"Mesmo um pistoleiro deve ajudar quem ama, a glória não vale mais que a honra"
por
Felipe Bragagnolo Barbosa
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10/05/2024

Por Felipe Bragagnolo Barbosa

 

Ele está lá sempre, todos o conhecem, mas ninguém sabe quem ele é. Seu estilo é único. Conhecido como: “Cowboy de Barueri” ou também como “Golden Boy”.  Mas a questão é: Quem é ele? O Cowboy de Barueri é um homem que aparenta ter entre 30 a 40 anos de idade, sua roupa é de um pistoleiro do velho oeste do final do século XIX, porém toda dourada, e leva em seu bolso uma pistola de cola. Ele é visto por toda Barueri, mas ele fez sua fama nas madrugadas, especificamente em um posto em Alphaville, próximo de um cassino escondido. Ele aparece na loja de conveniência, às vezes bebendo cerveja ou um destilado, às vezes ele vai para comer e faz questão de puxar assunto, parecendo sempre ser gentil.

De onde ele é? Ele respondeu que é da Zona Leste de São Paulo, mas que fazem anos que passa por Barueri. Sobre seu nome, ele não quis responder dizendo de forma poética que era mais um Severino nesse mundo, se referindo a obra “A vida e as mortes de Severino”.  Durante a conversa não era constante,  de momentos calmos e tranquilos que partiam rapidamente para tensão e cautela quando se afastou sem se despedir e seguiu seu rumo, saiu do posto e se foi. 

Os funcionários deste posto relataram que o Cowboy está por lá quase toda madrugada, e relataram de uma possível amizade com um ator de TV conhecido e que já conversaram diversas vezes.  Ele já teve redes sociais que não eram gerenciadas por ele aparentemente. Todos seus vídeos e fotos eram registrados por outras pessoas e, em um deles diz ser dono de metade das empresas do mundo, e que anda sem rumo pois "a vida é muito além de gerenciar seus lucros". Ninguém acredita nas palavras do personagem e o tratam como louco. Outros o consideram até mesmo como um sábio. Um homem que estava no posto contou que já recebeu vários conselhos dele, e que o considera um artista.

Depois de um longo tempo afastado para ficar com sua família ele voltou a frequentar as ruas da região argumentando que um pistoleiro do oeste deve ajudar seus amados em situações difíceis. Para ele a glória não vale mais do que a honra arremata afirmando ser justo e honrado mesmo sendo um pistoleiro. E conta como certo dia, em um de seus duelos, havia desafiado um homem para que em uma parte escondida da região, à meia-noite, foi mais rápido no gatilho e teria acertado seu desafeto na barriga saindo vitorioso do embate.

Entretanto, clientes e funcionários que estavam na loja de conveniência do posto declararam que a estória era tudo, menos verdade. Eles contaram que o Cowboy usa diversas estórias diferentes para quem conversa com ele, E que costuma viver em um estado de ilusão sobre a vida. Tem seus princípios baseados numa ideia de mundo e dele mesma que não são reais.

Gabriel tem 19 anos e se formou no ensino médio no Mackenzie de Alphaville e era testemunha da visita semanal do Cowboy. Conta que o pistoleiro era uma lenda viva para os alunos, pois ficava esperando, estático, por muito tempo pela saída das aulas e mesmo assim não falava com os alunos. Foi visto uma vez indo atrás de uma professora tentando conversar com ela, que repondia educadamente enquanto apertava o passo para driblar a aproximação dele.

O cowboy se mostra feliz com a vida que leva, fugindo da realidade constantemente, fugindo do padrão imposto pela sociedade de como viver, seja um artista ou um aventureiro, ou até mesmo a mistura dos dois, ele se mantém único e vai ser lembrado por muito tempo na região como o último pistoleiro do Oeste.
  
 

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As várias formas da distribuição de alimentos para pessoas em situação de rua
por
Rodrigo Silva Marques
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03/05/2024

Por Rodrigo Silva Marques

 

Viver em cidades grandes sempre tem pontos positivos e negativos. Lugares onde o tudo e o nada se encontram. Miséria e riqueza. E uma das que melhor representa isso é São Paulo (capital). Uma metrópole que ao mesmo tempo em que se vê aqueles que moram em casas ou apartamentos de luxo e desfilam com carros caríssimos, têm pessoas marginalizadas pela sociedade que sequer tem condições de ter um abrigo. Mas nos últimos anos, a situação está ficando cada vez mais alarmante.

Não é de agora que se constata um aumento crescente no número de pessoas em situação de rua na capital de São Paulo. Entre dezembro de 2012 e dezembro de 2023, o número de pessoas que vivem nas ruas da capital aumentou quase 17 vezes, passando de 3.842 para 64.818. Um dos principais motivos por ter alavancado tanto esse número foi a pandemia do COVID-19 (no período entre 2020 e 2022). Média de idade dessa população varia entre os 40 e 60 anos.

Para tentar dar suporte a esta classe extremamente vulnerável de pessoas, existem diversos tipos de programas de ajuda. E uma das formas para garantir ajuda é através da distribuição de alimentos, não só pelo governo, mas por iniciativas de ONGs, igrejas, escolas e até de pequenas instituições ou empresas. Muitas instituições estão suprindo boa parte das brechas assistenciais deixadas pelo poder público.

Uma delas atua no bairro da Mooca. É a "Voluntários no Bem". Ela realiza distribuição de alimentos e seu Tônio é quem explica a importância da atividade da instituição. "Pode ser idiota o que vou dizer, mas ainda é muito lindo e ajuda muito de nós que estamos nessa situação muito ruim. Eu estou nesta m**** já faz alguns anos. É como um presente de Deus ter essas pessoas aqui", considera.

Seu Tônio, 57 anos, é um ex-viciado em crack, e diz que foi despejado do lugar onde morava por falta de dinheiro, pois usava tudo para comprar a droga. Quando o expulsaram de casa, não tinha o que comer, pensava muitas vezes que morreria de fome, o crack o tirava isso. Afirma ter ficado dias sem comer por causa disso. No início, não sentia, mas depois do efeito da droga acabar, a fome voltava com força. Para ele muitos usuários acabam morrendo por desnutrição devido a sensação prazerosa que causa uma inibição das suas necessidades básicas, como comer e dormir. 

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Seu Tônio (ao centro) ao lado de outros moradores de rua com suas marmitas

Outro caso peculiar aconteceu junto com os voluntários da Paróquia Nossa Senhora do Bom Parto no Tatuapé. Diferente da Mooca, o Tatuapé não tem tantos focos de moradores de rua, devido a presença de polícia em pontos de concentração, como praças, portas de igreja, terrenos em construção, ponto de ônibus etc. Por isso, a distribuição de alimentos foi em um espaço fechado na Santa Ifigênia, onde ocorreu a entrevista.  Tainá, chorando, disse que  nunca teve muitas coisas para comer e revirava sacos de lixos que ficavam perto de bares e padarias para achar qualquer coisa que servisse de alimento. Para ela receber alimentos é bem melhor do que comer do lixo. 

Vinda de uma família conturbada, Tainá fugiu de casa quando viu a mãe ser espancada brutalmente pelo namorado, e como não foi atrás dela na época, presumiu que ela tinha morrido. Até hoje não sabe se sua mãe está viva. O namorado sempre batia nela e ficava a ameaçando de bater e matar. Um demônio, disse. Mas as dificuldades de viver na rua logo vieram e teve que dormir em bancos em dia de frio. Afirma ter sido aliciada várias vezes por bêbados e mendigos que estavam "noiados". Ela afirma que muitos podem dizer que era melhor ela ter ficado em casa, mas preferiu comer lixo do que acabar morrendo.

No entanto, há pouco menos de um ano ela foi, em suas próprias palavras, “abençoada.  Ela conta que havia uma ONG, que não recorda o nome direito, que acolhia moradores de rua e levava para alojamentos para morar lá. Foi a primeira vez em 13 anos que tinha um teto e, emocionada, deu graças a Deus por ainda existirem pessoas que pensam nas outras com um pingo de bondade. No final de 2023, o governo de São Paulo. em conjunto com outros munícipes, órgãos e instituições governamentais e não governamentais iniciaram um processo de acolhimento para pessoas adultas, em situação de rua, a partir dos 18 anos, respeitando suas condições sociais e diferenças de origem, com o objetivo de acolher a pessoa em situação de rua, oferecendo proteção integral, escuta e condições para o fortalecimento de sua autonomia, contribuindo para o seu protagonismo e possível superação da situação de rua. 

A Pastoral do Colégio Espírito Santo realiza um trabalho de ajudar refugiados e imigrantes em situação de rua e desabrigados sem dinheiro. Como é o caso de Angel, venezuelano, que com a ajuda do professor Tino de Lucca na tradução, conta ter vindo para o Brasil com apenas uma coisa em mente: sobreviver, ou ao menos tentar. 

Ele conta que era uma luta para viver pois as coisas eram absurdamente caras. Ele tinha poucas coisas que podia comprar com os bolívares (nome da moeda na Venezuela) que tinha. Angel, que atualmente tem 22 anos, vivia a partir de salário mínimo (cerca de 130 bolívares (25 reais), um valor abruptamente esmagado por mais de 500% de inflação acumulada no país. Ele disse em poucas palavras, que fugiu do país, não podia viver daquele jeito mais. Era tudo ou nada.  Angel deixou o país no final de 2023, e chegou a São Paulo em fevereiro. Através da ajuda de algumas caravanas, e o que sobrou do seu dinheiro, com passagens de ônibus. Uma das poucas coisas que trouxe foi uma barraca para dormir, pois não iria ficar nos refúgios de imigrantes na Amazônia.

Chegando em na capital começou a tentar arrumar alguns trabalhos como Motoboy, o mesmo que exercia em seu país, mas usando uma bicicleta. Aos poucos, viu que as pessoas de São Paulo podem ser boas também. Quando começou a trabalhar como entregador algumas pessoas o ensinaram a andar de moto para ele fazer as entregas.

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Fotografia de Angel

Mas, por conta do baixo salário, ainda não conseguiu se ajeitar ainda. Praticamente ele dorme em sua barraca embaixo de viadutos ou ao lado de prédios. Conta que ainda não tem o suficiente para comprar muitos alimentos e obviamente passava fome às vezes, e que a Pastoral do Colégio ajuda refugiados e imigrantes. Foi a primeira vez em um que comeu arroz com feijão e carne "tão bem feitos".  

Esses foram apenas três relatos de algumas pessoas em situação de rua na cidade São Paulo, independente do motivo, a condição e o estado da pessoa, ainda continuam altamente vulneráveis. Mesmo que as ajudas humanitárias e os  pequenos gestos de oferecer algo que está sobrando em casa sejam importantes, o pontos de vista dessas pessoas também é importante para entender suas opiniões e perspectivas ao que tem sido feito para ajudá-las, sobretudo para terem acesso a alimentos.

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As diferentes faces e histórias que moldam esta nova onda migratória para o país 
por
Francisco Barreto Dalla Vecchia
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21/11/2023

Por Francisco Barreto Dalla Vecchia

 

Diariamente milhares de pessoas passam pelo aeroporto de Guarulhos vendo-o apenas como um lugar de trânsito. O terminal 2 é ocupado principalmente por companhias nacionais como a Latam e a Gol, os viajantes chegam, fazem o check-in, despacham as malas e caminham rumo ao embarque. Este processo ocorre no térreo do pavilhão, entretanto o terminal 2 possui uma área menos visitada, que é seu mezanino.

Neste segundo andar se localiza alguns restaurantes e cafés menos movimentados, além do posto médico do aeroporto. Ali existe também o posto Avançado de Atendimento Humanizado ao migrante e em frente a ele se encontra uma área de espera, repleta de bancos, um típico espaço encontrado em qualquer aeroporto.

Desde que o Talibã tomou o poder no Afeganistão na segunda metade de 2021, dezenas de famílias afegãs refugiadas já fizeram desta sala uma casa improvisada. Idosos, jovens, homens solteiros e famílias completas dividem a mesma sala de espera. O português aqui não é a língua principal, mas sim o Pashtun. A sala de espera em frente ao posto avançado de atendimento ao migrante era o que mais chamava a atenção: aquele saguão repleto de malas e barracas de acampamento, mas se assemelhava a um camping do que a um aeroporto. 

Refugiados Afegãos acampados em frente ao  posto Avançado de Atendimento Humanizado ao migrante
Refugiados Afegãos acampados em frente ao  posto Avançado de Atendimento Humanizado ao migrante. Fonte: Estadão

Aqueles rostos transmitiam a mais completa incerteza, pareciam se sentir alienígenas, que abruptamente estavam obrigadas a abandonar tudo o que conheciam para enfrentarem um futuro desconhecido em um país completamente exótico. 

O aeroporto de Guarulhos é a principal rota de entrada dos afegãos que buscam refúgio no Brasil. Desde setembro de 2021, quando a ascensão do Talibã ao poder tinha completado um mês, o governo brasileiro passou a conceder vistos humanitários para refugiados afegãos. Quando o documento é emitido, o beneficiado tem até 180 dias para ingressar no Brasil. 

Neste local conheci um jovem de dezessete anos, um dos poucos refugiados que dominava a língua inglesa. Ainda receoso com as perseguições enfrentadas no Afeganistão e no Irã, ele preferiu se manter no anonimato, mas concedeu uma entrevista para o Contraponto, confira:

 

 

Nem todo afegão é refugiado

 

Os quase quarenta anos de conflitos ininterruptos que recaíram sobre o Afeganistão e o obscurantismo imposto pelo Talibã não foram suficientes para sufocar as mentes pensantes deste povo. Sayed Abdul Basir Samimi é um desses, durante anos pesquisou e deu aulas sobre arquitetura e urbanismo para seus alunos em sua terra natal. Sayed não é um refugiado, mas sim um professor universitário convidado e aceitou conversar com o Contraponto:

Há quanto tempo mora no Brasil? 

Moro no Brasil há quatro anos, desde 2019. Antes estava morando no Japão, onde fiz doutorado e antes de morar lá fiz mestrado na Itália. Me graduei no Afeganistão e morei lá até 2011. No ano de 2018 eu vim para o Brasil como professor visitante com uma bolsa do CAC (Coordenadoria de Admissões, Concursos Públicos e Contratação Temporária). Quando o período da minha bolsa estava chegando ao fim, o Talibã tomou o poder, logo eu não poderia mais voltar para lá, então decidi ficar aqui e esperar outra oportunidade de bolsa. Eu consegui achar um edital para pesquisador visitante e apliquei com ajuda do professor Artur Simões Rozestraten, que dá aulas de arquitetura e urbanismo na Universidade de São Paulo (USP). Ele me ajudou muito me oferecendo essa oportunidade e por conta disto hoje estou morando aqui.


O que você já sabia ou pensava sobre o Brasil antes de vir morar aqui? 


Eu não tinha muita ideia do que era o Brasil antes de morar aqui. Um amigo iraniano que encontrei no Japão estava lecionando no Brasil como professor convidado e me disse que o país era um lugar tranquilo onde as pessoas eram acolhedoras. Como eu já era professor e estava fazendo pós-graduação, me candidatei para um programa de internacionalização que estava aberto na universidade, quando eles me escolheram eu fiquei muito feliz porque desde a primeira etapa vi que eles (brasileiros) não tinham nenhuma discriminação, eles apenas olhavam para meu histórico acadêmico. 

Eu sempre falo para meus amigos que aqui é um paraíso. Digo isso não por conta da infraestrutura, mas sim pelo povo brasileiro. Além disso, a mídia, o jornalismo, as pessoas e as universidades estão alinhadas e focadas em combater a descriminação. Talvez você não perceba, mas isso causa um grande impacto. Os protestos e o debate público acerca dos direitos LGBTQIA+, do movimento negro, do movimento feminista, etc. acabam afetando todas as minorias, inclusive nós (afegãos). O que está sendo debatido é o combate a todas as formas de discriminação. Eu acho que este trabalho que a mídia vem fazendo é muito importante, porque ele muda o comportamento do povo. É importante que um país trabalhe para isso, muitas outras nações simplesmente não se importam.

Como foi o processo de aprender a falar o português?

Continuo aprendendo, a língua portuguesa é difícil, principalmente para os afegãos que não sabem falar inglês. Nestes casos a única solução é entrar em contato com as instituições de apoio aos refugiados e procurar conseguir o contato de cursos de português. Em alguns casos esses cursos oferecem uma ou duas horas de aula gratuita por semana. 

Para mim o português é uma língua fácil de entender, razoavelmente difícil de falar e muito difícil de escrever. Isso ocorre porque a estrutura linguística do português é completamente diferente do persa e das outras línguas do Afeganistão. Entretanto, é fácil de se fazer amigos aqui, os brasileiros estão dispostos a conversar conosco e isso ajuda muito no processo de aprendizagem de um novo idioma.

Você teve algum choque cultural no Brasil?

Eu sempre estive viajando e me mudando de países, então eu não tive um choque cultural muito forte. Penso que para mim o maior choque cultural foi a desigualdade social, aqui existem pessoas muito ricas e muitas muito pobres. Entretanto, é curioso notar que estes grupos vivem de forma tranquila e pacífica, dentro do possível.

Como foi a burocracia para entrar no Brasil?

A burocracia é o principal desafio entre os estrangeiros que buscam morar no Brasil. Para ser professor visitante não tive tantos problemas: mandei todos os documentos, tudo deu certo e eu fui aceito. O problema de verdade foi a revalidação do diploma de graduação: o reconhecimento do doutorado foi mais tranquilo e mais rápido; mas para a graduação eles exigiram muitos documentos. A revalidação é realmente demorada, ela demorou quase quatro anos. Eu tinha todos os meus documentos já revisados pela faculdade, eu já tinha feito todas as avaliações necessárias. Eu estou há um ano tentando lecionar na CREA-RS (Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do Estado do Rio Grande do Sul). Estou esperando há um ano e meio para receber a autorização da CREA para trabalhar na minha área. Eu tenho mestrado, doutorado e pós-doutorado e, além disso, já estou trabalhando como professor visitante./p>

Você já sofreu xenofobia no Brasil? Ou algum preconceito por ser muçulmano? 

Não, eu nunca sofri descriminação no Brasil. Algumas pessoas brincam comigo porque pensam que o Bin Laden era afegão, mas fora essas pequenas brincadeiras nada. Por isso o Brasil é um paraíso. Acredito que aqui existe menos xenofobia porque pautas minoritárias sempre estão presentes no debate público. Além disso, o país foi formado por ondas migratórias, como os japoneses que imigraram para o Brasil no começo do século XX, os africanos, os portugueses e muitos outros. A maioria das famílias brasileiras possuem algum antepassado estrangeiro.

No futuro, pode haver uma comunidade afegã unida em São Paulo ou no Brasil? Semelhante às comunidades expressivas asiáticas no bairro da Liberdade, ou italianas no Brás?

Se os afegãos conseguirem se concentrar em algum local específico, seria algo muito positivo. Eles poderiam se ajudar entre si, conseguiriam se desenvolver mais rapidamente e isso também ajudaria eles a entenderem a cultura brasileira mais facilmente. O problema é que isso não irá acontecer, pelo menos por enquanto. Porque não existe um fluxo de refugiados tão grandes para o Brasil, a maioria dos refugiados que passam por aqui buscam refúgio nos Estados Unidos ou em outros países. As pessoas que conseguiram ficar por aqui acabam sendo espalhadas entre as cidades, algumas ficam em São Paulo, outras vão para Salvador ou Belo Horizonte, etc. As migrações do passado contaram com um número maior de imigrantes, o que favoreceu a criação de comunidades mais expressivas que consequentemente culminaram na formação de bairros italianos, japoneses, etc.

Em que cidade você vivia no Afeganistão? E qual era o seu trabalho no Afeganistão? 

Localização da cidade de Herat
Localização da cidade de Herat, Fonte: google maps


 

Eu cresci em Herat, a terceira cidade mais populosa do Afeganistão. Por ser localizada próxima da fronteira iraniana, o idioma majoritariamente falado é o persa. Eu fui professor na faculdade de engenharia da universidade da cidade de onde morava.

Qual é seu grupo étnico?

Eu sou de um grupo étnico minoritário bem comum no Afeganistão chamado Sayed, assim como o meu nome. Essa etnia possui origem árabe, sua linhagem é traçada até o Profeta Muhammad por meio de sua filha Fátima e seu marido Ali. Todos os grupos étnicos do Afeganistão já se misturaram com os Sayed em algum momento da história, existem tadjiques-sayeds, hazares-sayeds etc.

Os Sayed são chamados de filhos de Muhammad ou ancestrais de Muhammad e são a única etnia miscigenada entre todas as etnias presentes no país, são uma espécie de ponto de conexão entre os povos. Historicamente essa etnia serviu como mediadora que resolvia disputas entre as etnias. Além disso, não possuímos uma língua exclusiva, costumam falar o idioma predominante da região onde moramos. Eu penso que se um dia os problemas do Afeganistão forem resolvidos, serão por mãos Sayedes, já que seus membros estão presentes em todas as tribos.

Como você vê os estereótipos associados aos afegãos?

Eu acho que o que dizem é baseado em uma parte de verdade (risos). O Afeganistão é um país que nos últimos quarenta anos sempre esteve em guerras, por conta disso o que as pessoas costumam a saber sobre o Afeganistão sempre tende a ser relacionado com a guerra. Acho que associar o Afeganistão com conflitos não é um estereótipo, mas sim uma meia-verdade. A maioria dos brasileiros sabe das guerras e entendem o sofrimento que meu povo passou, por isso penso que o povo daqui é acolhedor. Na verdade, acho que não existe um estereótipo de afegão no Brasil, porque realmente sofremos com as guerras e o país conta realmente com grupos extremistas e fundamentalistas, o que posso fazer no final das contas? É tudo verdade. Quando os afegãos começaram a chegar no Brasil, as pessoas perceberam que eles não eram extremistas e também se compadecem de toda a dor que os refugiados passaram. Não é o meu caso, pois não sou refugiado, mas é isso que eu percebo.

Do que você mais sente falta do Afeganistão?

Agora eu já virei brasileiro (risos), durante os dois primeiros anos senti um pouco de falta da comida afegã, dos meus amigos e de alguns lugares. Mas a grande questão é que desde que o Talibã tomou o poder tudo foi destruído. Não tenho mais familiares nem amigos lá. Todos os meus familiares vieram para o Brasil em 2021, no total foram vinte e um familiares e todos estão em Porto Alegre. Minha família foi uma das primeiras que conseguiram pegar o visto humanitário. Antes do Talibã subir ao poder, eu comecei a mandar e-mails para a embaixada brasileira do Paquistão e do Irã. Eu pensei “a situação está ruim, os Talibãs irão tomar o poder, tenho que tirar minha família”

Na primeira vez eles não responderam, mas depois entrei em contato com o Itamaraty. Por minha cidade ser central, ela ficou segura por mais tempo, mas o Talibã acabou conquistando toda a zona rural nos entornos da cidade de Herat. Foi nesse momento que percebi que eles iriam alcançar seus objetivos. Foi aí que o Itamaraty respondeu meu e-mail, primeiramente me dizendo que eu estava exagerando (risos) e que o Talibã jamais tomaria o poder, mas posteriormente acabaram decidindo me ajudar. Eu fiquei muito grato! 

Minha família tinha cinco membros: três deles eu consegui tirar o visto de estudantes e os outros 2 com visto de união familiar, o visto humanitário ainda não estava sendo emitido naquele momento. Nessa época um funcionário da embaixada brasileira em Teerã (capital do Irã) me ajudou muito com a papelada e com a documentação, e logo depois que consegui os nossos vistos o Talibã tomou o poder (risos de alívio). Depois disso, os catorze outros membros da família também conseguiram vir para o Brasil com vistos humanitários.

Quando a estabilidade voltar, você pensa em retornar para a sua terra? 

Depende da situação, depende de onde serei mais efetivo. Como morei em diferentes países, acabei tendo minha visão de mundo alterada. não sinto atualmente que meu local de origem é minha casa, qualquer lugar pode ser minha casa. Quero estar em qualquer lugar do mundo onde eu tenha impacto, do que adianta estar em um lugar onde você não é útil?  Não sou apegado ao meu local de origem. Me considero um cidadão do mundo.

Os primeiros dois anos são muito difíceis para todo mundo, não é fácil deixar tudo para trás. Mas quando se começa a construir conexões e criar redes de apoio, você começa a criar um novo lar. O país de origem de uma pessoa costuma ser seu capital cultural porque ele traz segurança e conforto para as pessoas. Esse capital cultural é formado por amigos e familiares. É ele que faz você se sentir apoiado, é como ser membro de uma tribo (risos). Quando você consegue desenvolver isso você consegue se sentir em casa.  Acho que os humanos são como formigas que precisam estar em grupo. Por isso acho que seria bom se os afegãos conseguissem se estabelecer em um bairro específico, pois isso traria um sentimento de pertencimento a uma “tribo”.

 

 

 

Combatentes do Talibã, fonte: BBC
Combatentes do Talibã, fonte: BBC

 

 

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Política Internacional

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Todos queríamos o poder de congelar o tempo
por
Michelle Batista Gonçalves
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26/09/2023

13 de setembro de 2023. 29 dias que completei 21 anos. 2 anos que "seu magrão" não compartilha mais sua vida conosco. A data — dia 13 de setembro — fica bem vívida porque foi consideravelmente perto do meu aniversário, uma data que você sempre fez questão de lembrar. Não só de lembrar, mas também de celebrar. Uma data a qual eu mesma já não comemoro há bastante tempo. Mas que você não se permitia esquecer. Lembro que um dos meus primeiros e melhores celulares (para a época, claro) foi um presente seu de aniversário. Que você me avisou num post na minha linha do tempo do Facebook achando que era uma mensagem privada. Post esse que acabou entrando no meu vídeo de retrospectiva do ano, feito de maneira automática pela própria rede social e que eu guardo com muito carinho até hoje. 

 

Ainda é difícil assimilar que o senhor não está mais aqui. Sua presença tinha muita força. Eu sabia que tinha chegado em minha casa só pelo jeito que fechava o portão, por exemplo. De uma maneira ou de outra, o senhor sempre esteve por perto. No jeito que era apaixonado por música e viciava a mim e meus irmãos em cantores como Ritchie, Fagner, Raça Negra e Raul Seixas (este último originou o nome de seu próprio filho, até). Seu violão, aliás, continua aqui em casa. Não me atrevo a tentar tocá-lo, mas lembro que me ensinou uma ou duas notas certa vez. Lembro da maneira que tocava nos bares e animava a todos. Às vezes eu esqueço, é só como se eu não tivesse mais ido te visitar ou vice-versa. E consigo sorrir e imaginar que você tá por aí fazendo algum corre, porque você nunca conseguiu ficar muito tempo parado e estava sempre trabalhando com alguma coisa. 

 

Tento lembrar de qual foi nossa última vez juntos, mas nada me vem à mente. Só consigo lembrar de momentos longínquos, como se meu cérebro tentasse se proteger ao chegar perto demais da fração de tempo em que recebi a notícia da sua partida. Um membro perdido. Te sinto como se ainda estivesse aqui. O formigamento que os soldados dizem sentir após terem alguma parte do corpo amputada, como se ela ainda estivesse ali. Sua ausência pesa quase como uma presença. O não te ter como "ter" um vazio carregável, do qual não consigo me livrar. A angústia dos mistérios que cercam sua morte. A certeza de que só posso te visitar num cemitério. A revolta de sempre querer adiar setembro. 

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Grupos de extrema direita encontraram o revisionismo histórico como uma importante ferramenta para sua expansão ideológica, buscando se infiltrar nos ambientes escolares.
por
Gabriel Lourenço e Lucca Fresqui
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26/07/2023

Com o crescimento recente da extrema direita no país, além de confrontos no campo político, a disputa no campo ideológico se agravou. Nesse cenário de intensa polarização, pautas revisionistas ganharam força

Com isso, observamos uma tendência preocupante de reexaminar eventos históricos cruciais, sob uma lente de relativização e negação. Essa abordagem visa diminuir ou até mesmo apagar a gravidade e as consequências desses acontecimentos. 

Leonardo Nascimento, professor de História e pesquisador da Universidade Federal da Bahia, conta que, se por um lado a universidade sofreu ataques durante os quatro anos de governo Jair Bolsonaro, por outro adotou comportamentos para se blindar de ameaças.

Em sua avaliação, o ambiente democrático e crítico das universidades passou a ser corrompido uma vez vozes dissidentes eram vistas com um olhar de desconfiança. Por vezes até mesmo encaradas como bolsonaristas.

Para ele, a tentativa de silenciar vozes dissidentes e de construir uma homogeneidade de opiniões no ambiente acadêmico teve como impacto a perda da crítica e da inovação no ensino.

Já Marcelo Reis, professor de História em uma escola de ensino médio na capital paulista, reclama de projetos educacionais, como o “Escola sem Partido”, que buscam implementar uma cartilha conservadora na escola. “Eles [revisionistas] falam tanto de doutrinação, entretanto, na verdade eles querem que a escola seja um meio de dispersão de pautas conservadoras”.

Reis também acredita que discursos revisionistas passaram a ser mais presentes nos últimos anos em suas salas de aula. “Criou-se uma relação de conflito entre professor e aluno. A figura do professor foi desacreditada”, diz.
Existe também medo do “comunismo” e de uma esquerda que seria a grande detentora de toda a mídia e todo o sistema educacional – visões irreais, mas que são tidas como fatos por alguns. 
 
Guilherme Assis, de 22 anos, fez parte de movimentos bolsonaristas no passado e diz que esses grupos tinham como prática uma conduta agressiva em sala de aula. Conta que esses comportamentos eram motivo de admiração nas redes bolsonaristas. “Mandavam vídeos de dentro da sala de aula para mostrar para os outros”, explica Assis.

Essa postura de negação da história e de “desafio ao sistema” é extremamente valorizada entre apoiadores desses movimentos, segundo Guilherme.

Reis afirma que esses casos estão fortemente ligados ao fenômeno da extrema direita. “A retórica é a mesma do Bolsonaro, é parte de um projeto de criar uma juventude bolsonarista” Na sua avaliação, descreditar o ambiente acadêmico permite criar suas próprias verdades.

Leonardo Nascimento diz que a ideia de traçar o ambiente da escola como um ambiente a ser combatido estava fortemente presente nas políticas do ex-presidente. Aponta para sua candidatura em 2018, onde uma de suas principais pautas era de “desesquerdizar” o ambiente escolar, incorporando no bolsonarismo movimentos pré-existentes como o “Escola sem Partido”.

Essas pautas se mantiveram em voga durante os quatro anos do seu mandato. “Vamos acabar com a doutrinação no Brasil”, declarou Bolsonaro em sua cerimônia de posse em 1º de janeiro de 2019.

O ex-ministro da Educação, Abraham Weintraub, deu declarações atacando a “doutrinação marxista” nas escolas. Em uma reunião no Conselho Nacional da Educação, em abril de 2019, disse: "Não vamos permitir que nossas crianças e jovens sejam doutrinados ideologicamente por uma minoria que detém o poder".

Segundo Marcelo Reis, essas políticas têm uma forte ligação com a mentalidade violenta da extrema direita. “O bolsonarismo coloca com um alvo em qualquer discurso que se oponha a ele. Fazem com que sejam inimigos a serem eliminados”, opina. “Faz parte da ideia de criar um clima bélico contra a imprensa, professores e quaisquer outros considerados inimigos”, continua.

Questionado sobre os desafios gerados pelo revisionismo no sistema educacional, o professor de Comunicação da PUC-SP, José Salvador Faro afirma que isso "força os professores a se manterem sempre antenados e atualizados".

Mas ele aponta que esse desafio tem pontos positivos, uma vez que, mesmo trazendo consigo uma carga de desinformação e fraude, novas descobertas e perspectivas podem surgir ao se revisitar a História.

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O projeto de lei tem um papel fundamental no conteúdo disponibilizado para crianças e adolescentes
por
Nathalia Teixeira, Eshlyn Cañete, João Tiusso e João Lindolfo
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07/07/2023

O projeto de lei 2660/2020, conhecido como “PL das Fake News”, terá grande influência no combate à desinformação e quadro de saúde mental entre jovens, caso aprovado. É o que apontam especialistas ouvidos pelo Contraponto Digital. Eles afirmam que a regulamentação se mostra necessária para conter a ansiedade e estresse causados pela propagação de fake news. 

A falta de uma supervisão adequada do conteúdo que as crianças e adolescentes acessam na internet pode causar uma série de distúrbios para o grupo. Informações incorretas, equivocadas ou incompletas podem não apenas afetar o desenvolvimento cognitivo, mas também contribuir com comportamentos violentos que acabam sendo disseminados em fóruns e alcançam menores de idade, resultando em traumas psicológicos e físicos. 

A PL das Fake News é um projeto de lei que estabelece mecanismos para a regulamentação das redes sociais no Brasil, tal qual a restrição de fake news e publicações extremistas. Essa lei funcionará como um mecanismo para que as empresas de tecnologia sejam cautelosas e ágeis em derrubar conteúdos enganosos. 

A lei atuará diretamente no combate à desinformação e controle de conteúdos violentos a crianças e adolescentes. Isso porque, conforme esse tipo de conteúdo é regulado, a distribuição de publicações com efeitos nocivos aos menores será dificultada.

Segundo a jornalista e pós-doutora pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP), Luciana Moherdaui, para avançar no debate é preciso fazer mais que ‘sufocar’ o alcance das postagens. ‘’O PL das Fake News será eficiente se conseguir melhorar os mecanismos de transparência e atuação das plataformas sociais”, explicou. Além disso, ela pontua que a lei poderá coibir o financiamento da disseminação em massa de desinformação e diminuir o alcance das postagens.

Perigos do Discord e fóruns de violência

Já na discussão sobre a violência cibernética, a maneira de conter os discursos de ódio seria limitar o número de usuários das plataformas registradas no Brasil, de acordo com o artigo 2 da PL. Com 3 milhões de usuários brasileiros, o Discord, aplicativo comum entre jogadores de games, tem sido usado para propagação de comportamentos de violência extrema. Em servidores fechados, jovens se automutilam, maltratam animais e propagam ódio para fazer parte do grupo. 

O combate a esses grupos já é uma realidade no Brasil, com a operação “Dark Room”, iniciada pela Polícia Civil em março de 2023, investigando três servidores do Discord utilizados para promover atos de violência extrema, incluindo estrupo virtual. A ação resultou na prisão de Ricardo Conceição Rocha, de 19 anos, no dia 04 de julho., responsável por administrar um dos espaços da plataforma onde os crimes eram cometidos. 

De acordo com dados da TIC Kids Online Brasil 2022, cerca de 24 milhões de crianças e adolescentes brasileiros de 9 a 17 anos utilizam a internet no país. O número representa 92% desse universo populacional. Segundo Luciana, a transparência em relação aos algoritmos seria mais eficaz que uma placa de ‘proibido para menores’ nas redes sociais. 

Um menor de idade que está em um momento de desenvolvimento tanto cognitivo quanto afetivo, lidando com questões emocionais desse período, fica mais vulnerável a esse tipo de conteúdo, podendo afetar suas relações e seu desenvolvimento emocional. 

"Neste período a criança-adolescente passa por um movimento de identificação com os pares, a busca de grupos, de pertencer a determinados contextos. Isso é algo necessário, mas apresenta riscos e desafios quando encontram conteúdos falsos e que incitam ódio e crimes’’, afirma Camila Fonteles, doutora em psicologia e professora do Departamento de Psicologia do Desenvolvimento da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

Outro ator que contribui ainda mais para o problema é a articulação de notícias falsas como um mecanismo de promoção do medo. Alexandre Sayad, educador midiático e jornalista, explora a questão: “A desinformação como um fenômeno, pode deturpar alguns aspectos da qualidade de vida, incluindo o aspecto psicológico das pessoas.”

"Por exemplo, toda essa questão dos ataques nas escolas, a desinformação foi um elemento para a manutenção do medo, pois torna uma questão pontual em algo generalizado, dando uma falsa noção de proporcionalidade”, exemplifica Sayad.

Para a doutoranda em Tecnologias da Inteligência e Design Digital pela PUC-SP, Julci Rocha, é crucial expandir nosso letramento digital. “Compreender as nuances, ênfases, omissões e viés presente nas informações, pois isso adiciona uma dimensão significativa para que possamos nos tornar leitores e produtores críticos de conteúdo na internet”. Ela ainda ressalta que nós “não podemos nos limitar apenas à dicotomia simplista de "verdadeiro/falso", que geralmente é o foco das fake news. 

Fato é que esse projeto de lei vai muito além do combate às Fake News, de acordo com o cientista político e professor da Universidade de Brasília (UnB) Murilo César Oliveira Ramos. O objetivo é dispor sobre a liberdade, responsabilidade e transparência na internet, naquilo que diz respeito às mídias digitais. “A questão das notícias falsas é apenas uma parte quando se trata de discutir a proteção das crianças e adolescentes no ambiente da internet”, comentou.

Para o especialista: “O que a internet fez foi potencializar em muito o risco para crianças, dada a velocidade com que foi entrando nas nossas vidas”. Seguindo essa lógica, se até nós adultos estamos suscetíveis a golpes ou vazamento de dados sensíveis, o perigo com os menores de idade é ainda maior.

Ele ressaltou que, no contexto da violência, a questão já era preocupante na era de ouro da televisão e outros veículos como cinema e rádio. Como ele disse, “As crianças e adolescentes são particularmente vulneráveis a todo tipo de informação não condizente com sua maturidade e preparo para a compreensão do que possam estar assistindo e ouvindo”. Por essa razão o acesso precisa ser regulado.

A importância da atenção aos conteúdos que crianças acessam

A eficácia do PL em evitar a propagação de Fake News dependerá dos mecanismos exatos propostos nesta lei em particular, explica o psicólogo Antonio Farelli. Uma abordagem efetiva poderia envolver a regulação das plataformas online, impondo consequências legais para aqueles que deliberadamente espalham informações falsas. 

Todavia, é crucial que haja também um investimento na educação e conscientização pública, especialmente considerando que uma parcela significativa da população brasileira possui baixa alfabetização e pode ser exposta a notícias das quais não compreendem totalmente o conteúdo.  

Farelli destaca que crianças e adolescentes são particularmente vulneráveis à desinformação devido à inexperiência e falta de habilidades críticas de pensamento. "A PL pode ter um impacto significativo desde que seja implementada de maneira adequada”. O profissional ainda explica que “é essencial fornecer educação sobre como fazer um uso seguro da internet para essa faixa etária, capacitando-os com habilidades de pensamento crítico e discernimento para identificar informações confiáveis”

As crianças estão em aplicativos, jogos e nas redes sociais. Dessa forma, estão em mais em contato com notícias falsas que adultos. Enquanto os mais velhos estão instaurados no Whatsapp e no Facebook, para os mais jovens há uma gama de possibilidades, com várias opções de jogos, aplicativos e sites. A criança fica mais tempo em todas essas plataformas, por isso, tem mais contato com as informações falsas e violentas. 

Além das fake news que incitam o ódio, há mentiras que prejudicam o andamento da inteligência de uma criança. ‘’O público infantil é bombardeado por mensagens falsas que prejudicam o conhecimento e o raciocínio. Só o Chat GPT afeta intelectualmente o menor’’, diz a jornalista e doutora Magaly Prado, especialista em desinformação. Esse acesso traz prejuízos físicos, neurológicos e oftalmológicos pelo excesso de estímulos das telas.

Combate a desinformação

A educação midiática é um elemento necessário no combate à desinformação e precisa começar a ser implementada no currículo educacional o quanto antes. O ensino através dos meios digitais já é uma realidade, mas é necessário ser complementado com o aprendizado de técnicas de apuração e produção de informação de qualidade.  

"Há umm conjunto de habilidades que podemos chamar de educação midiática e precisam ser desenvolvidas na educação básica. Não ter projetos que abordem essas habilidades para navegar com fluidez, ética, análise e produção de informação de qualidade, deixa as pessoas parcialmente analfabetas e limitadas na leitura de mundo”, disse Alexandre Sayad.

Sayad também se posiciona em favor da articulação de várias medidas para combater as fake news. “As soluções contemplam uma constelação de ações, nunca é um tiro só. Eu não acho que educação midiática sozinha resolva a desinformação. Da mesma forma que eu não acho que a regulação das redes sozinha combate a desinformação.”

O educador complementa apontando para ações mais abrangentes que vão além do Estado, já que o que pode vir a ser verdade é complexo e exige uma mobilização de toda a sociedade civil acerca do tema. 

De acordo com Magaly ‘’Não adianta ficar só na superfície, ensinar o que é um computador, um algoritmo, tem que ensinar a criança a ter um pensamento crítico, a duvidar e não aceitar qualquer coisa. Ela tem que saber desconfiar.”

Ter controle no que a criança consome é essencial, principalmente por ela estar na fase de seguir exemplos. ‘’Qual é o canal do Youtube que ela assiste, quem ela segue no Instagram e TikTok? Lá vai ter tudo de abuso e desordem informacional”, pontua a jornalista. ‘’O ideal é que o acesso seja monitorado pelos familiares e educadores. O caminho para combater a desinformação seria esse trabalho de orientação e sobretudo prevenção’’, finaliza a psicóloga Camila Fonteles.

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“Essas pessoas lucram em cima da necessidade do povo”, diz voluntário
por
Gisele Cardoso e Sara Gouvêa
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06/07/2023

Lideranças de ONGs que combatem à fome no Brasil, relataram ao longo do mês de junho sobre a burocracia extrema que enfrentam, além de atuarem sozinhas em regiões necessitadas, pela ausência de apoio governamental. 

Essa burocracia apontada pelas instituições atrasa, e até mesmo impedem, a conclusão de processos como os de licenciatura: “Há muita burocracia nos processos de levantamento de recursos e de regulamentação, o governo precisa facilitar essa demanda”, relata Maico Marins, um dos líderes do projeto Sertão Clama, braço do movimento Avança Sertão, que atua no combate à fome no Norte e Nordeste do país.

Rafael Alves, fundador da Rede de Osasco (rede de apoio à ONGs), também enfrenta problemas com as regulamentações das instituições do seu projeto: “A legislação brasileira é péssima para associações... é mais fácil abrir uma empresa do que uma ONG no Brasil”, revela.

Elas não apenas fazem a distribuição de alimentos, mas também ajudam as comunidades carentes a ter acesso ao mercado de trabalho, à educação e a reestruturarem suas vidas para que não dependam continuamente de doações para sobreviver.

As instituições deveriam apenas auxiliar a máquina política a cumprir seus deveres com a população, mas o que se encontra no Brasil são coletivos civis fazendo por completo o trabalho do Estado em regiões abandonadas por seus representantes. “Nós sabemos de coisas que o próprio Estado nunca saberá, pois investimos em lugares que ele não está, como a periferia… O que é importante para nós, não é importante para quem está no poder”, confirma Alves.

Segundo Rafael Alves, apenas 5% das ONGs recebem recursos públicos para suas atividades: “O Estado deve ter uma legislação que facilite a vida de quem quer fazer o bem, que faça o dinheiro chegar nas associações e que as inclua nas grandes discussões sobre a sociedade”, ressalta.

Por serem organizações civis, elas são capazes de acessar lugares e pessoas que o Governo não consegue sozinho, porém essa deveria ser uma relação de parceria. “No geral, nós atuamos em regiões que o governo não dá atenção ou atua de forma superficial e assistencialista, ajudando a pessoa naquele momento, mas sem mudar a realidade dela”, comenta Maico.

Esse trabalho é extremamente necessário para o nosso país que possui 120 milhões de cidadãos que convivem com qualquer nível de insegurança alimentar como divulgado pela atual ministra do Meio Ambiente e da Mudança Climática, Marina Silva. Diante desse dado, fica explícito a urgência com a qual o Estado deve se organizar para mudar esse cenário.

O sociólogo Roberto Antoniasse, explica que a relação de parceria entre as organizações e o governo é de alta complexidade e muda de tempos em tempos de acordo com as lideranças do país: “Essa relação é conflituosa e tensa, pois depende da configuração em que se encontra o cenário social e político, além de envolver questões de interesse partidário e ideológico”.

 

As consequências da falta de auxílio

O Sertão Clama, tem como uma das iniciativas a criação de poços e a contratação de caminhões pipas, para sanar a necessidade dos vilarejos que enfrentam o problema da seca. Porém, o projeto se deparou com um esquema de “máfia”: “É quase impossível cavar os poços e contratar os caminhões superfaturados... tanto a ONG quanto os moradores são ameaçados, pois essas pessoas lucram em cima da necessidade do povo”, conta Gustavo Marques, também líder da instituição.

Os governos da Bahia, do Piauí e de Pernambuco já foram notificados pelas famílias e pelo projeto, mas nada foi feito até o momento. Nem a respeito das ameaças e nem para uma possível fiscalização sobre os valores do mercado de água potável da região. Deixando a população refém da criminalidade e impossibilitando que a ONG forneça auxílio na região.

Outro empecilho que existe, desta vez causado pelo próprio governo, são as taxas para adquirir a autorização da escavação de um poço artesiano, pois quando a escavação é concluída e a água é atestada como própria para uso, governo muitas vezes tenta tomar posse da fonte, tirando assim mais uma fonte de água totalmente gratuita do povo, ao qual ele deveria servir.

Vias para melhoria do cenário

De acordo com Bianca Monteiro, advogada especializada em terceiro setor, há sempre um protagonismo na área social pelas organizações sem fins lucrativos e cita: “Isso são indicadores da necessidade por políticas públicas. Organizações que trabalham com segurança alimentar e nutricional, efetivamente fazem muita diferença na prática e no cotidiano do povo brasileiro”.

As políticas públicas são a principal ferramenta para que o governo possa desafogar o trabalho das ONGs. Patrícia Mendonça, Professora Mestre de Gestão de Políticas Públicas da USP, explica como o governo pode melhorar essa relação: “Hoje se alguém precisar saber sobre essas parcerias, ela vai precisar ir em cada secretaria de São Paulo, pois não existe um site ou uma área específica que contenha todas essas informações para a orientação e relação”.

A especialista sugere que os estados retomem essa pauta e criam canais mais estruturados e preparados para receber essas instituições e auxiliá-las nas suas atividades: “Precisa ter uma estrutura mínima para fazer a gestão dessas parceiras, para que elas ocorram de fato como parcerias e não como mais um prestador de serviço”.

Com essa aceleração dos procedimentos, as populações poderão ser atendidas mais rapidamente, evitando que a insegurança alimentar das famílias piore durante a espera, principalmente considerando que a privação de alimento pode acarretar até mesmo em morte.

A participação de organizações religiosas

As organizações religiosas, que representam 17% desse setor, não podem receber verbas do Governo por terem interesses religiosos, visto que o Estado é laico. Sendo assim, precisam recorrer ao setor privado. A varejista C&A, por exemplo, faz doações para o brechó do Centro Social da Comunidade Carisma, igreja da zona oeste de São Paulo.

Essa relação entre empresas e ONGs, garante a continuidade do trabalho contra a fome para essa parcela das organizações e ainda gera empregos no processo. Porém, para que as organizações possam ter acesso a essas empresas, é necessário que elas ganhem mais visibilidade no país.

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Médico psiquiatra especialista em dependentes químicos explica que as substâncias são usadas como uma válvula de escape para ajudar a lidar com a fome, pobreza e exclusão.
por
Nicolly Novo Golz e João Victor Esposo Guimarães
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03/07/2023

“Quem está inserido em uma realidade de extrema exclusão, tem maior chance de usar a droga como válvula de escape dessa realidade”, adverte Marcelo Ribeiro, 53, médico psiquiatra que foi diretor do Centro de Referência de Álcool, Tabaco e Outras Drogas por 10 anos. O doutor explica que do ponto de vista neurobiológico, qualquer privação ou exclusão aumenta o risco de um indivíduo consumir drogas.

O estresse é um grande fator de risco para a introdução do vício. “Se pensarmos em alguém que nasceu em um ambiente de exclusão social, sem apoio nenhum do estado, com uma estrutura familiar desestabilizada, essa pessoa está altamente exposta ao risco de utilizar substâncias, principalmente se tiver contato com o narcotráfico", explica Ribeiro.  

O consumo de drogas pode ser atrelado a múltiplos fatores tornando essencial uma meticulosa compreensão de cada caso. Seu uso, com frequência, está ligado à desigualdade social. Entretanto, o consumo de entorpecentes é visto de forma moralista e individualista culpabilizando o usuário. “O que seria um consumo problemático ou não problemático na vida de quem não tem nada, de quem passa fome, frio e dorme no chão?”, questiona Marcelo.

Antes de procurar o crack, a pessoa marginalizada recorre a produtos baratos e de fácil acessibilidade, como o álcool, solventes, cola de sapateiro, thinner e acetona.

“O álcool, por ser muito barato, viabiliza o acesso de pessoas que têm poucas condições econômicas. A substância possui efeito psicoativo muito intenso e pode provocar dependência severa, até pior que a do crack, do ponto de vista fisiológico”. A cola de sapateiro sofreu algumas regulamentações o que diminuiu a circulação do produto e paralelamente, fez com que o crack tivesse uma penetração muito grande.

O crack é a droga mais consumida pela população extremamente vulnerável, mas ele não surge assim, visto que é um derivado da cocaína. Porém, quando a droga é produzida em grande quantidade, por ser uma substância muito danosa e de absorção muito rápida, se popularizou. 

Outro fator que aumenta a popularidade do entorpecente é o preço. "Pessoas absolutamente excluídas vão precisar de drogas que possuem opções de varejo melhores, o crack pode ser comprado de diversas formas, uma pedra de 5 gramas, lascas do químico ou uma fumada por um real, é uma substância que possui apresentações economicamente mais possíveis”, aponta Marcelo.  

Ribeiro realizou um estudo que explica: “Uma pessoa no topo de uma estruturação social tem menos de 10% de chance de desenvolver dependência por uma substância, já quem está no pólo inferior, em situação de insegurança alimentar e habitacional, tem pelo menos 33,3% de chance de vir a desenvolver dependência por uma substância” 

Em entrevista, Maurício Fiore, mestre em Antropologia Social pela USP, doutor em Ciências Sociais pela Unicamp e pesquisador do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), esclareceu que, se sabe que os padrões do uso de drogas, não está relacionado diretamente a contextos de fome especificamente. “Para ter uma relação científica, é necessário dizer que todas as pessoas que passam fome vão consumir algum tipo de droga, o que não é verdade”, explica o pesquisador. 

O que acontece é que no Brasil, a fome tem associação especialmente com pessoas em situação de vulnerabilidade e de rua, que podem encontrar no uso de drogas uma forma de aliviar todos seus sofrimentos, incluindo a fome. Fiore explica: “A fome por si só é um problema que se juntada ao uso de drogas, pode formar um problema ainda maior”. 

A  situação de miséria no Brasil é histórica e estrutural, por conta disso, a população em situação de rua muitas vezes é taxada como consumidores problemáticos de drogas, mas na verdade existe um acúmulo de problemas. “Quando analisamos esses indivíduos, é possível ver uma trajetória marcada por rompimentos, dificuldade de relação com o mercado de trabalho, com a polícia, com a justiça criminal, uma somatória de fatores”, completa Maurício. 

Em uma ação do grupo Ondas de Amor, sediado na Lapa, bairro da zona oeste de São Paulo, que promove, quinzenalmente, café da manhã e kit de higiene básico para pessoas carentes. Davanei, 32, morador em situação de rua que participava da ação, contou que é usuário de entorpecentes desde os 13 anos de idade. “Faz 19 anos que sou usuário, comecei cheirando cola  e agora tô no crack”, diz. 

O crack  afeta a química do cérebro do usuário, causando euforia, alegria, suprema confiança, perda de apetite, insônia, aumento da energia, desejo por mais crack, e paranóia potencial (que termina após o uso). Devanei conta que ao usar a substância não sente fome, sono nem sede, apenas vontade de fumar de novo, “com o crack você não é dono nem da sua própria vida”.  

Ele conta que começou a usar drogas porque foi expulso de casa aos 12 anos, o que fez com que ele vivesse inúmeras situações de insalubridade. A falta de alimento pode levar a uma alimentação inadequada e à escassez de nutrientes necessários para o corpo, o que pode ter consequências negativas para a saúde mental e física. Isso pode aumentar a vulnerabilidade de uma pessoa ao uso de drogas, especialmente se ela estiver enfrentando outros fatores de risco, como estresse, ansiedade, depressão ou traumas.

A dependência química afeta a capacidade das pessoas de conseguir empregos e manter sua subsistência. Sem um emprego formal, sem o auxílio de familiares e do poder  público, os dependentes químicos se vêem na responsabilidade de usarem o pouco que ganham na rua para saciar seu vício. A falta de uma alimentação, a vida instável da rua e o uso constante de drogas por essa camada da sociedade, os levam a um ciclo vicioso.

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As refeições são servidas com longas horas de distância e, muitas vezes, chegam estragadas
por
Carol Raciunas e Juliana Mello
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06/07/2023

“Meu filho chegou a se alimentar de papel higiênico e de creme dental para matar a fome, enquanto estava preso”, conta Miriam Nunes, uma das fundadoras da Associação de Familiares e Amigos de Presos (Amparar). Com voz trêmula e olhos marejados, ela explica que a comida não é servida na quantidade e qualidade para que uma pessoa se mantenha saudável.

Dentre as 96 penitenciárias de São Paulo, a fome é uma reclamação dos detentos na maioria delas. Segundo o ex-conselheiro do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), Ribamar Araújo, “se naturalizou que, mesmo estando sob custódia do Estado, essas pessoas passam fome.”

“A questão da comida no sistema prisional é: a comida é pouca. Se chega um café da manhã, um almoço, eles comem em horários desregulados. Muitas vezes, passam mais de 24 horas sem se alimentar”, aponta Miriam.

Ela fundou a Amparar ao notar as condições de seu filho, na época em que foi preso na antiga Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor (FEBEM). No mesmo período, recebeu diversas denúncias de que os adolescentes apreendidos estavam em condições deploráveis e insalubres. 

“Nós ficamos muito preocupadas, porque eles estão num ‘cemitério de mortos-vivos’. Na Amparar, acreditamos que isso seja uma jogada para eles não conseguirem pensar, para eles não terem energia de pensar. A fome é uma forma de ter controle desses corpos”, afirma. 

Ela contou ainda que o trabalho da Associação começou através do fortalecimento entre familiares que não se sentiam amparados por nenhum órgão público. As voluntárias visitam Centros de Detenção Provisória (CDP) e oferecem atendimento individual de apoio às famílias.

A população carcerária em São Paulo chegou a 209 mil pessoas no ano de 2022, de acordo com informações da Defensoria Pública. Ribamar, ex-conselheiro do Consea, já visitou penitenciárias em todas as 27 unidades da federação para estudar o tema que aponta ser problema em praticamente todo o território nacional.

“Por uma questão de economia de combustível, em alguns casos, o transporte responsável pela comida dos detentos já leva café, almoço e janta. Então, o almoço é servido frio e, a janta, azeda”, conta.

Segundo ele, frequentemente as refeições são atrasadas por questões pessoais dos funcionários. Quando um deles está de mau humor, por exemplo, a entrega da alimentação é oferecida ainda mais tarde do que o previsto. 

Ribamar aponta que comportamentos assim fazem os detentos passarem longas horas sem comer, os colocando em uma situação de insegurança ainda mais delicada. Ainda assim, o ex-conselheiro do Consea explica que o Estado tem consciência sobre o problema da fome nos presídios, e a usa como uma ferramenta de punição. 

Para ele, a negação do Direito Humano à Alimentação Adequada, converte-se em vetor de tratamento cruel, desumano e degradante. “A fome é uma ferramenta de tortura, e a pena de fome condena as pessoas à pena de morte”, afirma.

Vale lembrar que a Constituição Federal de 1988, através da Lei de Execução Penal, garante o direito à alimentação adequada para a população privada de liberdade. Como garantido no Artigo 12, “a assistência material ao preso e ao internado consistirá no fornecimento de alimentação, vestuário e instalações higiênicas”. Já no Artigo 40, impõe-se a todas as autoridades o respeito à integridade física e moral dos condenados e dos presos provisórios; E por fim, o Artigo 41, que constituem os direitos do preso: alimentação suficiente e vestuário”.

Para Luciana Zaffalon, diretora-executiva do JUSTA (ONG responsável por facilitar o entendimento e a visualização pela melhora da segurança pública e da justiça criminal), o descaso com a dignidade dos detentos ocorre também por uma questão  orçamentária das políticas de segurança e prisional.

“A perspectiva de prender cada vez mais pessoas, sem respeito aos direitos básicos que lhes deveriam ser garantidos, como se fosse um caminho possível para efetivar a segurança pública, se mostra irracional também em sua dimensão orçamentária”, afirma Luciana.

Assim como Ribamar, ela destaca a Lei de Execução Penal, e aponta: “Observamos nas políticas prisionais um grande paradoxo: as pessoas são presas pelo Estado por violarem a legislação e, quando estão nessa condição (de encarcerados), passam a viver uma rotina de violações por parte do Estado, que descumpre sem qualquer pudor a legislação que deveria aplicar”.

Ela afirma ainda que há farta literatura que trata do surgimento de organizações como o PCC atrelando esse fenômeno à ausência do Estado. Com isso, ele, ao naturalizar omissões e violações, ao invés de exercer o papel que lhe é determinado por lei, cria ambiente fértil para que novos arranjos sejam forjados.

Luciana aponta que a solução é simples e clara: o Estado deve seguir a legislação vigente. Para ela, o problema da fome nos presídios só poderia ser plenamente sanado através do cumprimento das leis, principalmente a de Execução Penal.

Em resposta aos questionamentos feitos pela reportagem, as unidades prisionais pertencentes à Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo informaram que são oferecidas quatro refeições diárias. Elas são compreendidas por café da manhã, almoço, jantar e ceia noturna aos presos.

Para Daniel Balaban, Diretor do Centro de Excelência contra a Fome do Programa Mundial de Alimentos (WFP) da ONU no Brasil, “Fome se caracteriza pela carência alimentar por períodos longos, causando sensação de desconforto e dor”.

Ao pensar nas estratégias de combate à fome nas prisões, Daniel reforça o pensamento de Luciana de que “é necessário o cumprimento das políticas públicas que permitam o acesso a uma alimentação digna, e que sejam eficazes em casos de pessoas que dependem de outras para se alimentar, como é o caso do sistema prisional”.  

Uma mãe no presídio

A fome que impacta o mundo tem sido protagonista na tortura do sistema prisional. A reportagem conversou com a mãe de um detento, que preferiu não se identificar. Em respeito à sua privacidade, terá seu nome substituído por Maria. “Tem momentos que eu não quero nem comer, porque eu não sei se o meu filho comeu”, conta ela com os olhos marejados.

Maria contou que, apesar da Administração Penitenciária informar que é servida uma refeição balanceada, quando a marmita chega, são dois dedos de comida e as carnes são transparentes.

Ela explica também que, na prisão, existe o jumbo, que é uma lista padronizada de itens que as visitas podem levar. Porém, não têm condições financeiras de mandar um jumbo toda semana e, por isso, leva “o básico” mensalmente. 

“Não consigo ir sempre fazer uma visita, mas quando eu consigo, eu vou. Só entra uma sacola, o que limita muito. A sacola não é tão grande, então você leva o que dá”, aponta. Maria ainda completou dizendo ser impressionante o quanto os detentos conseguem fazer a comida render entre si. 

Ela acredita que servir para os presos uma quantidade de comida que só seria suficiente para crianças de cinco anos é uma forma de tortura modernizada para controlar quem está dentro dos presídios.

“Eles podem ficar horas e horas sem comer nada. Como alguém pode sair saudável desse lugar? Como um ser humano sobrevive?”, questiona.

Tanto Maria quanto Nunes apontaram que o corpo dos detentos sofre diversas mudanças por conta da situação. Após um período na cadeia, quando saem, há um longo processo de adaptação. Enquanto isso, quando se alimentam em condições ideais, passam mal. 

“Está tão penetrado neles, que acham que comer uma boa quantidade de comida vai fazer com que eles passem mal. Até voltar a comer bem, leva bastante tempo”, afirma Nunes

Durante a pandemia

Um estudo realizado pela Amparar e a Fundação Getúlio Vargas (FGV), concluiu que 34% da população carcerária estava com dificuldades de se alimentar. Maria afirma que seu filho foi preso bem no auge da pandemia, ou seja, em outubro de 2020. Ela conta que, neste período, sofreu muitas dificuldades.

“Tivemos denúncias de que a comida fica perto de lixo, exposta. Falam que a escravidão acabou, mas a gente pode ver isso na relação dentro do sistema prisional, através da comida.” aponta Maria. 

Outro fator que se agravou durante a pandemia foi o recebimento do jumbo por parte dos presos. Muitas vezes, as famílias tiram o que têm de casa para levar para seus filhos na prisão.

“O jumbo é uma despesa. Às vezes você pode gastar 400 reais num jumbo, minimamente. É mandar o jumbo 1 vez por mês, se satisfazer com aquilo.” lamenta Maria. 

No final da entrevista, Maria lamentou ainda a dificuldade de promover mudanças no sistema carcerário: “As coisas não mudam, aumentam a quantidade de presos e a comida só diminui. A pessoa está privada de liberdade, não deveria estar privada de comer.”

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Importância de órgãos como CONSEA SP para a redução da fome e insegurança alimentar no Estado
por
Lucas Munhoz Rossi
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05/07/2023

São Paulo lidera o ranking brasileiro da fome, com cerca de 7 milhões de pessoas famintas. O governo do Estado afirma ter uma série de ações que visam ao combate à fome, no entanto, 14,7% da população paulista sofre com a falta de alimento. 

Segundo o 2º Inquérito Nacional da Insegurança Alimentar, da Rede Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional), divulgado no ano passado, cerca 125,2 milhões de brasileiros sofrem com algum grau de insegurança alimentar, representando um aumento de 7,2% se comparado aos dados de 2020.

Somente no Estado de São Paulo, 55,9% da população sofre com algum grau insegurança, sendo mais frequente em domicílios com renda mensal de até meio salário-mínimo (83,8% de insegurança alimentar), trabalhadores informais/desempregados (43,9%) e pessoas sem escolaridade (66,5%).

O agravamento da fome tem forte relação com a pandemia de Covid-19. Isso porque, a partir de dados do no inquérito, no Brasil, a fome saltou de 19,1 milhões de pessoas famintas em 2020 (antes da pandemia), para 33,1 milhões em 2022. 
Para Rubens Nunes, economista, professor da Universidade de São Paulo e especialista sobre a fome, “a pandemia fez a insegurança alimentar dar um salto descontínuo, numa tendência de agravamento”. Porém, para o especialista, além da pandemia, há fatores de longo prazo, entre eles o baixo crescimento da economia e a crise fiscal do estado que limitam a execução das políticas públicas de combate à fome.

Na visão de Rubens, São Paulo tem muitas pessoas em situação de insegurança alimentar porque é populoso e que, pela densidade econômica, atrai migrantes em busca de oportunidades que estão se tornando escassas. 
Levando em conta que o índice de desemprego na região saltou de 7,7% (2022) para 8,8% (2023), segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). “A desigualdade explica a insegurança alimentar em um estado relativamente rico”, afirma o economista. 

Além disso, para o professor, a piora da fome tem relação com o foco principal do governo, já que os mais necessitados não têm direito a alguns auxílios. “As políticas de transferência de renda são bastante efetivas no combate à fome. O problema aqui é o foco: não conceder benefícios para quem não se enquadra e dar para quem, de fato, está em situação vulnerável”. 

Isso ocorre, pois boa parte das pessoas elegíveis para programas de transferência de renda são “invisíveis” para o Estado. Já que em sua maioria são pessoas sem documentos, que tem dificuldade para se relacionar de modo formal com as agências públicas, e que não estão amparadas pela previdência social. 
Outro fator importante que impacta e dificulta as políticas públicas, reside no fato de que há causas estruturais que, se combatidas, só serão superadas no longo prazo, ao passo que as demandas por alimento são urgentes. Por conta disso, muitas vezes são “escanteadas” pelo governo.

Para Raquel Nunes Silva, doutoranda em Saúde Global e Sustentabilidade (USP), Mestra em Agroecologia (UFV) e professora universitária de nutrição, acredita que, embora São Paulo tenha um imenso potencial agrícola, a distribuição de terras e a concentração da produção em grandes propriedades dificultam o acesso de agricultores familiares aos recursos necessários para uma produção sustentável e diversificada. 

“A falta de infraestrutura adequada, como estradas e armazenamento de alimentos, prejudica a comercialização e a distribuição dos produtos, impactando negativamente o abastecimento alimentar”, afirma a professora.

Além disso, segundo a especialista, durante a pandemia a implementação do Plano Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) enfrentou limitações significativas. “A paralisação do Consea/SP e a falta de discussões sobre segurança alimentar e nutricional prejudicaram o andamento das políticas públicas. A participação social e o envolvimento de diversos setores são cruciais para ampliar o alcance das ações e promover a inclusão de atores relevantes nessa área”, complementa. 

Na opinião de Raquel, no âmbito das políticas públicas, os principais desafios enfrentados são a fragilidade do Sistema de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN) no Estado, além de ações desarticuladas e com pouca densidade nas medidas estruturantes. “A falta de uma estrutura sólida no SISAN compromete a efetividade das políticas de combate à fome”. 

Ações governamentais contra a fome

Em busca de amenizar o problema, o governo do Estado possui diversas ações e iniciativas, como o “Bom prato”, “Vacina Contra a Fome”, “Vale Gás” (aproximadamente 100 mil famílias) e “Viva Leite” (aproximadamente 300 mil pessoas entre crianças e idosos). Para Rubens, as ações do governo estadual devem reforçar as políticas federais e municipais. “O conjunto das políticas do estado de São Paulo tem um impacto importante, ainda que cada uma tenha um escopo relativamente limitado”.

Marília Touças, presidente do UMA (Instituto Um Momento de Amor), ONG que atende famílias e pessoas socialmente vulneráveis ou em situação de rua, acredita que tais ações governamentais são fundamentais no combate à insegurança alimentar. “Eu fui uma criança pobre e o Viva Leite era fundamental na minha casa. Hoje, acompanho a comunidade que apadrinhamos com cestas básicas e sei da importância dos programas. Para a população em situação de rua”.

Além disso, existe o Consea/SP (Conselho Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável), que tem como função, assessorar o governo na construção de políticas públicas, referentes a Segurança Alimentar.  Fazendo um elo com a sociedade civil, já que 66,6% de seus membros são civis. O conselho é “a porta de entrada” para as demandas da população.

O presidente do Consea/SP, João Dornellas, afirma: “Nós atuamos principalmente na divulgação e na propagação de informações e de conhecimentos na área da Segurança Alimentar e Nutricional”. O órgão faz as divulgações por meio de palestras e encontros que apresentam as ações do Governo do Estado de São Paulo. 

“Também auxiliamos os municípios paulistas na elaboração da Política Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional, com reuniões de capacitação para os gestores municipais”, complementa João.

Na visão de Raquel Nunes, embora o governo tenha implementado programas importantes nos últimos anos, ainda existem lacunas a serem preenchidas e a necessidade de fortalecer essas iniciativas, além de desenvolver estratégias mais abrangentes. 

Prova disso, é o não cumprimento do Plano Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional, por parte dos órgãos públicos. Tal documento, elaborado com base em ampla discussão e participação da sociedade civil, contém diretrizes e metas importantes para a promoção da segurança alimentar e nutricional em São Paulo. No entanto, a falta de comprometimento com a implementação efetiva do plano prejudica os avanços necessários no combate à fome.
Importância das ONGs no combate à fome

Durante a pandemia, à medida que o coronavírus se propagava, algumas iniciativas do governo paralisaram suas atividades. Para Vanuzia Teixeira, coordenadora do Consea/SP, o agravamento da fome teve grande relação com a paralização do conselho em 2020. “Justamente neste momento bem delicado, o conselho foi obrigado a paralisar suas atividades”, afirma a coordenadora. A retomada aconteceu apenas em julho de 2021, enfrentando o pós-Covid. 

Por conta da interrupção do conselho, o combate à fome em São Paulo teve um grande aliado: as ONGs. Marília Touças, afirmou que com o avançar do isolamento, se deparou com muitas pessoas em situação de rua. “Todos os dias encontrávamos famílias inteiras, com malas e alguns pertences, recém-chegadas à rua. Sem trabalho, sem dinheiro, sem moradia e passando fome”.

Para Rubens, as ONGs foram ágeis e efetivas no combate à insegurança alimentar durante a pandemia. Essas organizações têm capilaridade no tecido urbano e conhecimento das comunidades locais. Dessa forma, o Estado pode firmar convênios com as organizações formais. “O Estado é razoavelmente eficiente para coletar alimentos, enquanto as ONGs são eficientes para distribuir a comida”, afirma o especialista.

João Dornellas, presidente do Consea/SP, reitera sobre a importância do auxílio das organizações não governamentais no combate à fome, “A atuação das ONGs e da iniciativa privada tem grande relevância para o enfrentamento da insegurança alimentar e para o combate ao desperdício de alimentos, e há diversas parcerias em todo o estado”.

Novas promessas do governo de São Paulo

Com o intuito de reduzir os índices da fome e insegurança alimentar no Estado paulista, a Coordenadoria de Segurança Alimentar, vinculada à Subsecretaria de Abastecimento e Segurança Alimentar, da Secretaria de Agricultura e Abastecimento (SAA), criaram em 2023, um diagnóstico sobre segurança alimentar no estado.

A primeira etapa tem o objetivo de identificar os desafios enfrentados pelos municípios para a implementação da política de segurança alimentar, assim como o de levantar as demandas. Trata-se de um levantamento, que vai trazer as ações de segurança alimentar desenvolvidas nos municípios. Segundo Dornellas, “Os dados coletados serão essenciais para o avanço de projetos que possam colaborar com a implementação da política de segurança alimentar”.

Além do mais, para o presidente do Consea/SP, “Os conselhos municipais de segurança alimentar devem ser formados, pois são importantes portas de entrada para a população mais vulnerável. Esses conselhos poderão identificar as prioridades e quais públicos serão atendidos nos territórios”.

João garante que a aliança entre o conselho, os municípios e as ONGs irão facilitar a reduzir a fome da população. “Para além da parceria entre o governo do estado e os municípios, a atuação das organizações não-governamentais e da iniciativa privada será sempre relevante para o enfrentamento da insegurança alimentar e do desperdício de alimentos”.

Além disso, segundo o Relatório do Plano Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável (2019-2023), existem propostas que vão além da distribuição de alimentos. O documento destaca a importância de promover ações voltadas para a garantia do direito humano à alimentação adequada. 

Entre as principais propostas estão: fortalecimento da agricultura familiar; estímulo à produção e consumo de alimentos agroecológicos; capacitação e educação alimentar e nutricional; incentivo à criação de mercados locais; articulação e integração das políticas públicas. É importante destacar que essas propostas vão além do combate imediato à fome, visando à construção de um sistema alimentar mais justo, sustentável e equitativo.

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