As produções do audiovisual brasileiro são protagonizadas majoritariamente por pontos de vista muito específicos, que se repetem ao longo dos séculos. As histórias são contadas por visões na maior parte das vezes branca e masculina, deixando de lado outras perspectivas dos fatos. É o que mostra uma pesquisa da Ancine (Agência Nacional de Cinema) publicada no dia 1 de junho denominada o “Informe Diversidade de Gênero e Raça nos Lançamentos Brasileiros de 2016”.
O documento foi produzido pela Coordenação de Monitoramento de Cinema, Vídeo Doméstico e Vídeo por Demanda, da Superintendência de Análise de Mercado (SAM), e consiste na análise de 142 longas-metragens lançados no ano de 2016, sendo 97 deles obras de ficção, 44 documentários e uma animação. A pesquisa mostrou que 97,2% dos longas foram dirigidos por pessoas brancas, sendo 80,3% por homens 2,1% por homens negros. Nenhum filme em 2016 foi dirigido ou roteirizado por uma mulher negra.
Os homens brancos não se encontram apenas na direção, mas ocupam também as principais funções de liderança no cinema. A pesquisa mostra que 68% deles assinam o roteiro dos filmes de ficção e 63,6% dos documentários. No caso da fotografia de curtas e longas, homens dominam também as funções de direção em 85,2% das produções.
Nas atuações, área importante no que diz respeito à identificação dos grupos minorizados com o que aparece nas telas, somente 40% do elenco geral é feminino, sendo apenas 5% composto por mulheres negras. A análise apontou ainda que em 42,2% dos filmes, não foi identificado nenhum ator ou atriz negros no elenco.
A visão da professora e crítica de cinema
Doutora em Cinema pela Universidade de São Paulo (USP/ECA) sob orientação de Jean-Claude Bernardet, professora Associada nos cursos de Cinema e Audiovisual e Cinema de Animação na Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e presidente da Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Ivonete Pinto acredita que o negro conquistará um espaço maior no audiovisual quando alcançar posições altas na hierarquia, como direção e produção, além da fomentação e incentivo para que cheguem lá.
Ivonete Pinto - presidente da Abraccine
“Eu vejo a importância de ter um negro cineasta na ponta, como diretor, porque eu acho importante que em uma certa hierarquia eles estejam nas cabeças.”
Ivonete analisa também a importância de se ter produtores e diretores negros para que, no momento da formação de elencos e equipes no geral, a diversidade e a representatividade estejam presentes. “Eu acho que deveríamos investir e incentivar mais, tentando colocar negros em posições de hierarquia mais importantes.”
A especialista ainda comentou o caso do cineasta mineiro André Novais, que construiu a sua própria produtora controlando a montagem de filmes e roteiros, podendo chamar cada vez mais negras e negros para fazerem parte da sua equipe.
Além disso, Ivonete ressalta que a crítica cinematográfica, como a própria Abraccine, também precisa de alterações, já que grande parte das análises audiovisuais vem de pessoas brancas. “A própria Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) é uma entidade de brancos, nós temos raros negros. Esse debate na crítica é muito importante, porque os filmes são vistos – mesmo dirigidos por negros – com um ponto de visto branco, então isso também precisa ser mudado’, completou.
“Em relação ao cinema, eu vejo muitas iniciativas fortes nos últimos três anos. Não tem nenhum edital para conseguir recursos que ignorem essa necessidade, então é preciso abrir espaço – mesmo que forçadamente. Temos que ter metas para esses editais pensarem na inserção de mais mulheres e negros no audiovisual”, concluiu.
https://soundcloud.com/joao-guilherme-lima-melo/ivonete-negros-no-audiovisual-brasileiro
O Olhar de uma cineasta negra
Leitora de personalidades como Angela Davis, Beatriz Nascimento, Bell Hooks e Joice Berth (entre muitas outras), Day Rodrigues está há anos no meio audiovisual buscando produzir conteúdos que abram cada vez mais espaço para que vozes negras sejam escutadas.
Com foco na área documental, ela, que é cineasta, pesquisadora, editora, educadora e produtora cultural, já desenvolveu diversos projetos nessa área, como os episódios “Racismo e resistência” (2018) e “Liberdade de expressão x Discurso de Ódio” (2019) da série Quebrando o Tabu, apresentada no GNT, os documentários “Ouro verde - a roda de samba do Marapé” (2012), “Uma geografia das desigualdades” (2019), da Oxfam Brasil, e “Mulheres Negras - Projetos de Mundo” (2016).
Retomando as informações apresentadas pela pesquisa divulgada pela Ancine em 2018, Day entende que o audiovisual no Brasil não atua como uma ilha em relação ao que ocorre no restante do país, e destaca o dado do estudo que revela a não presença de mulher negra como diretora até então. “Isso mostra a disparidade, a desigualdade para o acesso das mulheres negras nessa área. Isso acontece porque o audiovisual reflete muito o que é a nossa sociedade.”
A produtora cultural ressalta também a existência, desde sempre, de cineastas negros brasileiros, mas afirma que tanto leis, como ambientes diferentes estão fazendo com que essas pessoas estejam ainda mais em evidência no cenário atual. “Estamos tendo mais acesso aos espaços de formação, e junto com isso sendo amparados pela lei 10.639/03 e pelas redes sociais, que possibilitaram que pessoas tenham a sua voz ecoando nos espaços hegemônicos.”
Quando perguntada sobre a importância do audiovisual na construção de narrativas complexas, que sejam profundas e que apresentem visões positivas sobre a população negra, Day apresenta um olhar que vai além de uma simples representação em um papel num filme ou numa novela, por exemplo. De acordo com ela, é de suma importância apresentar corpos negros como dotados de subjetividade, de afeto, de intelectualidade, isso para que as histórias de pessoas não brancas deixem de ser sistematicamente apagadas.
Analisando o atual momento, onde os meios e veículos de comunicação passaram a dar mais visibilidade à causa racial depois dos assassinatos de George Floyd, João Pedro e Miguel (entre centenas de outros), Day Rodrigues ressalta que é um momento de necessária reflexão também para o audiovisual brasileiro. “Os espaços hegemônicos terão de começar a se autocriticar e perguntar: cadê as pessoas negras daqui?”