Reeleito ao Planalto, Lula promete retomar o próprio legado

Novo Congresso deve tornar jornada do ex-presidente ‘missão impossível’; orçamento apertado e emendas de relator minam governabilidade petista
por
Bruno Hideki Kawagoe e Isabela Mendes
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20/11/2022

Em 2002, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) comemorava não somente o resultado das urnas, mas também seu aniversário — dia 27 de outubro. Com aproximadamente 53 milhões de votos, o Partido dos Trabalhadores conquistava, pela primeira vez, a presidência da República. Foi inédita a ascensão de um líder da classe operária ao cargo mais importante do país. Começava, ali, o legado do governo petista, que não apenas reelegeu Lula em 2006, como também perpetuou seu poder com a eleição de Dilma Rousseff (PT), então ministra da Casa Civil, em 2010 e 2014, sucessivamente.

Desde então, o torneiro mecânico formado pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI) enfrentou acusações de corrupção que culminaram na sua prisão, em abril de 2018. A absolvição, porém, veio com a comprovação de parcialidade no julgamento do caso conduzido pelo ex-juiz Sergio Moro, garantindo, assim, sua elegibilidade.

As duas candidaturas têm características semelhantes. Em ambos os pleitos, Lula formou coligação com diversos partidos da ala progressista, e emplacou como vice caciques da centro-direita brasileira: José Alencar, do PL, em 2002, e Geraldo Alckmin, recém-migrado para o PSB, em 2022 — o ex-tucano foi seu adversário nas eleições de 2006 e representa a velha guarda pessedebista, tendo sido um dos fundadores do partido em 1988.

Vinte anos atrás, o que estava em jogo era a vitória de um partido ou de outro e, claro, se a elite empresarial ganharia mais ou menos dinheiro. À época, aquele Brasil vinha de dois governos Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e tinha certa maturidade nas questões monetárias e compromissos fiscais. Em outubro daquele ano, o dólar, por exemplo, era negociado a R$3,85. Lula herdou, naquela ocasião, um país com reconhecimento internacional, economia reorganizada e uma democracia de massas em consolidação. 

Apesar de divergências políticas, tanto FHC quanto José Serra reconheceram e cumprimentaram a vitória do petista, ao contrário do atual chefe do Executivo, Jair Bolsonaro (PL). As principais diferenças estão no contexto de cada campanha. No recente processo eleitoral, o futuro da democracia esteve gravemente ameaçado por incitação direta do presidente, que desafiou as instituições e desacreditou da integridade das urnas eletrônicas incessantemente.

Pedras, pedregulhos e penedos no caminho

Lula, diferentemente de 2002, não encontrará terras férteis para plantar como da primeira vez em que foi eleito. Apesar do ex-presidente sempre ter sofrido resistência do empresariado, a eleição de Bolsonaro, em 2018, figurou uma guinada do Brasil à extrema-direita, em sintonia com o cenário político internacional que proclamou Donald Trump presidente da República dos Estado Unidos em 2016. 

Bolsonaro, que foi por 28 anos um deputado federal de pouco destaque, capturou os holofotes durante a votação do impeachment da ex-presidente Dilma, em que homenageou Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-comandante do DOI-CODI em São Paulo durante o período da ditadura militar. Dilma foi presa e torturada pelo regime militar quando era ainda uma estudante. Naquela inserção, o atual mandatário começou a pavimentar seu caminho rumo ao Palácio do Planalto, atraindo a atenção da população conservadora descontente com o legado petista, que agonizava em crise.

Impulsionado pelas redes sociais, Bolsonaro se tornou um fenômeno digital assim como Trump e, em março de 2016, anunciou sua pré-candidatura à presidência da República pelo Partido Social Cristão (PSC). Contudo, sua chapa presidencial foi lançada oficialmente em 2018 pelo extinto PSL. Apesar de estar na vida pública há mais de três décadas, Jair Bolsonaro se elegeu naquele ano com 55,1% dos votos válidos contra o ex-ministro da Educação Fernando Haddad (PT), inflamando o discurso de um candidato “antissistema” e contra a velha política. Foram mais de 57 milhões de votos que marcaram a derrocada petista.

Em 2022, quatro anos depois, com Lula livre da prisão e das sentenças que o condenaram, o Partido dos Trabalhadores apostou na popularidade do ex-presidente para derrotar a tragédia bolsonarista, marcada sobretudo pela negligência durante a pandemia da covid-19, que deixou mais de 600 mil mortos. Pesou, também, a acentuação do desmatamento da Amazônia, o aumento do desemprego e da precarização do trabalho e as tesouradas em áreas como Saúde e Educação. 

No pleito eleitoral do mês passado, o mais acirrado desde a redemocratização brasileira, o povo, após muito ser desestimulado, foi às urnas mandar a galera do “é melhor Jair se acostumando”, Jair embora, um marco da ressurreição do Lula e do PT, muito rejeitados pela classe média e pela elite nacional. No entanto, apesar da vitória suada (50,9% a 49,1%) contra quem tinha a máquina pública nas mãos – e não teve pudor de usar a seu favor – os motivos de preocupação sobram para contar. Isso porque a renovação do Congresso Nacional não trouxe tanta novidade assim. 

O partido do chefe do Executivo derrotado, o PL, ampliou sua bancada na Câmara dos Deputados em 23 cadeiras – passou de 76 para 99. No Senado, conquistou 7 assentos a mais.  Já a federação PT-PCdoB-PV, do presidente eleito, faturou 12 postos na Câmara, passando de 68 para 80 deputados, mas elegeu apenas 2 senadores, restando com 9 parlamentares na Casa Legislativa. Portanto, para aprovar Projetos de Lei, Propostas de Emenda à Constituição ou novos Programas de Governo, Lula terá que negociar – e isso significa ceder aos caprichos do Centrão, bloco político que forma maioria no Legislativo, à parte dos partidos de oposição alinhados a Bolsonaro. Além disso, a pressão dos parlamentares para a manutenção das emendas de relator, coração do Orçamento Secreto de Bolsonaro, está mais forte do que nunca. Por outro lado, a grande mídia e os eleitores estão vigilantes e cobram medidas duras para acabar com o mecanismo.

A posse de Lula como presidente da República ocorrerá oficialmente apenas no dia 1º de janeiro de 2023. Porém, já foi dada a largada para as conversas e negociações. O petista tem dialogado com Arthur Lira (PP-AL) e Rodrigo Pacheco (PSD-MG), presidentes da Câmara e do Senado, respectivamente, a fim de fazer valer seus discursos de campanha. O principal interesse em jogo atualmente é a chamada PEC da Transição, que visa garantir orçamento para o pagamento dos R$ 600 prometidos de Auxílio Brasil – que voltará a ser Bolsa Família. 

A verba para cumprir a promessa da manutenção do valor do benefício, porém, não está disponível no orçamento de 2023 elaborado pelo atual governo, que limita o Auxílio a R$ 405. Por isso, a PEC propõe retirar permanentemente o benefício do chamado Teto de Gastos, tema sensível para o mercado financeiro. A argumentação é que retirando o programa social do Teto, Lula estaria agindo com irresponsabilidade fiscal. Para os operantes do capital financeirizado, despesas como essa são inaceitáveis e causariam um “rombo fiscal” que vai “quebrar o Brasil”. 

Por isso, a cada vez que Lula falar em acabar com a fome ou com o Teto de Gastos, o mercado, certamente, irá reagir, como fez durante seu discurso no Centro Cultural do Banco do Brasil (CCBB) na semana passada. Na ocasião, a B3, bolsa de valores brasileira, caiu 3,35%, encerrando o dia em 109.775,46 pontos. O dólar também oscilou: foi a R$ 5,40, alta de 4,09%. No entanto, esse mesmo mercado, à flor da pele com as “irresponsabilidades fiscais” do ex-torneiro mecânico, não deu uma única balançada com os R$ 795 bilhões fora de Teto durante os quatro anos de governo de Jair Bolsonaro. Portanto, cabe dizer que no meio do caminho de Lula, terão pedras, pedregulhos, penedos e tudo que tiver direito.

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