O momento nos coloca em uma posição de ignorância. Tudo o que achávamos que sabíamos foi reconfigurado. Os ambientes mudaram e as dinâmicas também. O almoço não é mais no refeitório da faculdade e a sala de aula cada dia é em um lugar diferente, às vezes na cama, outras na mesa de jantar. Acordo e tenho dúvida se realmente é dia de semana e se terei aula em poucos minutos. O corte na rotina nos põe em estado de interrogação. Não apenas em relação a qual sabor do chá escolher, mas ao nosso futuro como um todo. Ninguém sabe o que será do amanhã, dos planos e metas feitos para esse ano, ou quando poderá abraçar aquela pessoa que faz tanta falta. O toque, inerente à nossa condição social, de repente se tornou potencialmente letal. Nem pensar esbarrar nas pessoas ou encontrá-las ao acaso. O vírus se espalha em superfícies porosas, como nossa pele, por isso, aquilo que necessitamos para viver, como o contato e o carinho, acaba sendo a maior ameaça de nossas vidas.
De uma forma mais profunda, me vejo constantemente pensando no fim das coisas. Talvez seja o sentimento de ansiedade que a situação de estar em isolamento social gera. Penso no fim do leite, e em como eu ou e minha mãe vamos ter que ir ao mercado e nos expor de alguma forma. Penso no fim da minha graduação que parece estar cada vez mais próximo. Penso no fim do dia, sempre acompanhado de um pôr do sol cada vez mais estimado, em tonalidades rosa, laranja, roxo, uma variação que parece oscilar junto ao meu humor. Penso em todos os livros na estante que eu não terminei de ler. Penso mais ainda no fim da quarentena.
Apesar de estar em casa com os familiares, cada um tem a sua própria solidão que atrai esse tipo de pensamento. Em meu próprio canto, tento recriar uma rotina. Reflito sobre os caminhos tomados o que faz com que eu enfrente os medos mais intrínsecos, guardados pelo alvoroço do dia a dia antes da pandemia chegar, pela falta de tempo de... Olhar para mim mesma. O medo vem da incerteza. Não sabemos quando, não temos prazo nem previsão positiva, e para alguém que sempre gostou de ter tudo anotado na agenda, esse sentimento é angustiante. Mas, enfrentar a nós mesmos é olhar no espelho e reconhecer todas essas fraquezas, uma atitude simples que me custa muito realizar no dia-a-dia. Então eu penso: se não olhamos para nós mesmos, imagine para os outros.
Foi-me preciso ter a coragem de fazer pequenas ações que pudessem amenizar pouco desse sentimento. Focar no “agora” não foi uma opção, porque ele é assustador. Não entrarei em detalhes sobre o que fazer, longe de eu transformar esse texto em um manual de autoajuda. Mas há certas coisas que eu percebi estando em quarentena. Foi preciso um vírus atingir o mundo em grande escala para eu perceber os privilégios da simplicidade. Tal expressão que li na obra “Cem Anos de Solidão” do prestigiado Gabriel García Márquez ficou cravada na minha memória. Após promover 32 guerras, o personagem, ao retornar para o seu lar, percebe que os pequenos momentos em sua vida, a princípio triviais, foram os de maior felicidade.
Assim como ele, no decorrer de uma guerra política, sanitária e humanitária que acontece no mundo afora, me dei conta do quão é esplêndido aproveitar o sol que invade qualquer fresta da janela, formando um lugar perfeito para aquecer os pés. Ver os passarinhos que aparecem no quintal atrás de comida e refúgio. Fazer as refeições junto da família. Ter um lugar - e tempo - para tirar aquele cochilo depois do almoço é um privilégio. Assim como observar e exercitar o silêncio, tão desconhecido em nossas ruidosas vidas. Mas ainda assim, esse último é um privilégio do qual não aproveito o quanto gostaria. Cada dia um ruído diferente no noticiário, os tiros nas favelas ou o bipe de aparelhos respiratórios.
De longe, o maior privilégio de todos é poder ter uma casa e ficar nela. A pandemia escancarou e desigualdade no Brasil. Afirmou o quão desigual são os riscos e a exposições sofridas pelas pessoas. Enquanto uns se resguardam em suas casas e tem o que colocar na mesa, outros não têm escolha, não tem para onde ir, ou ainda dividem e casa com várias pessoas. Algo simples e fundamental como a moradia é um privilégio que muitos não desfrutam. Há também aqueles desprovidos de acesso a cuidados de saúde, que nesse momento se torna indispensável. E dói ver que os negros e pobres são os que mais morrem de covid-19 no Brasil, mas não me surpreende. São aqueles que precisam de atendimento da rede pública de saúde e que não tem condições de comprar remédios. As pessoas que estão no topo nunca se importaram com o sangue que correm em suas mãos, para elas as outras vidas são descartáveis. É e sempre será nós por nós. O vírus expõe as diferenças raciais e geográficas nesse país.
Quando falamos de privilégio, não podemos levar como culpa ou atribuir uma conotação negativa à palavra. É importante reconhecê-los, nos faz dar valor à vida e nos causa indignação com as injustiças que acontecem por aí. Nem todos possuem as mesmas vantagens e isso provém da nossa estrutura social e suas relações de poderes. Afinal, é um privilégio se indignar, pois significa que sangues quentes ainda correm em nossas veias, significa que ainda existe amor e empatia.