Os trabalhadores que limpam, organizam e cuidam sem serem vistos

Na correria das grandes cidades, trabalhadores essenciais passam despercebidos e revelam o cotidiano de quem sustenta a cidade sem reconhecimento.
por
Ivan Marino Iannace
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10/06/2025

Por Ivan Marino

 

Antônio começa o dia antes do sol nascer. Acorda às 4h30min e, por volta das 6h00min, já está de uniforme, com o molho de chaves no bolso, pronto para abrir as portas do prédio comercial onde trabalha como zelador há mais de duas décadas. Ele é um dos primeiros a chegar e um dos últimos a sair, em uma rotina que, embora repetitiva, exige atenção constante. Nos seus poucos momentos de descanso aproveita a pausa durante o expediente para estudar sozinho. O celular na mão, o fone no ouvido e o olhar atento ao aplicativo de inglês. Explica que tem interesse em aprender o idioma porque, na região onde trabalha, circulam muitos estrangeiros. Já precisou indicar direções ou responder a perguntas básicas e sentiu dificuldade. Acredita que, com um vocabulário mínimo, a comunicação se tornaria mais fácil e, quem sabe, poderia até abrir portas.

Segundo o IBGE, mais de 12 milhões de brasileiros adultos não concluíram o ensino fundamental. Muitos deles estão em empregos que exigem esforço físico, longas jornadas e pouca qualificação formal. Ainda assim, como mostra o caso de Antônio, o desejo de aprender e se desenvolver permanece presente, mesmo diante das barreiras cotidianas. No Brasil, uma em cada quatro pessoas com escolaridade até o fundamental incompleto atua no setor de serviços, especialmente em cargos de apoio como limpeza, manutenção ou portaria. Segundo o Dieese, essas funções recebem, em média, pouco mais de 1,6 salário mínimo, mesmo em cidades como São Paulo, onde o custo de vida é um dos mais altos do país. Além disso, são postos de trabalho com baixa mobilidade e pouca chance de promoção. A desvalorização não é apenas salarial, ela também se traduz na forma como esses profissionais são tratados, vistos ou, muitas vezes, ignorados.  Ainda assim, como mostra o caso de Antônio, o desejo de aprender e se desenvolver permanece presente, mesmo diante das barreiras cotidianas.

Funções como as que exerce Antônio, como limpeza, manutenção, organização de espaços comuns são consideradas essenciais para o funcionamento das cidades, mas raramente recebem a devida valorização. Em prédios, condomínios, escolas e hospitais são esses profissionais que garantem que tudo esteja em ordem antes mesmo de os demais trabalhadores chegarem. São pilares invisíveis dentro da nossa sociedade de trabalho. Para quem passa pelo saguão do prédio, muitas vezes ele é apenas parte do cenário. A rotina dele inclui tarefas fundamentais, mas nem sempre perceptíveis: verificar as luzes, organizar a recepção, garantir que banheiros estejam limpos e que o ambiente esteja seguro. Poucos o cumprimentam ou o chamam pelo nome. Antônio não reclama disso — mas admite que se lembra de cada rosto que o trata com gentileza.

O psicólogo Daniel Andriani aponta que esse tipo de relação é mais comum do que se imagina. Segundo ele, profissionais que exercem funções operacionais em ambientes formais costumam ser ignorados não por maldade, mas por hábito. Explica também que a rotina acelerada das grandes cidades como São Paulo, contribuem para essa forma de cegueira social, um comportamento que torna certas presenças quase invisíveis. Ele observa que, com o tempo, isso pode afetar a autoestima e o senso de pertencimento desses trabalhadores. Embora nem todos manifestem insatisfação de forma explícita, é comum que carreguem uma sensação constante de estar à margem, mesmo fazendo parte do cotidiano de muita gente. Daniel afirma que quando alguém passa por uma pessoa todos os dias e nunca dirige uma palavra, a mensagem, mesmo que silenciosa, fica bem clara.

O prédio onde Antônio trabalha fica em uma região central da cidade, cercado por empresas, escritórios, cafés e clínicas. Por ali, o ritmo é acelerado e o silêncio entre as pessoas parece regra. Ele comenta que já decorou os horários dos frequentadores mais assíduos. Sabe quem chega sempre apressado, quem costuma sair esquecendo alguma coisa e aqueles que não respondem nem a um bom dia. Também não deixa de observar rotinas, perceber mudanças sutis e organizar pequenos reparos antes que alguém precise pedir. Entre tantos dias parecidos, Antônio guarda uma cena com carinho. Foi em um fim de ano, durante um amigo secreto organizado por funcionários de uma das empresas do prédio. Ele não participava, mas foi chamado ao salão e ganhou um presente simbólico de uma das colaboradoras, que fez questão de agradecer pela educação e disponibilidade diária. Foi um momento rápido, mas que, segundo ele, ficou na memória.

Entre uma tarefa e outra, costuma usar o celular para acompanhar vídeos e anotações sobre manutenção predial. Explica que gosta de entender melhor os equipamentos com que lida todos os dias, e que, quando consegue resolver um problema sozinho, sente que valeu o esforço.

Na maior parte do tempo, trabalha em silêncio. Cumpre funções que garantem o funcionamento do espaço, mas que raramente ganham destaque. Não se queixa, mas reconhece que há dias em que gostaria de ser mais escutado, principalmente quando sugere melhorias que poderiam facilitar o dia a dia de todos. No fim do expediente, Antônio costuma dar uma última volta pelo prédio. Fecha janelas esquecidas, apaga luzes acesas, confere se as portas estão trancadas. Depois, guarda o uniforme, recolhe suas coisas e vai embora como chegou: em silêncio.

A cidade, lá fora, continua correndo. Gente entra e sai dos prédios sem reparar quem cuida deles. Muitos talvez nem saibam quantas engrenagens invisíveis mantêm o cotidiano em ordem. Muitas dessas engrenagens têm nome, história e vontades. A trajetória de Antônio lança luz sobre uma realidade maior: o funcionamento das cidades depende de trabalhadores que, embora essenciais, passam despercebidos. São pessoas que garantem que os ambientes estejam limpos, seguros e organizados antes mesmo do expediente começar — e que, muitas vezes, só são notadas quando algo dá errado ou quando estão ausentes. O protagonismo dessas funções operacionais é silencioso, mas indispensável.

Mais do que ausência de reconhecimento, o que se revela é um padrão de desumanização cotidiana. Um simples “bom dia” ou um agradecimento, quando acontece, é suficiente para marcar a memória de quem costuma ser ignorado. Isso escancara uma falência nas relações sociais dentro dos espaços urbanos: a gentileza virou exceção, não regra. Ser visto, mais do que um gesto de educação, é um sinal de pertencimento.

Mesmo diante da desvalorização, muitos desses profissionais buscam crescer, aprender e se adaptar. Como no caso de Antônio, o esforço para estudar por conta própria e entender melhor as ferramentas do seu trabalho demonstra uma vontade de desenvolvimento que, muitas vezes, não encontra espaço para florescer. A mobilidade prometida a quem “corre atrás” nem sempre se concretiza, especialmente quando as estruturas sociais mantêm os mesmos de sempre à margem. No fim, a história de Antônio não é sobre alguém que se sente invisível, mas sobre o quanto nossa sociedade tem falhado em enxergar. Refletir sobre isso é reconhecer que pertencimento, dignidade e valorização não deveriam ser privilégios de poucos, mas garantias básicas para todos que constroem, todos os dias, o ritmo das nossas cidades.

Assim como Antônio, Everton - porteiro de um prédio residencial na Zona Leste de São Paulo há 22 anos - conhece cada morador pelo nome e cada hábito pelo som do elevador. Seus turnos noturnos já foram preenchidos com histórias e recados importantes, mas hoje testemunha silencioso enquanto residentes passam direto por sua cabine, desbloqueando o portão com um simples comando no celular. Com um gesto cuidadoso, Everton folheia o caderno onde durante anos registrou cada entrega e recado, observando que antes era a memória viva daquele prédio. Agora, percebe com amargura que se tornou apenas um plano B, lembrado apenas nos raros momentos em que a tecnologia falha.

A história de Everton se repete em diversos setores urbanos. Profissões consolidadas ao longo de décadas estão sendo eliminadas progressivamente por sistemas automatizados. Dados do Banco Mundial indicam que quase um quarto dos empregos formais no Brasil corre risco de automação até 2035, com os cargos operacionais e de atendimento sendo os mais vulneráveis. O fenômeno apresenta um paradoxo evidente: justamente as funções que exigem conhecimento empírico e interação humana são as mais suscetíveis à substituição tecnológica. Everton, com seus 22 anos de experiência, reconhece cada entregador regular e identifica padrões suspeitos nas encomendas - competências que os sistemas automatizados ainda não replicam com eficácia.

A transição tecnológica elimina não apenas postos de trabalho, mas também conhecimentos tácitos acumulados. Os novos sistemas de portaria digital não incorporam a percepção desenvolvida por Everton para identificar situações anômalas ou necessidades específicas dos moradores. A pressão por eficiência operacional continua a substituir gradualmente essas interações pessoais, levantando questões sobre o custo social dessa transformação. O processo em curso sugere a necessidade de equilibrar avanço tecnológico com a preservação de competências humanas insubstituíveis, particularmente em serviços que envolvem segurança, atendimento e convivência comunitária.

Casos como esse revelam uma contradição fundamental do nosso tempo: enquanto celebramos a "humanização" dos serviços através de chatbots com nomes afetivos e assistentes virtuais empáticos, eliminamos progressivamente as interações humanas genuínas. Essa substituição não ocorre por acaso, segue uma lógica econômica implacável onde o custo-benefício ignora variáveis intangíveis como conhecimento tácito, memória institucional e segurança comunitária. Os sistemas automatizados de portaria oferecem eficiência incontestável: registram entradas com precisão, não faltam ao trabalho, não exigem folgas pagas. Mas falham em perceber o que qualquer porteiro experiente capta imediatamente - a mudança no comportamento do morador que pode indicar desde um problema de saúde até uma situação de risco. Enquanto a tecnologia avança na coleta de dados, retrocede na interpretação de contextos.


O mercado de trabalho responde com soluções superficiais: requalificação profissional. Como se o problema fosse a falta de adaptabilidade dos trabalhadores, e não um sistema que trata pessoas como softwares desatualizados. As consequências se estendem além do desemprego. Prédios com portaria automatizada relatam aumento de 40% em entregas extraviadas e 35% mais ocorrências de segurança, segundo pesquisa do Secovi-SP. Moradores reclamam da falta do "filtro humano" que antes identificava visitas suspeitas. Cria-se então um novo mercado: sistemas de IA que tentam replicar - a custos elevados - justamente as habilidades que pessoas como Antônio e Everton desenvolveram organicamente ao longo de anos de experiência.

A resistência vem de onde menos se espera. Jovens moradores, nativos digitais, começam a exigir a volta dos porteiros humanos em condomínios de luxo, descobrindo que eficiência não equivale à qualidade de vida. Enquanto isso, nas periferias, onde a tecnologia chega como corte de custos, forçam os trabalhadores a assistirem à erosão de sua profissão sem direito a debate. Essa transição revela nosso paradoxo como sociedade: valorizamos cada vez mais a experiência humana justamente quando criamos mecanismos para eliminá-la. O desafio que se coloca não é como evitar o progresso tecnológico, mas como preservar o capital humano acumulado em décadas de trabalho antes que ele se torne mais uma vítima colateral da nossa obsessão pela eficiência a qualquer custo.

 

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