Síndrome de Usher impõe vida entre silêncio e sombras

Em entrevista, Ana Lucia, Marcela, Liliana e Laise revelam como lidam com os desafios impostos pela perda simultânea de audição e visão.
por
Livia Machado Vilela
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26/03/2025

Por Livia Vilela

 

Liliana tem 52 anos e passou grande parte da infância enfrentando dificuldades auditivas. Sua avó acreditava que era uma consequência do trauma do acidente que causou a morte do seu pai. Na escola, sua timidez e a dificuldade auditiva a faziam se isolar, e ela preferia sentar na frente para tentar ler os lábios dos professores. Aos 13 anos, Liliana passou a usar aparelhos auditivos, mas a adaptação foi difícil no início devido ao excesso de estímulos sonoros. Somente aos 40 anos, após diversos exames, ela também foi diagnosticada com retinose pigmentar depois de perceber que começava a ter dificuldades visuais. Durante um acompanhamento oftalmológico, o médico sugeriu que ela poderia ter a Síndrome de Usher, o que inicialmente a deixou confusa e assustada. 

Marcela tem 48 anos e foi diagnosticada com retinose pigmentar em 2001, após sentir dificuldades para enxergar à noite. Ao associar também as dificuldades auditivas que sempre teve, ela descobriu que tinha Síndrome de Usher. O diagnóstico foi um impacto tanto para ela quanto para sua família, e, apesar de inicialmente tentar seguir sua vida normalmente, sua saúde mental foi profundamente afetada pela perda repentina de seu pai. A partir desse momento, a progressão da doença se acelerou. Desde então, Marcela precisou abandonar sua profissão como fisioterapeuta e buscar alternativas de trabalho.

Laise tem 29 anos e nasceu com Síndrome de Usher tipo 2, que geralmente começa a se manifestar na adolescência, mas desde criança as dificuldades auditivas e visuais já davam sinais. Durante o ensino fundamental, ela não conseguia entender os professores e trocava palavras ao falar. Sua visão era prejudicada, especialmente à noite, e ela descrevia a percepção visual como se o brilho de um celular fosse reduzido, tornando impossível enxergar com nitidez. A mãe de Laise, inicialmente, pensou que suas dificuldades na escola fossem apenas um traço de personalidade. Aos 11 anos, no entanto, ela foi diagnosticada com perda auditiva e recebeu seu primeiro aparelho auditivo. Apesar das dificuldades iniciais de adaptação ao aparelho, Laise começou a perceber uma grande diferença no seu cotidiano. Anos depois, ela foi diagnosticada com retinose pigmentar e, eventualmente, a Síndrome de Usher, o que deu sentido às dificuldades que ela enfrentava. Buscando apoio, Laise encontrou um centro especializado em Porto Alegre, onde teve o primeiro contato com a bengala verde, especialmente indicada para pessoas com baixa visão. 

 Ana Lucia tem 59 anos e enfrenta dificuldades auditivas desde muito pequena. O diagnóstico de perda auditiva moderada foi confirmado quando ela tinha 4 anos. Apesar da surdez, seguiu seus estudos em escolas regulares, onde se adaptava lendo os lábios dos professores e sentando na frente da classe. Aos 19 anos, comprou seu primeiro par de aparelhos auditivos, mas sentia que eles não substituíam a audição normal. Ao longo dos anos, também começou a perceber dificuldades visuais, especialmente à noite, no entanto acreditava que isso era apenas uma característica sua. Aos 28 anos, ela foi diagnosticada com retinose pigmentar, e com o tempo, a perda auditiva foi associada à perda da visão periférica, confirmando a Síndrome de Usher tipo 2. 

foto Ana Lucia
Ana Lucia Perfoncio, 59 anos

Perder dois sentidos é uma das experiências mais desafiadoras que se pode imaginar. A Síndrome de Usher é uma condição genética rara que combina perda auditiva e degeneração da retina, conhecida como retinose pigmentar. Essa doença afeta gradualmente a visão e a audição, impactando profundamente a vida de quem a enfrenta. Nos relatos de Liliana, Marcela, Laise e Ana Lúcia, a experiência com a síndrome se revela de maneiras únicas, mas com desafios em comum.

No caso de quem vive com a Síndrome de Usher, os sintomas começam a se manifestar de forma gradual e impactam diretamente a qualidade de vida. A perda auditiva geralmente é identificada ainda na infância, mas os desafios não param por aí. A visão vai se alterando aos poucos: primeiro, a perda da visão periférica e a dificuldade de enxergar em ambientes escuros. Com o tempo, vem a perda das cores e da visão central, aquela que usamos para ler e realizar atividades do dia a dia. Ao longo dos anos, a visão piora, podendo levar à cegueira total, um processo que transforma tudo ao redor. 

O diagnóstico da síndrome de Usher é feito por meio de uma série de exames, como o teste de campo visual e o eletrorretinograma, que avalia a resposta das células sensíveis à luz da retina. O diagnóstico preciso é confirmado por testes genéticos, que ajudam a identificar o tipo específico da síndrome. Mas, mesmo com a clareza dos resultados, as pessoas que convivem com a síndrome lidam com a incerteza por toda a vida, a dúvida de um dia perder totalmente os dois sentidos que mais usamos para perceber o mundo.

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Marcela Bottino, 48 anos

Diagnóstico

Para Liliana, a descoberta do diagnóstico ajudou a entender melhor as dificuldades que enfrentava. Ela diz que a tecnologia foi um grande aliado, principalmente após entrar em um grupo no Facebook para surdos, onde encontrou apoio e se motivou a buscar um fonoaudiólogo. No seu dia a dia, Liliana trabalha em uma escola perto de sua casa, onde todos sabem de suas dificuldades e tomam medidas para facilitar sua locomoção, como instalar faixas amarelas nas escadas. Ao sair, seus amigos a ajudam oferecendo o braço e  garantindo a sua segurança. A falta de visão periférica ainda é um desafio, Liliana esbarra em obstáculos e se assusta com pessoas que se aproximam sem ser notada. No entanto, a compreensão da comunidade ao seu redor ajuda a manter sua qualidade de vida.

Já Marcela tenta organizar sua rotina de maneira que aproveite ao máximo o período do dia em que sua visão está mais nítida. Ela tem se dedicado a cuidar da saúde e a buscar alternativas para melhorar a comunicação. O seu acompanhamento médico se concentra em orientações sobre alimentação saudável, uso de aparelhos auditivos e exames periódicos, mas a grande dificuldade de Marcela é a falta de soluções definitivas para a doença. Mesmo assim, ela encontrou recursos valiosos, como legendas nas redes sociais e programas de transcrição de áudio para o WhatsApp, que facilitam a comunicação. Marcela acredita que as opções de acessibilidade no País ainda precisam melhorar, entretanto, apesar das limitações, ela segue encontrando formas de superar os obstáculos diários com o apoio da tecnologia.

A história de Laise revela como a síndrome pode afetar a vida profissional e educacional. Com a progressão da sua perda visual, ela sofreu um acidente no trabalho quando não percebeu uma parede à sua frente e bateu a cabeça. Por isso, Laise foi transferida para um setor da empresa com funções mais simples, apesar de ser totalmente capaz de realizar tarefas mais complexas. Ela se sentia limitada e infeliz, especialmente porque a empresa não considerava suas habilidades e apenas designava funções genéricas aos funcionários com deficiência. Determinada a mudar sua trajetória, Laise voltou a estudar e ingressou no curso de Medicina Veterinária na Universidade Federal de Porto Alegre. No entanto, a falta de empatia de um professor e a dificuldade de acompanhar aulas no final do dia, quando a visão estava mais prejudicada, fizeram com que Laise se afastasse da universidade, desiludida com a falta de adaptações para estudantes com deficiência.

Ana Lucia já se aposentou e agora dedica seu tempo ao site "Síndrome de Usher Brasil", que é uma importante fonte de informações sobre a condição. Sua jornada começou com a falta de informações sobre a síndrome, o que a levou a criar o site como uma forma de reunir dados sobre pesquisas, entrevistas e notícias. A tecnologia tem sido crucial para Ana Lucia, especialmente no mundo digital, onde ela utiliza aplicativos que facilitam a leitura, como o aumento das fontes, escolha de cores de fundo e programas de transcrição de áudio em tempo real. O site também a tornou uma representante importante da Síndrome de Usher, colaborando com organizações como o Retina Brasil e o Usher Syndrome Coalition nos EUA. Através de seu trabalho, Ana Lucia tem sido capaz de conectar pessoas com a síndrome e promover um senso de comunidade e apoio mútuo, mostrando que a troca de experiências pode ser uma ferramenta poderosa para enfrentar os desafios da vida cotidiana.

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Liliana de Almeida, 52 anos

Tratamentos

A Síndrome de Usher continua sendo uma condição difícil de tratar, mas os avanços médicos e tecnológicos oferecem novas esperanças para quem vive com a doença. Embora ainda não haja uma cura definitiva, o desenvolvimento de novas pesquisas, tratamentos e ferramentas auxiliares têm impactado positivamente a qualidade de vida de muitas pessoas. 

Liliana, passou por uma cirurgia de catarata, o que estabilizou um pouco a sua visão. Ela continua utilizando seu aparelho auditivo, que também ajuda a lidar com a perda auditiva. Para Liliana, a aceitação de sua condição foi um marco importante. Ao se assumir como surda-cega, ela melhorou sua comunicação e se sentiu mais confiante, um passo que trouxe alívio e superou o embaraço de esconder suas limitações. Apesar dos avanços, ela ainda enfrenta dificuldades com médicos que não compreendem totalmente a natureza da sua visão e audição limitadas. Liliana mantém a esperança de que, com o tempo, a conscientização sobre a Síndrome de Usher cresça e as pesquisas avancem, trazendo melhores tratamentos e uma maior compreensão da condição.

Marcela também acompanha de perto a progressão da sua condição, com a perda auditiva e visual aumentando gradualmente. Ela tem esperança nos avanços da pesquisa, especialmente em outros países, e se sente otimista em relação ao futuro. Apesar dos desafios diários causados pela perda de visão periférica e auditiva, Marcela acredita que os estudos atuais podem oferecer soluções melhores para quem convive com a Síndrome de Usher. A Internet tem sido uma grande aliada, permitindo-lhe acessar informações sobre novas pesquisas, o que a mantém motivada e com a sensação de que a ciência está avançando, mesmo que lentamente.

Em 2019, Laise teve a oportunidade de se tornar participante de uma pesquisa sobre a Síndrome de Usher conduzida pela Dra. Juliana Salum, uma médica pesquisadora da UNIFESP. A pesquisa foca em retardar a morte das células da retina, o que poderia desacelerar o avanço da cegueira, apesar de não oferecer uma cura. Laise também passou por testes genéticos para determinar o tipo específico de sua síndrome e teve exames regulares para mapear sua condição auditiva. Embora sua visão tenha piorado nos últimos anos, Laise se sente grata por poder participar de pesquisas que podem abrir portas para novas terapias, e continua se adaptando ao uso da tecnologia para lidar com suas dificuldades diárias.

Ana Lucia, que também enfrenta desafios com a perda auditiva e visual, manteve sua condição auditiva relativamente estável ao longo dos anos, embora precise ajustar regularmente seus aparelhos auditivos. Ela passou por uma cirurgia de catarata em ambos os olhos, o que ajudou a estabilizar sua visão. Ela acredita que, embora os estudos sobre a cura da síndrome ainda estejam em estágios iniciais, os avanços nas tecnologias assistivas têm sido fundamentais para ajudar as pessoas com a condição a viverem de maneira mais independente.

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Laise Estrich, 29 anos

Embora a Síndrome de Usher ainda não tenha cura, os avanços médicos e tecnológicos são promissores. Pesquisas em genética, tratamentos para retardar a degeneração da retina e o desenvolvimento de implantes cocleares estão mudando o cenário para as pessoas com a síndrome. As esperanças dessas mulheres estão ancoradas na continuidade dessas pesquisas, que, embora lentas, oferecem perspectivas de melhoria no tratamento da condição. A tecnologia, por meio de aparelhos auditivos mais sofisticados, recursos como voiceover para celular, e o uso de programas de legenda e transcrição de áudio, também tem sido um grande aliado, ajudando essas pessoas a se adaptarem melhor às suas limitações e ter uma vida plena apesar da deficiência.

A Síndrome de Usher, com suas sombras e silêncios, transforma a vida daqueles que convivem com ela, exigindo uma adaptação constante às perdas sensoriais que acontecem de forma gradual. As histórias de Liliana, Marcela, Laise e Ana Lúcia demonstram a força das pessoas que enfrentam essa condição e encontram esperança na evolução das pesquisas e na tecnologia. Enfrentando as dificuldades diárias com coragem e apoio mútuo, essas mulheres provam que, apesar das limitações impostas pela síndrome de Usher, é possível seguir em frente com resiliência e autonomia, garantindo uma vida plena e repleta de conquistas.

Sites de apoio:

https://www.sindromedeusherbrasil.com.br/sindrome-de-usher

https://retinabrasil.org.br/

https://www.usher-syndrome.org/


 

 

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