Por Leonardo Caporalini
O despertador toca às 6h30min. O iPhone 15 Pro Max do serviço, que parece valer mais do que a sua tranquilidade, está sempre por perto. Felipe Campos, jovem fotógrafo de 29 anos, corintiano, fã de rock e amante de um tradicional Marlboro Vermelho, vive em uma realidade onde o glamour esperado por quem está nos bastidores da política se dissipa rapidamente, engolido por uma pressão invisível que nunca o abandona. Ele ainda não despertou por completo, mas o cigarro já está aceso. O silêncio da manhã, quebrado pela fumaça, é o único alívio antes de enfrentar mais um dia na Assembleia. Seu apartamento no Cambuci, apertado e aconchegante, é o oposto do imenso Palácio 9 de Julho, para onde ele se dirige de ônibus todos os dias. No caminho, tenta se preparar mentalmente para o que virá, embora essa breve calmaria já não faça sentido. No ‘busão’, costuma ficar na primeira parte do automóvel. Pela manhã, ainda tem dificuldade de passar para o outro lado do ônibus, após a conferência da passagem, para evitar contato com o cobrador e outros passageiros. O horário faz com que o transporte público esteja lotado e sem olhares que não demonstram esperança.
Desta vez o caminho foi para o Palácio dos Bandeirantes, sede do governo paulista e casa do governador Tarcísio de Freitas, antes de ir para Assembleia Legislativa. O alarme das 7h30min tocou, o último dos dez que ele programou a cada cinco minutos para ter certeza de que teria forças para acordar. O evento é para comemorar o Dia do Auditor Fiscal. São Paulo arrecadou mais de R$ 280 bilhões em tributos neste 2024, e os auditores preparam um grande evento para louvar os profissionais do confisco. Na entrada, Felipe fez o cadastro após a segunda escada do saguão. Ele conhece o Palácio tanto quanto um cidadão deveria conhecer. Cada espaço, andar, funcionários. Mesmo não sendo sua sede profissional, já veio tanto por aqui que adquiriu intimidade.
Seu chefe, deputado estadual, não pode comparecer ao evento oficial pois não havia chegado à capital. Ele estava no seu reduto eleitoral, sua cidade natal há 475 quilômetros de São Paulo, no Centro-Oeste do Estado. Lá não tem aeroporto comercial, apenas um hangar para translado privativo – caso do deputado, já que ele tem um avião particular. O parlamentar também é um empresário de sucesso no interior, sendo sócio-proprietário de uma das maiores comerciantes frigoríficas no segmento. A viagem aérea dura uma hora e vinte minutos, mas por conta de compromissos pessoais, não deu para o deputado chegar. Felipe disse que isso é bem comum e acaba não sendo tão ruim. Não que ele vá trabalhar menos para cobrir o evento, apenas que não vai ter tanta pressão.
Com a chegada do governador Tarcísio, os cliques começam. Assim como em um balé, Felipe dança pelo saguão do Palácio na busca pela melhor captura. A diferença que, ao contrário da sincronia perfeita determinada por uma orquestra para um balé perfeito, um fotógrafo tem apenas sua câmera e o que adquiriu de experiência. Ao lado do governador, estava um homem que parecia ter alta patente. Um chute: Secretário de Desenvolvimento Econômico. O rosto parece familiar e Felipe garante que o já viu. Logo, o foco não é apenas de Tarcísio. Uma foto com os dois então, perfeito. Já garantiu o feed para o post nas redes do deputado. Ao fim do discurso do secretário, ele se junta a Tarcísio para a entrega de Challenge Coins – uma espécie de moeda comemorativa e que por muito tempo teve caráter apenas militar.
Com o fim do evento, as festividades começaram. O deputado chegou para acompanhar o brinde especial pela arrecadação recorde, já Felipe precisou voltar para a Assembleia Legislativa afim de terminar a decupagem de seu material e subir os arquivos na nuvem. Além do deputado, ele também é cobrado pela sua equipe de comunicação, que preza pela excelência e rapidez no serviço. Um contrato na visão do fotógrafo, que sempre cobra melhores orientações e agilidade na resposta de suas tantas perguntas. Quando ele chega à ALESP, o ambiente é o mesmo. O ar é denso, carregado de interesses ocultos que nunca são vistos a olho nu. Sua relação com seus chefes, parece tranquila, mas por trás de cada imagem está uma cobrança constante. O parlamentar é de direita e prega o básico do extremo desse espectro político: Deus, Pátria e Família. Ele não quer apenas fotos; quer o controle de como será retratado. Felipe, sempre ao lado do deputado, sente o peso do poder a cada respiração, como se fosse uma presença sufocante, que nunca o deixa em paz. O primeiro encontro do dia com o parlamentar é sempre silencioso, sem “bom dia”, enquanto a presença dos dois seguranças armados do político o lembra constantemente que ele está ali para servir, não importa o que aconteça.
A rotina na (ALESP) é um campo minado. O local é a casa do Poder Legislativo e o maior parlamento do hemisfério sul. Entre o disparo de sua câmera e os segredos que carrega, ele se mantém de pé e sem respaldo, enfrentando o caos diário como quem encara uma tempestade sem guarda-chuva. São Paulo o acolheu em 2019, quando ele saiu de São José dos Campos para trabalhar na Prefeitura da capital. Ele até chegou a começar uma faculdade de Publicidade e Propaganda, mas não teve tempo para concluir. Preferiu seguir a vida e pular etapas na quarta maior cidade do mundo. Nos tempos de Prefeitura, a política ainda parecia ter algum vestígio de veracidade. No entanto, ao chegar na ALESP, Felipe foi rapidamente arrastado para as camadas mais sombrias do poder. Sua missão parece simples: capturar a política em sua forma mais crua. Mas a verdade é que a realidade raramente pode ser completamente revelada.
A cada clique de sua câmera, o fotógrafo carrega um dilema. Muitas dessas imagens jamais verão a luz do dia. Elas são destinadas ao esquecimento, deletadas antes de serem publicadas. Em meio ao caos dos bastidores, ele tenta manter o foco na realidade, mas sabe que, às vezes, sua ética é moldada pelas circunstâncias. O que ele vê nem sempre pode ser mostrado. Inclusive, tem histórias tão íntimas ouvidas nos corredores do poder, que nem um padre no confessionário poderia imaginar. Felipe conhece cada centímetro da ALESP. Ele sabe onde estar para captar o melhor ângulo dos discursos, das tensões e das conversas que ocorrem a portas fechadas. No entanto, ele também conhece bem a censura sutil que paira sobre suas fotos. Uma imagem pode valer mais do que mil palavras, mas também pode destruir uma carreira. Campos entende isso melhor do que ninguém. Ele não é apenas um fotógrafo; ele é o guardião dos segredos que não podem ser revelados.
Durante os intervalos entre as sessões, reuniões, Felipe escapa para os fundos do prédio, onde encontra outros fotógrafos. Quase todos fumam, aproveitando uma pausa rápida para respirar entre um cigarro e outro. É o único momento em que realmente ele desliga, sem perceber a ironia de que o alívio que procura está lentamente consumindo sua saúde. Esses breves momentos de tranquilidade são interrompidos pela próxima sessão ou pela próxima exigência. Dentro da ALESP, o clima é sufocante. A política ali é mais brutal do que nos corredores da Prefeitura de São Paulo, onde tudo era mais direto. Na Assembleia, as coisas são diferentes; o jogo de poder é mais dissimulado, e as regras mudam a cada segundo. Felipe sabe que não pode confiar em ninguém que tenha um cargo acima do seu. Aliás, ele reforça que é bom ficar de olho em quem está emergindo também. A política o desgasta, mas também o mantém vivo. É uma relação tóxica, sustentada pela imprevisibilidade do que pode acontecer a cada novo dia. A resposta para o descaso é o sentido de uma rotina madura, com responsabilidades.
O dia se arrasta, e quando as luzes dos gabinetes começam a apagar, Felipe Campos ainda está lá, revisando as centenas de fotos que tirou. Escolher as melhores é uma tarefa árdua, que vai muito além da técnica. Muitas vezes, a melhor foto é aquela que nunca será vista. A imagem mais verdadeira geralmente é a primeira a ser deletada. A vida política o desgasta, e ele não tem certeza de quanto tempo mais poderá suportar. Às vezes, pensa em voltar para São José dos Campos, onde a vida era mais simples, menos opressiva. Mas algo sempre o prende. Talvez seja a sensação de estar no epicentro dos acontecimentos, documentando momentos que podem mudar alguma história – mesmo que ele tenha que apagar essa história com um toque no "delete" antes que ela veja a luz do dia. Já passa das 22h00min quando ele finalmente sai do Palácio, sempre o último a deixar o gabinete. O vento frio da noite paulista bate em seu rosto, mas ele mal o sente. A rotina é mecânica. No caminho até o ponto de ônibus, seis quadras distante porque nessa parada o ônibus vai direto para casa, Felipe acende o último cigarro do dia. Foi um dia longo, mas a montanha-russa não para. Amanhã, tudo recomeça. Afirma que só precisa de um cigarro, pois o resto ele dá um jeito de tragar.