No terceiro andar de um colégio particular da Zona Leste de São Paulo, às onze e vinte da manhã, acontece a sexta aula do 1°A do ensino médio. Os alunos agora se dividem. Metade deles parte para outra sala e os que ficam, se misturam com outra turma que chega. É hora dos itinerários formativos do Novo Ensino Médio, determinado pelo Ministério da Educação e recém introduzido no ensino privado e público. A professora Milena Boscolo, de Física, cruza a porta e abre uma caixa vermelha com alguns materiais. Os alunos se animam em grupos checando os ovos trazidos de casa para o projeto do dia: “A gente vai construir um paraquedas pra esse ovo”, esclarece Hanna, uma das cinco integrantes de um dos grupos, com a intensidade no olhar e na atitude que só se tem quando se é adolescente.
“O aluno tem que entender que agora ele é o protagonista”, afirma a professora Milena, frisando que ainda é cedo para saber dos resultados do Novo Ensino Médio e que serão a longo prazo. Alguns alunos ainda não tem uma opinião formada sobre as mudanças no ensino. Parece tudo muito novo. Milena diz que os sente meio perdidos, a adaptação será demorada também. Mas alguns, tanto estudantes da rede privada quanto pública, já relatam críticas ao formato. Josiane Figueiredo, estudante do 2° ano do ensino médio em colégio público, da cidade de São Paulo, opina: “é um sistema que não funciona. Na minha opinião, graças ao atraso com a pandemia, não era hora de colocar esse novo método.”
Na teoria, a lei que tornou possível o Novo Ensino Médio teria a pretensão de “atender às necessidades e às expectativas dos jovens, fortalecendo o protagonismo juvenil na medida em que possibilita aos estudantes escolher o itinerário formativo no qual desejam aprofundar seus conhecimentos”. É o que está descrito no próprio site do MEC. Mas não é o que tem acontecido nas escolas. A limitação de alunos por itinerário tem tirado o direito de escolha desses estudantes, que era a premissa do sistema. Assim, muitos se queixam de estar na área que era o oposto do que queriam.
No 1° ano do ensino médio, Gabriel Vieira de Sene, aos 15 anos, estudante de colégio privado em São José dos Campos, interior de São Paulo, tem o sonho de cursar história e um dia se tornar professor. Atrás dos óculos de grau, numa frase. ele revela como essa geração se sente perdida em relação ao trajeto e ao destino: “não sabemos o que nos espera e como vamos chegar a esse lugar que não sabemos onde queremos chegar. É a chance de muita gente ficar pelo caminho, deixando a escola cada vez mais cedo e não almejando mais um curso superior”. Falar sobre o mundo e sobre as expectativas do futuro é um assunto delicado para esses adolescentes, que desabafam sobre pressão e dúvidas.
Além dessas incertezas, estar sob o “teste” dessa nova reforma aplicada, balança ainda mais os sentimentos desses jovens recém imersos. Gabriel veementemente afirma que se sente como “rato de laboratório”. O quinteto que tenta construir o paraquedas de um ovo paira no canto da sala pensando na perspectiva de suas carreiras e de como isso os afetaria. Até um deles desabafar que só escolheu exatas no itinerário para permanecer com o grupo de amigas.
Deborah Caramel Marques, 33, é professora do ensino médio de História, desde 2012. “Para mim, dar aula significa ser parte da transformação do meu país. Cada dia que entro numa sala de aula é como se eu pudesse contribuir na mudança dessa sociedade”, comenta ela que ainda adverte sobre o novo sistema adotado: “cada vez mais, principalmente com a reforma, o objetivo tem sido a formação de uma mão de obra voltada para o mercado de trabalho. Veio para suprir essa necessidade, de formar trabalhadores que já saem do ensino médio direto para esse novo mercado de trabalho. Isso faz com que o ensino acadêmico, das universidades vá perdendo cada vez mais o valor para uma camada mais humilde da sociedade, e sendo então, restrito apenas àqueles que tem a possibilidade de apenas estudar”.
Apesar disso, a professora ainda acredita que é uma mudança válida, que “vem de uma necessidade de repensar o ensino médio no nosso país, para responder uma demanda que existia de repensar o currículo em seu formato. A sociedade mudou e o ensino precisa acompanhar essas mudanças”, e continua: “o problema é a forma como é aplicada”. Na lousa, ela escreve, enquanto explica aos alunos a “Crise do Império Romano”. A professora sustenta a importância da História na vida desses jovens: “esses problemas que são muito anteriores à nossa existência, nós precisamos da História para entendermos as origens deles. A nossa posição hoje no mundo precisa recorrer à origem”. Ela mantém a esperança de que, ao menos, o Novo Ensino Médio possa ajudar os alunos a se aprofundarem nas áreas desejadas. Como o sistema ainda está em processo de construção, ela diz que só o futuro mostrará os resultados.
O jovem futuro historiador expressa sua visão desse mundo na perspectiva da juventude: “percebemos quão sistêmico é o mundo em que vivemos, mesmo estilo de escola, produção, e por isso valorizamos a autenticidade”. E são as diversidades encapsuladas no clássico uniforme azul, sem esconder a montanha-russa que é ser adolescente na manhã de quinta-feira durante a aula de matemática da ‘Drica’, que vão até a mesa da professora receber o resultado da prova bimestral. “Você complicou nessa prova”, diz um dos alunos do 2°A. “Compliquei”, retruca a professora que mal consegue esconder o tom de brincadeira no sorriso. Enquanto outra checa a nota e se anima: “Caramba, foi melhor do que eu imaginava”. Num coro só, a sala pergunta o resultado e ela responde “dois”, ecoando risadas pelos cantos do ambiente.
Julya Maria Rios, é outra aluna do Novo Ensino Médio na mesma escola, e desabafa como foi um choque de realidade entrar nesse novo universo estudantil, principalmente no mundo pós pandemia. “Sinto que o mundo vai me devorar no momento que eu der de cara com ele”, é a fala que expressa seu medo em relação ao futuro, ao mesmo tempo em que questiona: “as escolas não falam o suficiente sobre algo que estamos vivendo, como a saúde mental. Acabamos de sair de dois anos dentro de uma casa sozinhos, acho que esqueceram disso. Isso também afeta muito nosso aprendizado”.
Saúde psicológica e falta de assistência em relação a isso é uma das questões mais apresentadas por esses adolescentes. Mais preocupados do que pensa a generalização da opinião dos adultos, eles querem debater, conversar e serem ouvidos. Os processos biológicos, as oscilações de humor e as variações de hormônios que intensificam o ‘ser adolescente’ não os impede de pensar e falar: saúde mental é uma das lutas dessa geração em busca de uma sociedade melhor.
Necessidade de orientação psicológica nas escolas, principalmente depois da pandemia, é o que mais aparece nas rodas de conversa desses alunos quando se trata de problemas no ambiente escolar. Fabrizzio Garcilasso Toti, 16, é um deles: “Acho que esse novo sistema traz uma pressão muito maior sobre nós, justamente por ficarmos dois anos em casa”. Gabriella Calabrez Ferreira Mora, 17, já no 3° ano, completa: “É definitivamente difícil sair sem um aconselhamento de qual seria meu próximo passo, deveria existir algum aconselhamento próprio da escola para guiar o aluno por essa transição para a vida adulta independente”. O assolar de sentir o mundo te devorando na fala de Julya, ou o parecer do sem rumo do quinteto que se esforça para construir o paraquedas do ovo, expressam a necessidade da tão clamada ajuda que eles comentam.
A professora Adriana Celia Lopes De Souza, 45, a “Drica” de Matemática, dá aula há 17 anos, e demonstra preocupação com o sistema de ensino e a formação dos jovens que passam por ele: “o ensino superior continua com seu formato extremamente seletivo impulsionando um processo de ensino- aprendizagem bem direcionado para os vestibulares, e afastando os alunos que não têm interesse em formação superior. Isso é uma problemática que deve gerar grandes diálogos para melhorar a educação desse país”. E enquanto ela explica na frente da sala do 3°A que na figura do exercício “a apótema é um terço do triângulo equilátero”, numa manhã nublada, os alunos enfileirados se dividem em suas formas de ser e de estar ali. Preocupados ou não com o triângulo, todos podem estar a poucas apótemas de encerrar esse ciclo.
Na aula de história da professora Deborah, sob revisão para a prova, a pergunta ao 1° ano é direta: “O que é democracia?”. Com as apostilas quilométricas nas mesas, eles repassam as páginas procurando o que já sabiam ter ouvido antes. Depois de algumas respostas, a professora esclarece: “Um governo onde o povo participa das decisões políticas”. Com a recente mobilização de artistas na internet clamando aos jovens para tirarem o título de eleitor, Gabriel, em sua postura de bom questionador e futuro estudante de história, rebusca: “O problema é o jovem que não está tirando o título ou o problema é o sistema que nunca ensinou a necessidade de ter política pública de qualidade, um político que os represente e o entendimento sobre o que é política?”. Deborah complementa: “é preciso a formação de um pensamento crítico, para que ao ter o contato com essas informações o indivíduo possa se posicionar de uma forma contundente”. Naquela sala, o conceito de democracia explicado pela professora ainda parece distante. Eles sentem estar longe de fazer parte desse “povo” que participa e que é ouvido.
Nos corredores do colégio, frases nos cartazes em glitter como: “Não sonhe sua vida, viva seu sonho”, estampam as paredes azuis e brancas. O sinal toca e as crianças do segundo andar, com lancheiras dos mais diversos heróis e personagens saem em fila, percorrendo o corrimão com os dedos e descendo as rampas para o pátio. Em algum lugar mais alto, o som de outras crianças cantarolando algo em inglês ecoa pelos andares. São vozes muitas vezes encobertas. Carregado de histórias, o prédio da escola é uma fronteira, que pode ou não ajudar a cruzar sonhos. Sonhos ameaçados pelo próprio sistema. Enquanto personagens dessas histórias, como as professoras Drica e Deborah, se dedicam a realizá-los. E o futuro historiador de São José dos Campos, abraça o sonho de ser parte desse time no futuro.
Ao meio-dia e meia, depois de tantas gambiarras, o paraquedas do ovo acabou se transformando numa nave disforme de isopor e bexigas. Ana, Felipe, Hanna, Ana Luisa e Maryana, o quinteto, lançaram a engenhoca do terceiro andar. Os olhares atentos de todos os alunos e da professora Milena acompanharam o voo. O aviso lá de baixo irrompeu: “Não quebrou”. Aplausos e gritos de alegria em comemoração. Rodeados de balões pelo ambiente e aquecidos pela luz difusa vinda da janela e pelos abraços enlaçados com a intensidade de quem é adolescente, tudo parece dar certo. É a esperança deles, independentemente do que reserva o tão temido futuro. O paraquedas do ensino médio determina um voo incerto, que eles mesmos descobrirão como fazer. Nas gambiarras de bexigas, isopor e fita durex da vida real, eles só saberão se o ovo ficará inteiro no fim do pouso.