A alimentação escolar brasileira, a famosa merenda, é o maior programa de alimentação escolar no mundo. Com melhorias constantes desde a década de 1950, quando surgiu, oferece um cardápio saudável e nutritivo a crianças da rede pública. Porém, com as escolas fechadas em decorrência da pandemia, avanços de anos podem estar ameaçados e as tentativas de compensação dos governos pode não ser o suficiente.
O Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) é responsável pela distribuição de alimentos e ações alimentares educativas em todas as etapas da educação básica no Brasil. O Pnae é gerenciado pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), encarregado de transferir os recursos para os estados e municípios. Na capital paulista, o gerenciamento do PNAE é de responsabilidade da Coordenadoria de Alimentação Escolar (CODAE) da Secretaria Municipal de Educação. As falhas desse programa para a professora e nutricionista entrevistada pelo Contraponto Digital, Dra. Marcelle Bevilacque Amadil, estão na administração. “Faltam profissionais, têm nutricionistas fiscalizando 30 escolas ao mesmo tempo”, explica Marcelle.
Já os alimentos selecionados e o cardápio escolhido são motivos de elogios para Amadil. As escolas municipais de educação infantil (EMEI) de São Paulo foram o foco na entrevista. A especialista explica que entre os 4 e 5 anos, idade das crianças que estudam nas EMEIs, ainda está se formando a “memória alimentar”. Segundo a especialista, “se você dá muito doce, a criança vai tender ao doce [durante sua vida]”. Apesar de não haver uma alimentação ideal, o melhor é evitar alimentos ultraprocessados e dar preferência aos naturais. Em sua opinião, as EMEIs de São Paulo estão fazendo um bom trabalho incentivando o arroz e feijão no lugar da bolacha.
Tal opinião é compartilhada pela coordenadora de uma EMEI na zona sul, Cláudia Cintra Napole. A comida “bem saborosa” é preparada com alimentos sazonais, 30% deles comprados de agricultores familiares, e observa ainda que houve um aumento dos produtos integrais recebidos, como arroz e macarrão. Perguntada se as crianças gostam do cardápio, ela diz que sim e que ele é trabalhado na sala de aula de maneira lúdica, com histórias e prática com degustações, para que a criança aceite a dieta ofertada. Todos estes trabalhos, porém, estão parados desde março, quando a cidade de São Paulo decretou oficialmente quarentena.
Desde então, a escola está aberta para tirar dúvidas de pais atrás de benefícios como o Cartão Merenda. O prefeito de São Paulo, Bruno Covas, criou o benefício para todas escolas da rede municipal, disponibilizando R$ 55,00 por criança. Foram distribuídos 600 mil cartões até o mês de junho. Todos os estudantes matriculados regularmente nas Unidades Educacionais da Rede Direta e Parceira da Secretaria Municipal de Educação têm direito. O do auxílio muda de acordo com a idade do aluno: R$ 101,00 para creche, R$ 63,00 para EMEI e R$ 55,00 para EMEF. O cartão valerá durante todo o período de pandemia. Inicialmente, era direcionado a crianças cujas famílias estavam cadastradas no Bolsa Família. A Defensoria Pública de São Paulo e o Ministério Público fizeram o pedido a Justiça para que o auxilío fosse geral.
Na série “Fome na Pandemia”, da Folha de São Paulo, houve relatos de famílias que não conseguiam alimentar seus filhos. A criança que tinha até 5 refeições por dia passava para uma dieta de arroz puro. As crianças não entendendo a situação, pediam alimentos que consumiam nas escolas: frutas, bisnaguinhas, sucos, comidas variadas. Márcio Pereira da Silva, 40, pedreiro e pai de seis filhos conta a Folha que o filho mais novo não compreende a mudança no cardápio: “Diz todo dia: ‘Pai eu quero danone. Pai, quero maçã’. Ontem bem cedo estava pedindo o quê? Morango. Eu digo: ‘Ah, meu filho, você não tá na creche não, você tá em casa. Na creche você tinha essas coisas’”.
Em entrevista para o Sinesp (Sindicato Especialistas Ensino Público São Paulo), Márcia Simões, vice-presidente do Conselho de Alimentação Escolar, afirma que os valores do benefício não é suficiente.
Projetos do governo para solucionar o problema
Existem vários projetos de lei para a implementação de algum apoio alimentar para os alunos enquanto estão afastados das aulas. Na câmara municipal, tramitam dois. O primeiro “institui o cartão alimentação para famílias com alunos na rede pública municipal de ensino e de baixa renda, durante a situação de emergência e calamidade em vigor” e foi proposto pelos vereadores Alessandro Guedes, Alfredinho, Antonia Donato, Arselino Tatto, Eduardo Suplicy, Jair Tatto, Juliana Cardoso, Reis e Senival Moura, todos do Partidos dos Trabalhadores (PT). O segundo é do Vereador Celso Giannazi, do PSOL, que “cria a bolsa alimentação para estudantes da rede direta e indireta de ensino da cidade de São Paulo durante a suspensão temporária e emergencial das aulas para prevenção de contágio pelo coronavírus (COVID-19)”.
No âmbito nacional, no dia 7 de abril o presidente Jair Bolsonaro sancionou a Lei de caráter emergencial que permite “a distribuição de gêneros alimentícios adquiridos com recursos do Programa Nacional de Alimentação Escolar aos pais ou responsáveis dos estudantes das escolas públicas de educação básica”. O repasse da verba para o estado e municípios foi garantido mesmo com a suspensão das aulas presenciais. Por conta disso, deverão ser distribuídos para os alunos e as famílias.
Para a doutora Marcelle, a alimentação da merenda não é um problema a ser resolvido. Segundo ela, os maiores obstáculos estão na administração, que enfrentam dificuldade no repasse de verbas e no seu desvio. Um dos casos mais escandalosos de corrupção na merenda escolar foi em 2018 quando deflagrou a Operação Alba Branca que investigava a “Máfia da Merenda”. Foram investigadas várias prefeituras e do governo paulista. De acordo com o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) de RIbeirão Preto, foram desviados R$ 7 milhões da merenda entre 2013 a 2015.
Na mesma época a Alesp aprovou a criação da Comissão Comissão Parlamentar (CPI) da Merenda para investigar contratos entre as escolas e as empresas que fornecem a alimentação das crianças para descobrir casos de corrupção. Dois anos depois a PF deflagra mais uma operação, a Prato Feito.
Em janeiro de 2020 a investigação chegava na reta final com 154 indiciados e por volta de R$ 1,6 bilhão desviados da merenda escolas no estado de São Paulo. O esquema trocava a proteína por pipoca, carne por ovos e serviam mais arroz do que outros alimentos. Além da merenda, as empresas envolvidas no esquema também forneciam material escolar, uniforme e o serviço de limpeza.
Em 2014 o Brasil tinha alcançado o marco histórico de sair oficialmente do Mapa da Fome da ONU, porém, segundo previsões de especialistas e dados, o Brasil voltará a fazer parte do mapa. Nos últimos anos houve muitos retrocessos nas políticas de combate à fome. De 2016 a 2019, a população brasileira afetada pela insegurança alimentar moderada e aguda aumentou de 37,5 milhões para 43,1 milhões (segundo matéria do Brasil de Fato) e durante este período de crise junto a pandemia, a fome é um grande problema principalmente para famílias que dependiam da merenda escolar para alimentar seus filhos.
Imagem: Sergio Amaral