Por João Curi (texto) e Laura Boechat (audiovisual)
Tem muitos nomes, em todas as línguas. É magia antiga que cativa a mente. Poetas o adoraram em milhões de versos, e a conta não para. Cada metido a escritor já arriscou uma frase ou duas em seu nome, na tentativa de explicar.
Pergunte aos gregos
A Antiguidade trouxe na mitologia uma visão dolosa. É um sentimento que nasce para dar motivo ao castigo. É farto, é inevitável. Nem os deuses escapam – na verdade, principalmente eles. É o que fez nascer criaturas novas, inéditas, majestosas em sua criação divina.
É gerador. Mas também mata.
É a premonição da desgraça. Na Grécia Antiga, a literatura de tragédia fora a mais célebre da época. Dentro disso, encontra-se a ideia de paixão no conceito pathos, que define o sofrimento como seu sinônimo. Segundo a filosofia helênica, esse sentimento é entendido como a raiz dos males e da infelicidade do homem, portanto, deve ser dominada.
E, mesmo assim, as narrativas que se embebedavam das paixões proibidas, traições, dos castigos divinos, das ousadias humanas, onde tudo era possível e colateral, lotavam plateias e atraíram espectadores ao que hoje se reproduz, a grosso modo, no teatro. Os saltos entre uma notícia boa e outra ruim, depois uma ainda pior anunciada no calor da cena, reforçaram a condição frágil da vida humana. De novo, ninguém escapa.
Narciso, por exemplo. O filho de Liríope, uma ninfa, e de Céfiso, o deus-rio, ainda era menino quando recebeu o aviso de uma vidente: teria uma vida longa e feliz, desde que não conhecesse a si mesmo. Sua beleza hipnotizava as ninfas que o miravam, mas ele pouco dava atenção. Dentre as enamoradas, estava a ninfa Eco, que fora castigada a somente repetir a fala dos outros. De tão apaixonada, perseguia Narciso pelos bosques, e nada podia lhe dizer além do que ouvia. A falta de ser correspondida a fez esvanecer na própria tristeza, e assim tornou-se voz sem corpo. A vaidade de Narciso, por sua vez, aborreceu Ártemis ao ponto de condená-lo. Quando ele decidiu saciar a sede, inclinou-se numa fonte d’água e mirou a si mesmo. Conforme premeditava a vidente, perdeu-se ali mesmo, perdido no próprio reflexo. Apaixonado pelo que via, fez de tudo para agarrar o amado, sentir-se junto dele, e afogou-se. Na beira do rio, porém, brotou a flor que adotaria seu nome.
Inevitável. Punitivo. É uma desgraça.
Pergunte aos poetas lusófonos
É fogo que arde sem se ver. É ferida que dói, e não se sente. Essa dualidade confunde a vinda e a despedida, que muitas vezes vêm juntas. Negar é uma possibilidade, pelo menos até quando for sustentável. Racionalizar é enganar-se a si mesmo, ainda que tudo se resuma à dualidade da antítese. Essa seria a exceção. Até nisso existem limites. (Luís Vaz de Camões)
É impaciente.
Bastam minutos para perder-se no outro. Entregar adiante o destino das lágrimas ou da envergadura de um sorriso. É conveniente oferecer o que pedir, o que precisar, o que soar mais convidativo ao aceite do verdadeiro convite: ser tanto, tudo e todos. Ser exatamente o que o outro quer, procura. Tem perigo nisso. Pensar que a entrega é obrigatória, que garante algum resultado, é enganar-se outra vez. Fala-se somente de si esperando qualquer resposta, quando nada diz sobre o outro. Tudo que se oferece é vazio, porquanto não resta nada que não o seja. Está aí o engano de pedir o que não tem, oferecer o que está em falta, somente para implorar pela migalha que sustenta a própria miséria. (Paulo Leminski)
Ficam as cartas, as memórias, esvai-se todo o resto. Pessoa pode explicar algo tão ridículo. (Fernando Pessoa)
Ao ponto de dizerem, num ínterim de loucura, que seria possível conversar com as estrelas, por mais distantes que estejam e mudas que sejam. De que adianta, então, amá-las? Ora, só quem ama pode ter ouvido capaz de ouvir e de entender estrelas. É linguagem que começa dentro para explorar o que sempre esteve lá fora. (Olavo Bilac)
Tem de se viver antes de querer explicar. E viver é deixar a porta aberta para todos os sentimentos que quiserem entrar e sair, e entrar de novo. É rir quando quiser rir, chorar quando precisar, seja por bem ou por mal. É esperar, num arquejo de fidelidade, que seja eterno. Mas nada é. Por isso, Vinicius, que seja infinito enquanto dure. (Vinicius de Moraes)
Arde. É intenso. Engana. É ridículo.
Pergunte aos compositores
Solidão. Pode ser duro sentir sozinho algo tão profundo. Enquanto os poetas se lamentam, segredam, expelem de si todo aquele ardor que os consome por dentro, as cordas se enamoram sozinhas. Estes versos, cantados por tantas vozes, seguem uma trilha de ressignificações, reverberam-se naturalmente de boca em boca, coração em coração, e o que mais puder tocar.
Violas, piano, guitarras, violinos, tudo se enfileira em uma orquestra de um único maestro. O condutor aperta o pulsante, ao ponto deste vociferar toda a sua dor, a sua extasia, o seu abandono. Tudo o que se sente ganha nota, da mais baixa ao falsete. Não se busca o equilíbrio, pelo contrário, encontra-se tudo que procura na desordem das apresentações.
Ao toque da palheta, choram as cordas e o aço. Os dedos ganham calos com o costume de se desculpar através das teclas brancas e pretas. A voz enrouquece, junto à gaguice da cabeça. Repetem-se os pedidos, em serenata, a quem puder e quiser ouvir: tragam de volta o que eu não tive ainda.
É difícil explicar tamanha vastidão. Djavan permitiu-se a ousadia da comparação, e se viu num deserto, sem medo. Ao ruir do tempo, longe de quem queria perto, nada andava. Ninguém sabe o que sofria. Até que decidiu pedir tudo que lhe faltava no pouco. Quis que entrasse nele um fluxo inteiro de emoções, desaguadas num corpo só. Com sede e calor, ele sonhava em ser Oceano. (Djavan – Oceano)
Abundante. Solúvel. É alheio ao tempo.
Pedir o que quer, a quem quer, pode ser tão difícil quanto as circunstâncias fazem parecer. Mas isso exige coragem. É aqui que entram os casos proibidos, escondidos, sombreados à luz da profanação. Escondem-se os pares despareados por fábrica, enxutos nas trincheiras, acuados na própria silhueta e pouca liberdade. Quando tudo que sentem é desqualificado, reprimido, liquidificado em segredos que não podem ganhar forma nem cor, ousados são aqueles que se mostram ao mundo.
Cazuza estava de cama, internado em um hospital, quando se despiu da rebeldia para reivindicar seu segredo. O ex-Barão Vermelho viu nos beija-flores que o visitavam na janela a metáfora ideal para a sua queixa. Viu na coincidência tudo que passava e sentia, mas protegia o nome. Não queria mais mentir, fingir que perdoou, forçar uma amizade para afastar o rancor. Quando a emoção acaba, é normal que se siga em frente e, de flor em flor, vai se gastando o mel. Educação nenhuma é capaz de destilar as terceiras intenções de um término. O choro preso aguava o que havia de melhor, por isso o fim. (Codinome Beija-flor – Cazuza)
É segredo. Metafórico. Findável.
Bem verdade que tudo poderia ser mais fácil, se não fosse tão complicado transmitir ao outro o que há de tão difícil. A distância pode apertar ao ponto de fertilizar dúvidas, ansiedades, dependências. Edson Trindade, amigo de Tim Maia, se doía pelo adeus que não pôde dar. Marcaram sua vida, viveram e morreram em sua história, e daí nasceu o medo do futuro e da solidão que batia à porta. Ele gostava tanto de você, que via nos sonhos o mesmo passado que ocupava as paredes do quarto. Quando tudo termina por vontade do outro, a dor maior é perceber que não há lugar qualquer que escape das lembranças inevitáveis. O pensamento é armadilha da saudade que parece eterna. (Gostava Tanto de Você – Tim Maia)
E o “para sempre” é relativo. Pode durar toda uma vida, talvez mais. Está em cada despedida, em cada verso dedilhado, chorado. O pesar da ausência é facilmente decantado pela volta, mas só adia o sofrimento. Para Tom Jobim e Vinicius de Moraes, é eterna a desventura de viver à espera de toda uma vida ao lado de quem não está. A saudade cativa os dias, as noites, e cada minuto parece abrigar horas cheias. (Eu Sei Que Vou Te Amar – Tom Jobim, Vinicius de Moraes)
Por isso o tempo é do contra. Passa rápido quando podia esperar mais, e dobra quando o melhor seria enxugar tudo de uma vez e pular para uma data específica, que resolvesse tudo. O pior de deixar para o tempo escolher como carrega as horas é que, às vezes, o ser humano esquece que não controla nada. A natureza abriga fenômenos inevitáveis, imparáveis, que mimetizam também as nossas relações. Há tempestades que previsão nenhuma calculou, guarda-chuva algum segurou, janela alguma escapou.
Quando fugir não resolve nada, não tem o que fazer. Ramón Cruz descreveu exatamente a dor de não ter o que falar quando não querem mais ouvir, e Ivete Sangalo levou suas constatações aos palcos. Por bem ou por mal, às vezes a distância ajuda e faz lembrar as horas lindas que passaram juntos. Apesar dos pesares, a certeza de que essa história ainda não terminou leva à esperança de que essa tempestade, um dia, vai acabar. (Quando a Chuva Passar – Ivete Sangalo)
É saudade. É a certeza. Dura uma vida inteira. E passa.
Mas quando? Não ter mais a chance de olhar nos olhos, ganhar os abraços, pode ser desesperador. Chegar ao ponto de trocar a si mesmo, por diversas vezes, somente para encontrar o outro. Entregar-se em nome do perdão, do aceite, de um recomeço que não precise acabar, para nunca mais perdê-la. José Wilson e Fernando Mendes negaram a todo custo a solidão para perceberem, tarde demais, que o outro só ensina a querer, não a esquecer. É dessa fossa que a primeira pessoa vira segunda, conjugada somente em favor do outro, sem qualquer espaço para o “eu”. O verdadeiro mal é não se lembrar que, correspondido ou não, um relacionamento se vive na primeira pessoa – no singular e no plural. (Você Não Me Ensinou a Te Esquecer – Caetano Veloso)
É conjugado na primeira pessoa.
Pergunte sobre a paixão à Psicologia
O coração acelera. O suor se espalha pelo corpo. A cabeça não para quieta, já fugindo da realidade que a abandona. As mãos tremem, o pulmão trabalha com pouco, as ideias orbitam a mesma personagem de todas as cenas.
É obsessão. Dependência.
A Psicologia assemelha os sintomas da paixão a quadros mais graves, como o vício das drogas ou um distúrbio ansioso. Essa proximidade é suficiente para qualificar a pessoa apaixonada como cativa, acorrentada às próprias emoções e sentimentos. De acordo com a análise de Helena Cunha Di Ciero, especialista em psicoterapia psicanalítica pela USP e membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), a paixão cria no sujeito apaixonado a ilusão de estar fundido ao outro, de forma a enxergar dois onde só há um e não ter prazer sem o outro, não ser nada sozinho.
Na carência de elementos concretos, o banho de ilusões dá início à caçada de migalhas, ou qualquer amostra de que toda aquela vivência foi real em alguma instância. É nesse âmbito de idealização, inclusive, que nasce a dependência.
Se derivado do grego, significa excesso, sofrimento; no latim, a paixão deriva de passus, que também a afere ao sofrer. Esse sentimento intenso, entretanto, não corresponde ao imaginário amoroso que se estabelece no senso comum, ainda que seja associado à atração, ao desejo sexual e aos delírios românticos. A proximidade desses conceitos se confunde na abordagem ficcional, como se observa em filmes e livros dedicados exclusivamente ao tema.
Em outro sentido, Di Ciero resgata Freud ao se referir à humildade do apaixonado. Para o psiquiatra austríaco, pai da Psicanálise, depender de um objeto amado empobrece o ego ao ponto de comprometer a libido. Mais do que isso, o sujeito a quem se dirige a paixão torna-se vital e até uma necessidade, sendo destinatário de tudo o que caberia ao íntimo, ao que deveria ser próprio de cada indivíduo, portanto, não deve ser entregue ao outro. É pensando nisso que se entende o estado apaixonado como uma posição ideal de como o sujeito gostaria de ser tratado. Di Ciero explica que é como enxergar no outro uma parte projetada de si, o que gostaria de ser.
Projeção. Idealização. É distorcer-se da realidade.
Mas também mobiliza. A psicanalista defende que a paixão é recurso necessário para o dia a dia, principalmente em meio às frustrações do cotidiano. A falta de desejo paralisa. A ausência dos sonhos e da fantasia tornariam a vida um carro sem gasolina. Pensando nisso, Di Ciero revela que a paixão move os instintos, a criatividade, embalando os artistas em uma espécie de transe no prelúdio de suas criações.
Quanto à célebre chama, o fogo que arde dentro dos corações-alegorias, é onde mora o sentido e também a dúvida. Ao se debruçar sobre o escritor húngaro Sándor Márai, por exemplo, é possível compreender que a paixão dá tudo, ao mesmo tempo, e na mesma intensidade, que o exige.
É uma crise. Abala. Movimenta.
De volta a Freud, a psicanalista conclui que o aprisionamento dessas emoções agudas fadaria ao adoecimento. É um sofrimento necessário para amadurecer, renovar a visão de mundo, reconstruir-se. Nasce na cabeça para servir a ela. Talvez, por ser tão emotiva, incompatível com a razão, seja facilmente confundida.
Mas o amor é uma palavra para quem sabe dar valor.