Vida difícil no campo quase sempre é motivo do êxodo rural

Deslocamento para grandes centros urbanos não assegura qualidade de vida e expõe a precarização do trabalho.
por
Philipe Mor Belizário
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10/04/2025

Por Philipe Mor

 

Dulce Carmelina Ribeiro da Silva nasceu em 1956, no pequeno município de Cruzília - Minas Gerais. Criada pela mãe solo, Carmelina Francisca, e pelo avô, José Antônio, ela enfrentou desde cedo desafios que a levaram a contribuir para o sustento da família. Sua trajetória reflete a de muitas mulheres que, sem acesso à educação base ou a empregos estruturados, encontraram no setor informal, ainda que longe de suas origens, uma forma de sobrevivência, algo muito comum para quem vive na roça.

Na simplicidade do meio rural, Dulce conheceu precocemente as dificuldades da vida no campo. Ao lado dos cinco irmãos, dividia-se entre os afazeres domésticos e o trabalho na lavoura, onde cultivavam milho, arroz e feijão, para garantir o sustento da casa. O ambiente era cercado por fazendas e vastas áreas de vegetação, cenário que moldou sua relação com a terra e lhe ensinou o valor do esforço diário que o cuidado com a lavoura exige.

Dulce Carmelina Ribeiro da Silva Foto: Reprodução/Acervo Pessoal - Dulce
Dulce Carmelina Ribeiro da Silva Foto: Reprodução/Acervo Pessoal - Dulce

A lida no campo representava um compromisso com a família. A mãe foi sua maior referência, um exemplo de força e perseverança ao enfrentar sozinha as dificuldades para criar os filhos. Já o avô, com sua sabedoria, transmitiu a Dulce princípios que a acompanham por toda a vida: respeito, honestidade e dignidade. Valores que aprendeu fora da sala de aula. 

Dulce não teve acesso à educação de qualidade. Em Cruzília, estudou apenas até a terceira série do Fundamental, mas é extremamente grata a sua professora de infância, Miá - quem lhe ensinou a ler e escrever. Ela viveu na roça até completar 17 anos. Nesta época, com a morte do avô, foi trabalhar na cidade em busca de ganhar dinheiro para, além de ajudar em casa, sanar suas vontades – como qualquer adolescente. Graças a mãe conseguiu o primeiro trabalho longe das lavouras e dos esforços do campo, como cuidadora de uma idosa. Durante três anos, Dulce viveu e trabalhou na mesma residência. Até que saturou. Apesar de receber mais do que no plantio, ela ficou de “saco cheio” da rotina e decidiu procurar por outra tarefa. 

Após esse período, Dulce foi convidada a cuidar dos filhos do prefeito de Cruzília. Assim como antes, seu trabalho e seu descanso dividiam o mesmo espaço. Entre as crianças, um vínculo floresceu: um dos pequenos passou a chamá-la de “mãe”. Longe dos seus, cercada pela saudade, aquele afeto infantil foi um alento em seu coração.

Mas o destino reservava a Dulce um outro tipo de amor. Logo, seu peito se apertou de um jeito diferente, não de saudade, mas de encanto. Foi assim que conheceu Mário Sérgio. Em seis meses de namoro intenso, decidiram unir suas vidas e passaram a morar juntos na casa da mãe dele. Seguiu como babá, sem nunca ter tido sua carteira assinada, até então. Mário, por sua vez, trilhava um caminho semelhante. Entre um bico e outro, fosse como chapeiro ou descarregador de caminhão, ele garantia o sustento. Depois de juntar algumas economias, levou a esposa para um sítio, onde recomeçaram, lado a lado, uma nova história.

Foi nessa época que Flaviana nasceu. A primeira filha do casal chegou em meio a tempos difíceis, quando o dinheiro mal cobria o essencial. Logo, novos filhos vieram, e com eles, cresceram também as necessidades. Diante da pressão, uma decisão se impôs. Mário partiu para São Paulo, em busca de trabalho e de um futuro mais digno para a família. Enquanto isso, Dulce permaneceu em Cruzília, agora com quatro filhos nos braços. E assim, como em um ciclo que se repetia, a história de superação de sua mãe começava a ecoar em sua própria vida.

Como uma espécie de "mãe-solo", Dulce seguiu por 10 anos em uma rotina de educar as crianças e cuidar das tarefas domésticas, enquanto, Mário Sérgio mandava dinheiro suprir as necessidades básicas. Durante esse período, além dos afazeres da residência, ela não trabalhou. Para garantir algumas moedas e o aluguel, prestava serviços aos conhecidos da região mineira - auxiliava em reformas e costurava roupas. Neste contexto, as visitas entre o casal eram esporádicas e preciosas. Ao longo dos 10 anos em que Dulce permaneceu em Cruzília com os pequenos e Mário em São Paulo, ele aparecia cerca de uma vez por mês para visitá-la e ver os filhos.

O tempo passou. As urgências aumentaram e os filhos - agora adolescentes, começaram a dar trabalho. Foi aí que ela decidiu apostar todas suas fichas em uma mudança de vida: abandonar as dificuldades de Cruzília e se instalar na principal metrópole de Brasil, ao lado do marido. Em São Paulo, Mário, além de ajudar com o aspecto financeiro, contribuiria para educação das "crianças".

Dulce Carmelina Ribeiro da Silva Foto: Reprodução/Acervo Pessoal - Dulce
Dulce Carmelina Ribeiro da Silva Foto: Reprodução/Acervo Pessoal - Dulce

Foi num 12 de outubro, feriado das crianças, que a mudança aconteceu. Com as malas apertadas e os filhos nos braços, Dulce embarcou em um ônibus rodoviário com sentido a capital paulista. Não avisou. Não pediu permissão. Apenas foi, levada pela coragem.

Desceu na capital em 1996, com a esperança de se firmar financeiramente e estruturar a família, acolhida pela cunhada na Vila Carrão, na Zona Leste. Ainda com a poeira da estrada nos pés, ligou para Mário e contou: "cheguei". Ele, surpreso, apareceu ao anoitecer. 

O primeiro fim de semana na cidade grande foi cheio de reencontros e promessas, passado na casa da irmã de Mário. Mas logo a segunda-feira chegou — e com ela, a realidade. Ele os levou para Perdizes, onde morava num espaço da firma. No começo, a moradia era quase vazia. Tinha alguns cômodos bem divididos, mas poucos recursos. Apenas uma pequena geladeira. Sem móveis, um sofá-cama e forros no chão acolhiam, como podiam, o descanso da família.

Aos poucos, o lar tomava forma — não apenas nas coisas, mas no cuidado que ela espalhava em cada canto. Entre idas e vindas para Minas, sempre trazia alguma coisinha: roupas e utensílios. Com a família enfim abrigada e um teto, ainda que modesto, Dulce partiu em busca de procurar trabalhos. Seu primeiro emprego na nova cidade foi como cuidadora em uma casa de família. Ficou apenas três meses por lá, mas foi o suficiente para dar o primeiro passo. Logo depois, surgiu uma nova oportunidade — dessa vez, em uma empresa de informática.

Nesse emprego Dulce teve seu primeiro trabalho fixo de carteira assinada. Entrou como auxiliar de serviços gerais, mas o que parecia simples, para ela era símbolo de conquista. Pela primeira vez, sentia que a vida começava a tomar um novo rumo. Dulce ficou na empresa entre meados de 1997 e 2007. Nesse tempo, com a ajuda do programa Escola de Jovens e Adultos - EJA, conseguiu concluir os estudos. Com o salário da empresa e os bicos feitos pelo marido, encontraram um aluguel na Zona Norte de São Paulo — onde vivem até hoje.

Mas quando tudo parecia, enfim, seguir um rumo mais tranquilo, a empresa fechou as portas. E, naquele momento, o seguro-desemprego era pouco diante das contas e das urgências que batiam à porta. Com o aperto das necessidades, Dulce passou a trabalhar como diarista. Cuidava da rotina de outros lares, para que nada faltasse no seu. Não era o emprego dos sonhos - sem garantias ou registros, mas as dificuldades falaram mais alto. 

Por volta de 2010 foi prestar serviços na casa de seu antigo patrão. Na residência - onde atuava duas vezes por semana, Dulce era responsável pela limpeza geral e o preparo das refeições. O salário mínimo que recebia, apesar de importante, não era o ideal e, por isso, ela teve que buscar outras moradias para cuidar.

Com o passar dos anos, a rotina se tornou cada vez mais pesada, e o cansaço parecia não ter fim. Duas de suas filhas, já adultas, ainda moravam com ela. Uma delas teve dois filhos e a responsabilidade pela criação caiu direto em seu colo. Sem aviso precisaram dominar a situação no peito e seguir em frente.

 

Dulce, sua mãe Carmelina e sua neta Michelly Foto: Reprodução/Arquico Pessoal - Dulce
Dulce, sua mãe Carmelina e sua neta Michelly Foto: Reprodução/Arquico Pessoal - Dulce

Embora contrariada por dentro, nunca recusou o cuidado com os pequenos, Michelly e Miguel. No entanto, em seus pensamentos, sabe que essa responsabilidade dificultou o alcance de um pouco de sossego e prosperidade. Ainda mais em uma época que tudo é tão caro e os desejos dos pequenos são diversos. Essa nova responsabilidade faz com que Dulce não possa vacilar. Assim como seus filhos um dia dependeram dela em Cruzília, agora são os netos que precisam de seus cuidados. E ela não pretende falhar nessa missão.

Entre os panos, panelas e passos apressados Dulce carrega nos ombros uma vida que não foi aquela que sonhou. Quando deixou Minas e veio para São Paulo, pensava que aqui encontraria sossego e estabilidade. Achava que deixaria para trás todas as dificuldades da roça. Mas a realidade foi mais dura do que esperava. Na correria do dia-dia, Ela ainda guarda esperança e sonha com um futuro melhor e um cantinho só seu.

Em busca de uma casa digna, ela participa ativamente de um movimento social em prol de moradia, há mais de 10 anos. Agora, o tão esperado apartamento aparenta estar mais perto pra sair do que nunca. Mais que paredes, a mineira da pequena Cruzília quer tempo para si, para respirar e para viver com leveza. O corpo cansado das faxinas pede pausa. Mas a realidade insiste em chamar. E por aqueles que ama, ela segue firme e disposta a entregar tudo para garantir a paz e o bem-estar da família.

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