‘Tudo que nós tem é nós”, música do rapper Emicida, sintetiza a realidade de Paraisópolis frente à pandemia

Entre falas absurdas do presidente e a habitual indiferença pela população pobre e preta, as comunidades e favelas de São Paulo precisaram assumir o papel do Estado
por
Enzo Cury, Guilherme Dias, Henrique Sales, Inara Novaes e João Capricho
|
24/11/2020

Foram muitos os mitos que atravessaram o contato inesperado da sociedade com um vírus pouco conhecido; desde fake news que recomendavam a substituição do álcool em gel por vinagre e a fazer gargarejo com antisséptico à dizeres de que a população pobre estaria imune aos riscos, pois o coronavírus seria ‘doença de rico’ que viaja ao exterior.

Essas crenças, quando somadas à minimização dos efeitos da Covid-19, descrita pelo presidente como ‘gripezinha’, contribuem para que as pessoas descartem os cuidados necessários. Mais do que isso, essa realidade indica a urgência em espalhar informações verídicas e acompanhar as comunidades e periferias de São Paulo durante a pandemia.

Dessa maneira, a falta de participação do Estado na proteção da população contra o coronavírus criou uma série de lacunas que foram preenchidas pelos cidadãos. Em Paraisópolis, por exemplo, o espírito comunitário precisou prevalecer para que seus moradores pudessem enfrentar as adversidades criadas pela desigualdade.

A comunidade arrecadou e distribuiu cestas básicas, contratou médicos e enfermeiros para atuarem 24 horas em todo o território, capacitou 240 moradores como socorristas para atuarem nas 60 bases de emergência criadas com a presença do corpo de bombeiros e providenciou ambulâncias equipadas para pacientes e casos suspeitos de Covid-19.

Outra iniciativa foi a criação do sistema de “presidentes de rua”, isto é, pessoas responsáveis por acompanhar a saúde e o bem-estar das famílias; no total, foram 655 voluntários, dos quais 90% são mulheres. Para o professor e coordenador do Centro de Estudos Periféricos da Unifesp, Tiaraju Pablo D’Andrea, esse protagonismo feminino é muito evidente na linha de frente.    

O sociólogo e professor Tiaraju Pablo D'Andrea. Imagem: Periferia em Movimento
O sociólogo e professor Tiaraju Pablo D'Andrea.
Imagem: Periferia em Movimento

“As mulheres tiveram mais articulação nos bairros e estiveram mais comprometidas com o bem viver da comunidade. Isso se dá pela história social, se conformou assim, nas periferias urbanas e favelas. As mulheres estão mais presentes nas organizações de bairro, principalmente nas funções práticas, os homens, pela questão histórica, ficaram mais com as questões de mando.”

Por trás da força tarefa formada na comunidade, escondem-se realidades como a de Jéssica Lourenço, mulher cearense, de 28 anos, que há mais de uma década mora em Paraisópolis. Segundo ela, a postura do Estado diante das favelas e periferias foi lamentável. “Fomos largados à própria sorte, sem nenhuma estrutura básica para o combate da doença. Sem políticas públicas para a comunidade, tivemos que traçar nosso próprio destino.”

Jessica Lourenço
A presidente de rua Jéssica Lourenço.
Imagem: Nova Paraisópolis/ Reprodução: Facebook

“Fizemos manifestação, onde barraram nossa aproximação com o governador, não fomos atendidos nem por uma comitiva, simplesmente nos ignoraram e nos cercaram de policiais impedindo uma manifestação pacífica de ser ouvida.  O governo nos largou a própria sorte. Mas o que esperar? Somos apenas 'favelados' aos olhos da classe média”, completou Jéssica.

Embora muitos acreditem que favela seja sinônimo de violência, tráfico de drogas e miséria. No livro Memorias da Plantação, a autora, Grada Kilomba, contraria esse horizonte sem perspectivas, falando que a margem é um local que nutre nossa capacidade de resistir à opressão, de transformar e imaginar mundos alternativos nos quais favela e prosperidade não sejam palavras rivais no imaginário da sociedade.

“Nesse sentido, a margem não deve ser vista apenas como um espaço periférico, um espaço de perda e privação, mas sim como um espaço de resistência e possibilidade. A margem se configura como ‘um espaço de abertura radical’ e criatividade, onde novos discursos críticos se dão. É aqui que as fronteiras opressivas estabelecidas por categorias como “raça”, gênero, sexualidade e dominação de classe são questionadas, desafiadas e desconstruídas.”

Em meio à pandemia, as projeções para as periferias de São Paulo, materializam o histórico de negligência e abandono com a população pobre e preta. O Boletim Curva das Periferias, feito com dados referentes ao período de março a julho deste ano, indica que os distritos mais negros da capital paulista são, também, os com o maior número de casos de Covid-19.

Boletim
Comparativo entre os 5 distritos com o maior e menor número de mortes por coronavírus na cidade de São Paulo. I​​​magem: Boletim Curva das Periferias

“Os cinco distritos com mais infectados pelo vírus são Grajaú (1.038), na zona sul, Sapopemba (999), na região leste, Capão Redondo (977), Jardim Ângela (970) e Cidade Ademar (923), também no lado sul da capital paulista. Todos têm mais de 40% de suas populações formadas por pessoas declaradas pretas ou pardas”, registra o documento.

Ao mesmo passo, uma pesquisa feita pelo Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde (Nois) da PUC-Rio, denuncia que um paciente preto ou pardo, sem escolaridade, tem chances 3,8 vezes maior em morrer de coronavírus do que um branco com ensino superior. Nas palavras do professor Tiaraju Pablo, isso se dá por causa do entrelace entre raça e pobreza.

“O recorte de raça obviamente se faz presente porque o contingente das pessoas mais pobres do Brasil é marcadamente negra e, isso, tanto nas periferias, onde mora, prioritariamente, a população negra, como em favelas, que é o caso de Paraisópolis, que não está numa periferia, mas é uma favela muito pobre.”

“A densidade demográfica [habitantes por quilômetro quadrado] numa favela como Paraisópolis é muito grande. Então, as pessoas ficam apertadas em cômodos de casas muito pequenas. Paraisópolis tem um alto índice de tuberculose, por conta dos espaços pequenos e por conta da falta de ventilação de ar e luminosidade”, dá continuidade o sociólogo.

Embora o número de infectados por Covid-19 na comunidade tenha aumentado cerca de 240% em três meses, devido a tendência de flexibilização do isolamento adotada pelo Governo, mas principalmente pela ausência de apoio. Paraisópolis deu um baile de empatia e solidariedade, contrariando a tendência individualista “cada um por si” do modelo neoliberal.

Em outra realidade, se a comunidade tivesse suporte do poder público, o controle feito nos primeiros meses da pandemia possivelmente teria mais alcance. Para o jornalista Alexandre Cabral, fundador da Biblioteca BECEI de Paraisópolis, a realidade dessa população está atrelada, principalmente, à injustiça praticada pela política brasileira em toda sua história.

"Recebemos o mesmo que é destinado a qualquer cidadão de baixa renda, negligência, omissão, verbas que são desviadas, mas houve o mínimo necessário a uma pandemia. A postura é a mesma desde a Independência do Brasil, do surgimento da Bandeira, Ordem e Progresso desde que os elitizados estejam sobre, tratar o povo como subproduto.”

 

Imagem da capa: Marcelo Chello/ Reprodução: Estadão Conteúdo

 

Tags:

Cidades

path
cidades