“Quem está inserido em uma realidade de extrema exclusão, tem maior chance de usar a droga como válvula de escape dessa realidade”, adverte Marcelo Ribeiro, 53, médico psiquiatra que foi diretor do Centro de Referência de Álcool, Tabaco e Outras Drogas por 10 anos. O doutor explica que do ponto de vista neurobiológico, qualquer privação ou exclusão aumenta o risco de um indivíduo consumir drogas.
O estresse é um grande fator de risco para a introdução do vício. “Se pensarmos em alguém que nasceu em um ambiente de exclusão social, sem apoio nenhum do estado, com uma estrutura familiar desestabilizada, essa pessoa está altamente exposta ao risco de utilizar substâncias, principalmente se tiver contato com o narcotráfico", explica Ribeiro.
O consumo de drogas pode ser atrelado a múltiplos fatores tornando essencial uma meticulosa compreensão de cada caso. Seu uso, com frequência, está ligado à desigualdade social. Entretanto, o consumo de entorpecentes é visto de forma moralista e individualista culpabilizando o usuário. “O que seria um consumo problemático ou não problemático na vida de quem não tem nada, de quem passa fome, frio e dorme no chão?”, questiona Marcelo.
Antes de procurar o crack, a pessoa marginalizada recorre a produtos baratos e de fácil acessibilidade, como o álcool, solventes, cola de sapateiro, thinner e acetona.
“O álcool, por ser muito barato, viabiliza o acesso de pessoas que têm poucas condições econômicas. A substância possui efeito psicoativo muito intenso e pode provocar dependência severa, até pior que a do crack, do ponto de vista fisiológico”. A cola de sapateiro sofreu algumas regulamentações o que diminuiu a circulação do produto e paralelamente, fez com que o crack tivesse uma penetração muito grande.
O crack é a droga mais consumida pela população extremamente vulnerável, mas ele não surge assim, visto que é um derivado da cocaína. Porém, quando a droga é produzida em grande quantidade, por ser uma substância muito danosa e de absorção muito rápida, se popularizou.
Outro fator que aumenta a popularidade do entorpecente é o preço. "Pessoas absolutamente excluídas vão precisar de drogas que possuem opções de varejo melhores, o crack pode ser comprado de diversas formas, uma pedra de 5 gramas, lascas do químico ou uma fumada por um real, é uma substância que possui apresentações economicamente mais possíveis”, aponta Marcelo.
Ribeiro realizou um estudo que explica: “Uma pessoa no topo de uma estruturação social tem menos de 10% de chance de desenvolver dependência por uma substância, já quem está no pólo inferior, em situação de insegurança alimentar e habitacional, tem pelo menos 33,3% de chance de vir a desenvolver dependência por uma substância”
Em entrevista, Maurício Fiore, mestre em Antropologia Social pela USP, doutor em Ciências Sociais pela Unicamp e pesquisador do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), esclareceu que, se sabe que os padrões do uso de drogas, não está relacionado diretamente a contextos de fome especificamente. “Para ter uma relação científica, é necessário dizer que todas as pessoas que passam fome vão consumir algum tipo de droga, o que não é verdade”, explica o pesquisador.
O que acontece é que no Brasil, a fome tem associação especialmente com pessoas em situação de vulnerabilidade e de rua, que podem encontrar no uso de drogas uma forma de aliviar todos seus sofrimentos, incluindo a fome. Fiore explica: “A fome por si só é um problema que se juntada ao uso de drogas, pode formar um problema ainda maior”.
A situação de miséria no Brasil é histórica e estrutural, por conta disso, a população em situação de rua muitas vezes é taxada como consumidores problemáticos de drogas, mas na verdade existe um acúmulo de problemas. “Quando analisamos esses indivíduos, é possível ver uma trajetória marcada por rompimentos, dificuldade de relação com o mercado de trabalho, com a polícia, com a justiça criminal, uma somatória de fatores”, completa Maurício.
Em uma ação do grupo Ondas de Amor, sediado na Lapa, bairro da zona oeste de São Paulo, que promove, quinzenalmente, café da manhã e kit de higiene básico para pessoas carentes. Davanei, 32, morador em situação de rua que participava da ação, contou que é usuário de entorpecentes desde os 13 anos de idade. “Faz 19 anos que sou usuário, comecei cheirando cola e agora tô no crack”, diz.
O crack afeta a química do cérebro do usuário, causando euforia, alegria, suprema confiança, perda de apetite, insônia, aumento da energia, desejo por mais crack, e paranóia potencial (que termina após o uso). Devanei conta que ao usar a substância não sente fome, sono nem sede, apenas vontade de fumar de novo, “com o crack você não é dono nem da sua própria vida”.
Ele conta que começou a usar drogas porque foi expulso de casa aos 12 anos, o que fez com que ele vivesse inúmeras situações de insalubridade. A falta de alimento pode levar a uma alimentação inadequada e à escassez de nutrientes necessários para o corpo, o que pode ter consequências negativas para a saúde mental e física. Isso pode aumentar a vulnerabilidade de uma pessoa ao uso de drogas, especialmente se ela estiver enfrentando outros fatores de risco, como estresse, ansiedade, depressão ou traumas.
A dependência química afeta a capacidade das pessoas de conseguir empregos e manter sua subsistência. Sem um emprego formal, sem o auxílio de familiares e do poder público, os dependentes químicos se vêem na responsabilidade de usarem o pouco que ganham na rua para saciar seu vício. A falta de uma alimentação, a vida instável da rua e o uso constante de drogas por essa camada da sociedade, os levam a um ciclo vicioso.