Por Eduarda Basso
Em novembro de 2022, Esmatullah pousa em Guarulhos, com 200 dólares no bolso e uma mochila. Nascido em 2004 no interior de Ghanzni, no Afeganistão, Esmatullah Mohsini começou a trabalhar desde pequeno. Aos 11 anos, passou a costurar roupas, e pelos três anos seguintes, a rotina de seus dias seriam acordar, trabalhar e ir para casa ajudar sua mãe com seus irmãos. Em uma fábrica de bairro de um amigo de família, Esmatullah acabou encontrando um dom e criava roupas do dia a dia para os moradores ao redor, que costumavam comprar as peças da pequena fábrica em que passava a maior parte de seu tempo. Ele começou a procurar trabalho para ajudar os pais com as questões financeiras, um assunto que o deixou desconfortável enquanto falava, e além de falar mais baixo, falava menos, com um interesse quase inexistente, como se lembrar fosse reviver. No seu primeiro ano na fábrica, ele não recebia, estava lá quase como um estágio, para aprender. Mas não demorou muito para que pegasse o jeito e começasse a ganhar dinheiro por cada peça que criava.
Após alguns anos, a fábrica em que ele trabalhava fechou, e em 2018 ele decidiu se mudar junto com seu irmão mais velho para o Irã, pois surgiu uma oportunidade para trabalhar e receber bem lá. O resto de sua família continuou no Afeganistão, mas Esmatullah, que não estudava e estava sem emprego, precisou sair. No Irã, ele trabalhou com algumas coisas diferentes; no começo, com granito e mármore, na parte de construção. Ao contar sobre esse período, seus movimentos constantes mostravam uma angústia ao relembrar desses tempos, e após alguns minutos, ele revelou que não gosta de lembrar dessa época, pois não gostava do que fazia, mas mesmo assim, para ajudar a sustentar sua família, ficou por quase um ano nessa área. Nessa época, ele tinha por volta dos 15, 16 anos, e seu irmão, 19, 20.
Ao falar sobre o irmão, ele sorri e diz de forma carinhosa que ela era seu chefe, pois logo depois que parou de trabalhar com pedras em construções, voltou a costurar, mas agora com bolsas, e seu irmão mais velho que o ensinou. Atualmente, esse mesmo irmão mora no Canadá; os dois conversam, mas não com muita frequência. Por quatro anos ficaram no Irã, trabalhando com bolsas, aprendendo design e cortes e costuras diferentes. A escolha de fazer bolsas não foi um interesse profundo ou algo do tipo, acabou acontecendo porque seu irmão já tinha experiência com isso, e assim, passou para seu irmão pequeno o conhecimento, e juntos ficaram lá, sempre com a intenção de fazer sua própria empresa, mas por lá, nunca alcançaram esse sonho.
Em 2021, a situação humanitária do Afeganistão piorou, e com mais de 5,4 milhões de habitantes refugiados em países vizinhos, o Brasil foi um dos que emitiu um visto para pessoas que não conseguiam voltar para lá. Sabendo disso, os dois meninos foram atrás do visto para tentar novamente suas sortes, e procurar uma condição de vida melhor, e uma forma de crescer e ajudar sua família, mesmo que distante. Ele conta que achou que, quando chegasse, alguém estaria o esperando para buscá-lo e encaminhá-lo para um abrigo, mas isso nunca aconteceu. Ele sabia que o Brasil estava oferecendo ajuda humanitária nessa época, mas quando chegou aqui se deparou com uma realidade completamente diferente do que imaginava. Sem saber português, andou pelo Terminal 3 do aeroporto procurando alguém que sabia afegão e que ele conseguisse se comunicar. De uma maneira mais leve do que o esperado, ele diz que não achou ninguém nesse primeiro dia, e assim, sentou em uma cadeira e dormiu. Naquele momento, rezou e pediu que Deus o ajudasse, pois sentia que essa era a única coisa que poderia fazer. Depois de alguns minutos, ou horas, uma mulher bateu em seu ombro e perguntou se ele não era afegão; ele disse que sim. Ela o perguntou se ele tinha lugar para ficar, ele respondeu que não. Assim, ela o levou para o Terminal 2, e ele lembra até hoje do choque que sentiu quando viu mais de 200 pessoas no chão do aeroporto morando por lá.
Ele não tinha onde ficar, não conhecia ninguém, mas naquele momento ele lembra que estava com dor de cabeça pela longa viagem de 18 horas que tinha feito até o Brasil, e extremamente cansado. Assim, ele conta que chegou lá e uma pessoa o ofereceu um colchão, e conseguiu pegar no sono por algumas horas. Esmatullah estava contando com naturalidade o que aconteceu. Do jeito que ele fala, parece que está contando de uma festa que foi e acabou se perdendo. Esmatullah começou a conversar com as pessoas ao redor, tentando entender o que estava acontecendo. A informação que recebeu era de que a estadia ali poderia durar de um dia a até dois meses, enquanto esperava que um abrigo fosse encontrado. No entanto, os dias se passavam, e Esmatullah, por ser solteiro, enfrentava uma dificuldade maior para conseguir uma vaga em um abrigo, que eram destinadas principalmente a famílias ou grupos.
Em uma dessas tentativas, uma vaga foi encontrada para ele e um amigo que havia conhecido no aeroporto – duas camas em um quarto. Mas, ao saberem que uma mulher que estava ali havia dado à luz a um filho no próprio aeroporto, e que muitas crianças choravam o dia inteiro, o amigo de Esmatullah, que falava inglês, sugeriu que cedessem a vaga para ela e sua família. Em outra ocasião, uma nova vaga surgiu para eles, mas mais uma vez a cederam, desta vez para um casal, e ele relata que isso aconteceu algumas vezes.
Esmatullah conta que para as mulheres refugiadas, a situação era ainda mais delicada, especialmente por conta da cultura muçulmana, que é muito fechada. A interação entre homens e mulheres é restrita, não há abraços ou contato físico, e a privacidade é fundamental, especialmente para trocar de roupa.
Dois meses se arrastaram até que, finalmente, ele conseguiu uma vaga em um abrigo em Itaquera. A rotina no aeroporto, durante esses meses, era simples: dormiam à noite no chão, acordavam, iam aos banheiros do aeroporto para se lavar. O café da manhã era providenciado por igrejas, mesquitas e ONGs, que doavam bicicletas, arroz e outras comidas como frango e biscoitos. Esmatullah revela que havia bastante liberdade para sair do aeroporto e voltar, inclusive para procurar casas para alugar, mas com poucos dólares no bolso, sem mais ninguém para o ajudar, ele sabia que precisava se virar.
Acolhimento
O abrigo em Itaquera, que Esmatullah descreve como um antigo motel foi adaptado por uma ONG para receber refugiados. Apesar da superlotação – seis pessoas em um quarto de três por três metros com banheiro –, ele considera que o local era melhor do que outros abrigos, especialmente um que existia no centro da cidade, onde roubos e brigas eram frequentes. A maior dificuldade no abrigo de Itaquera era a falta de espaço para guardar as malas, que ficavam debaixo das camas. Mas ele conta que sua estadia ali foi breve, durando entre 15 e 20 dias.
Na noite de Natal, ainda em 2022, Esmatullah recebeu um convite especial. Voluntários do aeroporto com quem ele havia interagido ligaram, convidando-o para um evento com o Papai Noel, figura que ele, como muçulmano, não conhecia. Ele não comemorava o Natal, uma festa cristã, mas a curiosidade o levou de volta ao aeroporto. Foi nesse dia, durante a celebração, que ele conheceu Charles, seu "pai brasileiro", como ele carinhosamente o chama hoje.
A interação entre os dois começou de forma divertida. Esmatullah estava ajudando o Papai Noel e Charles também, e apesar da barreira da língua – Esmatullah não falava português e Charles não falava persa, e nenhum dos dois se entendia bem em inglês –, eles usaram um aplicativo de tradução para conversar por cerca de 30 minutos. Charles, ao saber da história de Esmatullah, ficou tocado com o fato de ele estar sozinho no Brasil. Esmatullah lembra, sorrindo, que sempre fala que os brasileiros têm coração bom.
Ao descobrir que Esmatullah trabalhava com roupas no Afeganistão, Charles, que tinha uma confecção de uniformes para professores, mostrou a ele suas máquinas de corte e tesouras. Esmatullah demonstrou conhecimento sobre o assunto, o que ele lembra de ter impressionando Charles. Assim, Charles pegou o contato de Esmatullah e chamou sua esposa, Sheila, a quem Esmatullah hoje chama de "mãe brasileira", para conversar. O afegão conta que em um final de semana, Sheila e Charles o convidaram para a casa deles. Ele lembra que quando contou isso para amigos, muitos o alertaram sobre os perigos de ir à casa de desconhecidos. Mas Esmatullah, que já conversava com eles há um tempo, decidiu arriscar.
Ele marcou a visita para um sábado. Charles viria buscá-lo pela manhã. Na hora, ele conta rindo, que seu amigo decidiu ir junto. Passaram o sábado e o domingo na casa de Sheila e Charles, dormindo lá no sábado à noite. Ao voltar para o abrigo, Esmatullah recebeu uma notícia que sua vaga seria encerrada em uma semana, pois precisava ser liberada para um casal. Ele conta que ficou meio desesperado, e então mandou mensagem para Sheila e Charles. Sheila, que já havia oferecido ajuda antes, disse que se ele quisesse morar com eles, iriam ajudar, mas ele teria que estudar antes de trabalhar. Foi difícil para ele, com a voz mais fraca, diz que sempre sentiu a responsabilidade de ajudar os pais. No entanto, sem outras opções, ele aceitou. De noite, conversou com Sheila, e na manhã seguinte, Charles foi buscá-lo. Desde então, há mais de dois anos, Esmatullah mora com o casal, que têm 49 e 51 anos e trabalham juntos na confecção de uniformes. Recentemente, parte de sua família chegou ao Brasil. Sua irmã e seu sobrinho, que tem 19 anos, vieram para cá. Esmatullah, que tem sete irmãos, espera que um dia todos possam se juntar a ele, embora reconheça as dificuldades financeiras e a necessidade de uma casa para todos.