O museu das favelas como tentativa de colocar a periferia no centro

Apesar de uma proposta inovadora, moradores das regiões periféricas apresentam dificuldades em acessar o espaço.
por
Marina Laurentino e Victor Trovão
|
31/10/2023

            Ao longo de anos, os museus na cidade de São Paulo foram espaços frequentados majoritariamente pelas classes mais altas. Com a criação inédita de um equipamento cultural que visa colocar a periferia no centro, essa realidade muda com o Museu das Favelas.

Além das produções artísticas da periferia que desenham grande parte do quadro cultural brasileiro, um importante marco comprova essa transformação, a inauguração do Museu das Favelas, que aconteceu em novembro de 2022 na cidade de São Paulo.
 

  • Afinal, o que é o Museu das Favelas?

 

Localizado no centro de São Paulo no bairro de Campos Elíseos, o Museu das Favelas é um espaço da Secretaria da Cultura, Economia e Indústria Criativas de São Paulo em um edifício tombado. O projeto nasceu de um processo colaborativo com pessoas que vivenciam o cotidiano das favelas, por meio de um ambiente de pesquisa, preservação, produção e comunicação das memórias e potências criativas das favelas brasileiras.

 

Black Pipe/Divulgação
Black Pipe/Divulgação

 

O museu é aberto a todos os públicos, e propõe uma viva programação cultural e educativa, contando com exposições, Centro de Referência, Biblioteca e Centro de Empreendedorismo, além de um amplo espaço de convivência no jardim.

Seu propósito principal é realizar um trabalho de reparação social, por meio do protagonismo das pessoas de favela na gestão, na contratação de fornecedores, na criação de rupturas de narrativas, partindo da construção coletiva e compartilhada a ser constituída por meio do relacionamento com a vizinhança, do mapeamento constante de iniciativas que geram impacto social, cultural, econômico nas favelas, escuta ativa e visitas periódicas a espaços e organizações das favelas de São Paulo e do Brasil. 

 

  • Problemáticas na localização e acesso

 

O prédio escolhido para sediar o museu é o Palácio dos Campos Elíseos, um local que historicamente serviu de residência para as figuras políticas do mais alto escalão. A escolha trouxe consigo uma importante questão: sua localização.

Localizado na Avenida Rio Branco, o museu está a 270 metros da Praça Princesa Isabel onde estava o fluxo principal da Cracolândia. A inauguração do museu se deu justamente no momento em que a Prefeitura estava realizando a revitalização da praça e expulsando os usuários de drogas do local. Devido ao fato de o museu estar na parte central da cidade, muitas pessoas periféricas tendem a ter dificuldades em se deslocar para acompanhar as exposições.

Para Fábio Santin, educador do Museu das Favelas, existe uma razão por trás da dificuldade da localização. “A importância desse museu eu acho que está num lugar de principalmente de botar a Favela no centro, seja a Favela no centro do debate, seja a favela no centro das discussões. O centro é essa encruzilhada das quebradas, um museu localizado na zona sul fica muito distante para uma pessoa da zona leste”.

O educador relata que um dos objetivos do museu também é protestar contra a tentativa de higienização do centro e que as pessoas das periferias possam assumir o centro como seu. “A ideia desse museu é fazer com que as pessoas circulem pelo centro, por outros equipamentos culturais, o que é um direito nosso, o povo favelado tem que ter direito à cultura”, complementa. 


 

  • Para quem de fato o museu existe?

 

Funcionando de terça a domingo das 9h às 17h, o museu é aberto a todos os públicos de forma gratuita. No entanto, o acesso ao museu é majoritariamente feito pela população periférica, pessoas que por muitos anos não tinham acesso aos equipamentos culturais da cidade. 

De acordo com o educador, em sua maioria o público do museu é das periferias, no entanto, tudo muda na visita de acordo com os dias da semana. “O público do museu das favelas é principalmente o público de escola pública, é o público de periferia e favela. É muito comum aos finais de semana aqui no Museu das Favelas lotar de favela. E, no meio da semana, o público mais de alta classe que mora aqui pela região”, expõe.

Nesse momento, diversas escolas públicas da cidade estão promovendo passeios ao museu. Dentre eles, está o estudante e morador do Capão Redondo, Nicholas Oliveira, que visitou o espaço pela primeira vez. “A experiência aqui é muito diferente de outros museus que eu já havia ido. As obras são diferentes e acredito que sejam muito importantes para contar a história das favelas do Brasil”, contou.

O estudante reflete sobre a importância do museu, e por outro lado, mostra os desafios de chegar ao local. “Eu gostei muito de vir conhecer o museu, mas a única coisa difícil é que ele é muito longe de casa. Nossa escola é no Capão Redondo e de lá para cá é muito longe. Nós tivemos que alugar um ônibus porque é mais seguro e mais fácil de chegar”, relata. 

 

  • O acesso a arte pela comunidade

 

O acesso à arte é fundamental para o desenvolvimento e enriquecimento cultural de qualquer comunidade, sendo especialmente vital em áreas periféricas. A arte não é apenas uma expressão estética, mas uma ferramenta poderosa para a transformação da identidade social e para o fortalecimento e empoderamento dessas pessoas.

Nas comunidades periféricas, o acesso à arte é muitas vezes limitado devido a desigualdades socioeconômicas e estruturais. No entanto, essa é uma oportunidade crucial para promover a inclusão e reduzir as disparidades culturais. A arte pode ser uma forma de inspiração, educação e mobilização para as pessoas que vivem nessas áreas.

 

  • Negligência estatal no acesso e produção da arte pela periferia

 

O museu representa o reconhecimento tardio da importância das favelas como centros de cultura, criatividade e resistência. Por séculos, as favelas têm sido berços de expressões artísticas únicas, manifestações culturais vibrantes e uma riqueza de histórias que merecem ser celebradas e preservadas.

A demora na criação desse museu é uma representação clara das barreiras estruturais que as comunidades periféricas enfrentam. O educador Paulo Freire argumentava que a falta de acesso à cultura e à educação de qualidade nas periferias era uma manifestação da opressão sistêmica e da exclusão social. Essa situação aumenta o cenário em que as vozes das favelas eram frequentemente silenciadas e suas contribuições superadas.

O Museu das Favelas não é apenas um local para exibir arte e cultura, mas também um espaço de empoderamento e reconhecimento. Ele permite que as pessoas periféricas contem suas próprias histórias, expressem suas perspectivas e afirmem sua identidade cultural. Isso é crucial para romper com estereótipos específicos e destacar a diversidade e a complexidade dessas comunidades.

À medida que o governo municipal finalmente se move em direção à criação de um museu falando das vivências na favela, é importante que essa iniciativa seja acompanhada de um compromisso real com a igualdade e a justiça. Isso envolve não apenas a construção do museu em si, mas também a implementação de políticas que melhorem a qualidade de vida nas favelas, promovam a inclusão social e proporcionem acesso equitativo à educação, saúde e oportunidades econômicas.

 

  • Futuro do Museu das Favelas

 

             Discutir as favelas no Brasil leva-se a discutir o processo de favelização da população brasileira que existe desde o século XIX. Após a abolição da escravatura, os escravos foram segregados da população branca expulsos de viver na cidade para poderem habitar somente nas regiões periféricas e de risco. No decorrer dos anos, a favelização adquiriu proporções inéditas no país, o que aumentou a miséria, a violência e as desigualdades sociais.

De acordo com as últimas pesquisas do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas), o Brasil possui cerca de 6.329 favelas em todo o país, sendo que 6% da população vive em moradias irregulares, processo comum nos grandes centros (maiores capitais) como São Paulo.

Ainda que a existência do museu seja recente, a história das favelas começa desde o início do Brasil. Por meio de um processo caracterizado pela exclusão social e discriminação, a população pobre encontrou moradia em nenhum local senão nas favelas. As comunidades não existem apenas nos morros e nas regiões periféricas das cidades brasileiras, mas sim, em todos os espaços que as pessoas ocupam.  

Sobre a existência do museu, Fábio reflete sobre a ampla rede de conexões na qual está inserido: “Aqui é apenas uma referência. Na verdade, o museu das favelas começa na própria favela, começa nos campinhos, nas vielas, como em outros lugares. Espero que as pessoas faveladas se apropriem desse museu, é importante que a gente entenda que o museu é nosso”.

Espera-se que cada vez mais a população possa acessar não apenas o Museu das Favelas como todos os espaços culturais da cidade. “Eu espero voltar em algum outro dia, e que também, outros estudantes possam vir conhecer o museu, mesmo ele sendo afastado da maioria das favelas da cidade”, reflete Nicholas.

Tags:

Cultura e Entretenimento

path
cultura-entretenimento