À bordo de uma van branca, um homem e uma mulher cruzam a entrada da favela Souza Ramos, na Vila Mariana, bairro de São Paulo. Depois de descarregarem os caixotes de feira lotados com abacates, limões e abobrinhas, Cícero e Celina estendem uma bandeira vermelha. Eles são os militantes do MST responsáveis pela distribuição de cestas de alimentos na região.
A 3 mil quilômetros dali, um caminhão de lixo para numa rua de Fortaleza, capital do Ceará. Enquanto os garis recolhem os dejetos dos moradores, a caçamba do caminhão fica aberta por poucos minutos - o suficiente para que dezenas de famílias possam revirar os sacos de lixo enquanto buscam restos de alimentos.
O caso aconteceu em 2021 e ganhou notoriedade por causa de um vídeo que circulou na internet. As famílias receberam cestas básicas de movimentos sociais do estado, como o Movimento dos Trabalhadores por Direitos (MTD), o Movimento dos Atingidos Por Barragens (MAB), e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) cearense.
Especialistas afirmam que a participação do poder público é essencial em ações que visam combater a fome. Mas, enquanto o novo governo faz tímidos esforços na retomada de iniciativas de reforma agrária, o MST acredita que pode alimentar os brasileiros com a produção de orgânicos e se mantém engajado em gestos solidários.

O movimento do Ceará segue acompanhando as famílias que reviraram o caminhão de lixo no vídeo viral. Com aulas de formação política e disponibilização de médicos para as comunidades carentes, a ideia é ir além da entrega de comida - que segue sendo o foco nas comunidades pobres, mais afetadas pela fome. “Algumas pessoas pedem até água para beber”, afirma Gene Santos, diretor nacional do movimento.
Divulgado em 2022, o 2° Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil apontou que 33 milhões de pessoas passavam fome no país. Mais da metade da população do país, 125,2 milhões de pessoas (58,7%), vivem com algum grau de insegurança alimentar.
Doutor em geografia humana pela USP, Carlos Alberto Feliciano estuda o MST há 30 anos. Ele diz que o grupo potencializou práticas humanitárias durante esse período para lidar com a falta de políticas públicas. A organização dos movimentos sociais ajuda a eliminar a necessidade do intermédio de um atravessador, responsável pelo transporte de produtos do campo para a cidade, barateando o preço dos alimentos.
A produção tem alguns possíveis destinos. Os orgânicos são vendidos em feiras e no site do grupo, e as doações, organizadas por grupos de consumo compostos por militantes do movimento, são feitas a comunidades com altas taxas de desnutrição. Durante a pandemia da Covid-19, o MST afirma ter distribuído mais de 8 mil toneladas de alimentos, 2,5 milhões de marmitas e 10 mil cestas básicas de orgânicos em todo o Brasil.
As cestas tem uma grande variedade de produtos. Raul Miranda, dirigente do setor de produção de alimentos do MST na Grande São Paulo, afirma que os alimentos são doados tendo como foco a real nutrição das pessoas atendidas. "Não é apenas encher a barriga, mas comer com qualidade", diz.

Apesar dos quase três anos de esforço, a maioria dos moradores não sabe da origem dos alimentos oferecidos. “O pessoal pergunta quando vem a saladinha, mas não sabe de onde vem. Para eles, o que importa é a comida que está chegando”, afirma Celina - responsável pela distribuição das cestas na Vila Mariana.
Carlos Feliciano acredita que isso não incomoda o MST, que produz muito e utiliza as doações para informar os que as recebem. A estratégia do grupo é desconstruir a marginalização e o preconceito contra os movimentos sociais do campo.
Para Marco Mitidiero, doutor em geografia humana pela USP e pesquisador especialista em território e conflitos agrários, a questão da fome brasileira vai bem além da redistribuição de terras e da produção de orgânicos. “A fome existe porque o povo não tem dinheiro para comprar comida; é um momento de crise mundial, de desemprego. A pessoa que não tem trabalho, não tem como comer. E o valor dos alimentos é um agravante”, afirma.
Os altos preços são um dos motivos de reclamação dos moradores da favela Souza Ramos. Laurenilda, que vive na comunidade há quase quatro décadas, diz que a situação piorou nos últimos anos - e que os produtos orgânicos do MST são bem-vindos justamente por isso. “As cestas nos ajudam muito. Quando a gente recebe as verduras, consegue economizar no mercado - e as coisas estão caras demais”, conta.
A principal bandeira dos sem-terra é a da luta contra a concentração fundiária - eles acreditam que uma reforma agrária tem potencial de se transformar numa política de soberania alimentar. Marco Mitidiero concorda: "A reforma agrária produz comida, e se tem mais gente produzindo comida, não falta na mesa do brasileiro", diz o professor.
De acordo com dados do mais recente Censo Agropecuário do IBGE (2017), pequenos produtores têm menos área para produzir, mas o foco da lavoura é em produtos consumidos pelos brasileiros, como frutas e hortaliças. Enquanto o agronegócio, dono de grandes quantidades de terra, planta algodão, soja e cana-de-açúcar, visando exportação.
José Roberto da Silva, apicultor, crê que a distribuição de terras e produção nos assentamentos aumenta as oportunidades e valoriza o produtor. “O MST resgatou a nossa dignidade”, afirma José, que produz mel há mais de 30 anos num território ocupado pelo movimento.
A reforma agrária reivindicada pelo grupo, porém, vai além da distribuição de terras. Este é, na verdade, apenas o primeiro passo. Produtora de alimentos orgânicos em Sergipe, Ângela Maria, conta que o MST ofereceu treinamento e auxílio na manutenção da lavoura, sua fonte de alimento e de renda.

Márcia Motta, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF) e autora de 5 livros sobre conflitos pela terra no Brasil, acredita que o modelo de produção adotado pelos sem-terra é interessante, mas não consegue ter impacto real no combate à fome sem o apoio do Estado. “Ações como as do MST precisam ser abraçadas pelo Estado para criar mecanismos que não permitam alguém nascer e morrer sem um pedaço de chão”, diz.
O grande agronegócio foi um dos maiores beneficiados do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro. O Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), criado em 2003, foi extinto em 2019. Os principais órgãos de reforma agrária foram sucateados e colocados sob responsabilidade do Ministério da Agricultura, comandados pelos ex-deputados ruralistas Tereza Cristina e Marcos Montes.
Superintendente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em SP, Sabrina Diniz afirma que o órgão, como parte do Governo Federal, vê o MST e outros movimentos de luta pela terra como aliados, principalmente nas ações de ocupação de territórios improdutivos. "Nenhuma política de Estado é feita por boa vontade, mas sim por pressão social", explica.
A recriação do MDA sinaliza a intenção do governo Lula de retomar políticas que visam a criação de novos assentamentos, ações abandonadas durante o mandato de Bolsonaro - responsável pelo menor número de famílias assentadas nos últimos trinta anos. O futuro próximo, porém, não é animador. O Incra afirma que o orçamento de 2023, aprovado no ano passado, não prevê verba para a compra de novos terrenos para reforma agrária.
Os poucos avanços reais conquistados no primeiro semestre na luta pela reforma agrária dão munição ao MST, que já tece críticas ao atual governo e promete aumentar a pressão. Diretor nacional do grupo, João Pedro Stedile afirmou, em entrevista concedida à Folha de S.Paulo, que a gestão de Lula está agindo muito lentamente na adoção de políticas de combate à fome; além disso, Stedile prometeu que o movimento pode convocar “marchas e grandes acampamentos” para solicitar reforma agrária.
Após pressão da oposição, uma CPI para investigar o MST foi instalada no Congresso. Os responsáveis pelo projeto alegam que o objetivo é averiguar o aumento das invasões de terras e “descobrir seus financiadores”. Será a quinta vez que o MST se tornará alvo de uma CPI. O movimento afirma que usará a comissão para “revelar à sociedade suas estratégias ao ocupar uma terra que não cumpre sua função social”.