Quando dar limite é dar amor

A dependência da tecnologia representa um desafio para o desenvolvimento infantil
por
Alice Di Biase
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10/04/2025

Por Alice Di Biase

 

Manuela completará 6 anos em julho e está no primeiro ano do ensino fundamental. Sua princesa favorita é a pequena sereia que está estampada em sua mochila de rodinhas e lancheira. É filha única. Seus pais a descrevem como uma menina de personalidade forte. Outras crianças têm uma dinâmica cotidiana parecida.

Caio é tímido e muito apegado à família, com 10 anos e é um palmeirense apaixonado por futebol. Está no sexto ano do ensino fundamental e quer ser médico quando crescer. Adora jogar videogame com os amigos e comer comida japonesa.

A noite do dia 31 de dezembro de 2024 foi atípica para a família de Caio. Por volta das sete da noite, conversando com os amigos no grupo da sala, recebeu uma notificação de um contato privado. Seu amigo havia enviado um longo texto dizendo que Caio havia sido selecionado e que seu destino já estava escrito. Com ordens confusas e frases soltas, a mensagem ameaçava a criança a encaminhar a mensagem para mais de 50 contatos. Caso não cumprisse, o texto afirmava que um membro de sua família morreria assim que o relógio completasse doze horas.

 Logo, Luciana, mãe do menino, começou a receber ligações e mensagens de parentes alertando-a sobre as mensagens enviadas pelo filho. Ao questioná-lo, Caio desabou, entrou em pânico. Chorava compulsivamente e não conseguia respirar. A mãe conta que precisou dar banho no filho (que já fazia sozinho), ele não saiu do seu lado o restante da noite pois tinha medo de que a mãe falecesse. Caio não conseguiu comer direito, chorava e perguntava para a mãe sobre cada membro da família. Luciana relata que passou o restante da noite acalmando o filho até que ele dormisse, não ficou acordado para a celebração da virada de ano.

Manuela também passou por uma situação parecida, a mãe, Márcia, conta que a filha é fissurada no Youtube. Ela explica que, se fosse possível, Manu assistiria vídeos o dia inteiro e que não há critério na escolha dos conteúdos. A mãe já havia percebido algumas vezes que a menina entrava em “ciclos” intermináveis de vídeos. A sequência se reproduz automaticamente e tomam rumos confusos. Muitas das vezes são vídeos perturbadores na visão da mãe, e frequentemente encontrava a filha assistindo a vídeos em Alemão ou Mandarim, sem entender os idiomas.

Manu não é a única criança que é absorvida pela tecnologia, Márcia abre o celular e rola as conversas do grupo de mães da turma. Os comentários em tom de brincadeira escondem a preocupação de inúmeras famílias. As crianças não escutam seus nomes sendo chamados, se alimentam em questão de segundos, gritam e quebram objetos sem nem perceber, tudo isso diante dos pixels de alguma tela, seja ela grande como a televisão ou pequeno como um celular.

A nomofobia é tratada como um transtorno de ansiedade e classificado como transtorno fóbico-ansioso, CID-10 (Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde) da Psicologia. Esse distúrbio é caracterizado por medo intenso e irracional de objetos ou situações específicas, levando à evitação e ansiedade significativa. No caso da nomofobia há medo e sofrimento em ficar afastado do celular ou eletrônicos em geral.

O assunto veio à tona depois da Lei que proíbe o uso de celular em escolas, a proibição evidenciou uma questão que já assombrava muitas famílias: as crianças estão dependentes da tecnologia. Dependência essa muitas vezes subestimada, mas que tem nome, nomofobia.

Os sintomas podem ser observados na maioria das crianças, em diferentes graus de intensidade. Ter alguns deles não significa, necessariamente, que a criança tenha o transtorno, mas pode refletir desafios que impactam o desenvolvimento infantil atual, conta a psicóloga Aline Gazzinelli.

Para Márcia e Luciana, os acontecimentos relatados anteriormente representaram uma virada de chave a respeito da relação dos filhos com a tecnologia. Alguns dos sintomas que são descritos no CID-10 foram sentidos pelos filhos: preocupação excessiva com a Internet, prejuízos na vida pessoal, social e educacional e dificuldade em controlar ou interromper o uso da Internet.

Márcia conta que perceber a dependência da filha dos meios tecnológicos foi como um golpe nas costas explicando que a filha nasceu em uma geração em que a presença de telas em casa já era comum e que pelo cansaço muitas vezes o celular servia como “quebra galho”, mas a exceção se tornou regra em pouco tempo. Em um nível que a mãe não conseguia mais mensurar.

A transição do jardim de infância para o ensino fundamental evidenciou o vício que tomava conta da menina de apenas 5 anos. Em poucas semanas de aula, os professores chamaram a atenção de seus pais para os comportamentos e interações sociais da criança. Manu não queria entrar na sala de aula, não prestava atenção às aulas e não interagia com os colegas. Quando perguntada sobre o porquê de não querer entrar na escola argumentava que não gostava do lugar, e que a escola seria muito mais legal se pudesse levar seu Tablet para lá.

Estava sempre de cara fechada e conversava somente com uma menina da sala. Entretanto as conversas não passavam de pedidos e favores como: pegar o estojo que estava longe ou encher a garrafa de água. Manu também não queria participar das aulas de educação física e nem brincar no intervalo. A falta de vontade da criança preocupa a mãe que conta que quando tinha a idade da menina era “ligada nos 220” e adorava brincar e correr. Em uma ida ao pediatra foi constatado que Manu estava acima do peso adequado para a idade e que apresentava sintomas de sedentarismo.

Márcia relata que é realmente um desafio incentivar a filha a praticar atividade física, ou qualquer outra atividade que não envolva o tablet, celular ou televisão. Ainda mais com a rotina corrida que os pais levam.

Luciana também tem uma rotina corrida, chega em casa tarde ao longo da semana, muitas vezes não tem com quem deixar Caio. Ela conta que se deixar o menino em casa sozinho ou com a diarista ele passaria horas ininterruptas jogando e não realiza as tarefas da escola. Por isso, inscreveu o filho no judô, futebol, skate e reforço de matemática como atividades complementares.

Caio, por ser mais velho do que Manu, já possui certa consciência em relação à sua dependência da tecnologia. Ele sente os impactos no seu dia a dia e conta para a mãe estratégias que usa para mitigar a dependência, como não jogar antes de dormir e assistir televisão até oito da noite somente.

No entanto, Luciana explica que mesmo sabendo sobre seu apego à tecnologia, ao se deparar com as telas, o filho entra em estado de “hipnose” e não percebe suas ações. Principalmente ao jogar online com os amigos. Quando permitido, o menino passa horas seguidas jogando, grita e xinga, sendo possível ouvir de todos os cômodos da casa e em alguns casos, soca a cadeira e derruba objetos. Quando chamada a atenção, se sente arrependido e culpado pelo tempo que perdeu imerso ao jogo.

Muitas vezes a questão está no motivo de não impedir o acesso às telas. Essa é a pergunta que muitos se fazem ao se deparar com a crescente dependência digital entre as crianças. A psicóloga Aline Gazzinelli explica que elas ainda estão em fase de desenvolvimento. O lobo frontal do cérebro, responsável por planejar e executar comportamentos intencionais, só atinge a maturidade por volta dos 21 anos. Até lá, as atitudes infantis são fortemente influenciadas pelo comportamento dos adultos ao redor.

Justamente por isso, Aline ressalta que proibir o uso do celular não é a melhor solução, especialmente quando, no ambiente familiar, os próprios pais também fazem uso frequente do aparelho. Ela destaca que dar limite é dar amor e que o enfrentamento da dependência tecnológica deve envolver toda a família. Afinal, a abstinência que as crianças sentem longe das telas reflete um uso excessivo da tecnologia por toda a sociedade.

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