximos dias. Quando o sol ainda raiva forte, as sessões começavam no Cinesystem Frei Caneca com a exibição de As Crianças Vermelhas. Simultaneamente, o Espaço Augusta começava Tentigo, a Reserva Cultural apresentava Holy Cow, a Cinemateca exibia Lidando com os Mortos e assim diferentes pessoas, em um espaço escuro, se tornavam um só organismo, em uma cumplicidade de apreciação do novo. A cidade de São Paulo passou a respirar cinema, transformando-se num mosaico de línguas, culturas e olhares. Cada projeção em diferentes pontos da cidade revelava nuances de lugares distantes, histórias que transcendiam fronteiras e vozes que ecoavam ao redor do globo.
Kummatty, de Govindan Aravindan, emerge como um conto encantado, onde a figura de um feiticeiro, o Kummatty, entra em vilarejos rurais na Índia, transformando crianças em animais e entrelaçando fantasia com a simplicidade do dia a dia. A natureza quase mágica do filme, com cores vivas e personagens lúdicos, leva o público a um mundo em que o imaginário popular e o folclore se tornam realidade, evocando uma Índia intocada e misteriosa, onde a vida parece estar sempre à beira do fantástico. Sua versão restaurada foi exibida na mostra e nela as nuances culturais brilham ainda mais, revelando o poder do cinema indiano de capturar a essência espiritual e a pureza de uma comunidade em conexão com sua terra.
Suresh Reddy, embaixador da Índia no Brasil, quando na abertura da mostra, relembrou os presentes de que o país sul asiático é uma grande potência audiovisual, com a produção de mais de dois mil filmes anualmente. Nesse ano, Bollywood, recebe mais palmas do que nunca durante a Mostra, com a exibição de trinta longa-metragens, oferecendo um mergulho em suas tradições e no cinema contemporâneo que ousa explorar as complexidades do país. A presença indiana, tanto na retrospectiva em homenagem a Satyajit Ray quanto na seleção de novos talentos, trouxe à Mostra uma paleta rica e envolvente, provando que a Índia é um caleidoscópio de histórias que nos aproxima do essencial humano, através da luz da tela.
Bento Bless presenciou o encanto do cinema como espectador na 47ª Mostra, mas foi sua paixão crescente por esse universo que o conduziu, um ano depois, a se tornar produtor da 48ª edição. Ele acredita que a essência desse encontro vai além dos filmes – reside na celebração compartilhada, onde jovens olhares se misturam aos mais experientes, trocando histórias e sensações no escuro da sala. Para Bento, a Mostra é um espaço onde gerações se encontram em um mesmo pulsar, unidos pelo amor ao cinema. Cada sessão se torna um ato de comunhão, onde o tempo desaparece e o olhar de um desconhecido pode refletir o nosso próprio, em um espetáculo que é vivido, mais do que assistido.
Foi com essa profundidade que o público entregou-se à narrativa de 2073, um mergulho visceral em um futuro sombrio que parecia ecoar a própria realidade. Na penumbra da sala, onde olhares jovens e antigos se encontravam, o filme se desenrolava como uma profecia inquietante. A história de Ghost, perdida entre ruínas e memórias de um mundo que sucumbiu, despertava uma emoção crua e densa, compartilhada em silêncio reverente. Cada cena, entrelaçada com imagens de arquivo e vozes do passado, aproximava o possível do inevitável, e as paredes do cinema pareciam vibrar com a angústia contida de todos ali presentes. Para Bento, o espetáculo era mais do que um filme, era um espelho em que o público contemplava seus próprios medos e esperanças, unidos pela urgência de um futuro que já bate à porta.
Mas a euforia pela novidade não impactou apenas o público, que acabaram com os ingressos em segundos assim que cada sessão abria para venda pontualmente as nove da manhã. Fernanda Torres e Selton Melo também aparentavam nervosismo antes de entrar na sala 1 do Espaço Augusta para primeira exibição nacional do filme que protagonizam: Ainda Estou Aqui. Após poucos minutos na sala, saíram sorridentes exclamando um com o outro o quanto foi legal apresentar a estreia para um público tão animado pelo trabalho. A obra foi exibida e premiada no Festival Internacional de Veneza, ganhando na categoria de melhor roteiro.
Em meio a essa valorização do cinema, a Mostra chegou ao fim reafirmando seu papel essencial, celebrando a arte de contar histórias em sua essência mais pura. Os rostos emocionados ao final de cada sessão, os sussurros de quem ainda tentava absorver a intensidade das imagens e as trocas apaixonadas de quem via na tela um reflexo de suas próprias buscas e anseios, tudo colaborava para uma atmosfera que transcendia o espaço físico. E assim, a magia do cinema, que há gerações encanta e inspira, continuou a pulsar viva, dando nova forma ao imaginário coletivo.