Por Iris de Freitas
Solidão, vazio e impotência. Estes foram os sentimentos mais experimentados durante a pandemia. Um período cheio de perdas, distanciamento físico e emocional. Considerado como uma válvula de escape, o entretenimento passou a ser peça essencial para o enfrentamento de tempos sombrios. Muitas vezes, o único companheiro era um bom filme, uma série, um vídeo, uma música ou um bom livro. Ficamos cada vez mais distantes uns dos outros e mais próximos do mundo virtual. Não só em uma questão atípica como a vivida devido o Covid-19, mas também no cotidiano solitário e corrido do cidadão. O entretenimento muitas vezes é o único companheiro, e via de regra ele permite que o homem deixe de viver a realidade triste e adentre nos mundos fantásticos e inalcançáveis da ficção.
Desde tempos passados, espaços como o Coliseu, construído no século I na Roma Antiga, eram utilizados para entreter a população por meio de lutas de gladiadores ou envolvendo animais. A política da época era conhecida como "Pão e Circo" pois era desta forma que o governo agia, distraía a população e a mantinha alimentada para que assim não se revoltasse contra o Estado. As variadas formas de passatempo existentes podem ser vistas atualmente como mais significativas se interpretadas a fundo. Com a chegada da pandemia da Covid-19, muitas vezes, a única coisa que conseguia-se fazer, devido ao isolamento social, era ler um livro, assistir televisão, jogar algo etc., o que acabou tornando essas simples ações em algo significante para enfrentar a realidade. Como feito, como na antiga Roma, a população utilizou os meios disponíveis para esquecer o contexto marcado por muitas mortes e, de alguma forma, aproveitar o tempo.
No que diz respeito a isso, a jovem Júlia Maciel, de 18 anos, possui uma página no Instagram onde posta informações sobre livros (@_julivros). A menina conta com mais de 30 mil seguidores que, assim como ela, são apaixonados pela leitura. Júlia publica diversos conteúdos relacionados a este mundo da escrita, como resenhas, dicas de livros e similares. A página proporcionou à Júlia parcerias com editoras, evidenciando a magnitude que tomou sua fascinação por este universo. Ela conta um pouco sobre sua relação com a leitura neste período pandêmico e diz que eles eram sua porta para o mundo exterior e que mesmo sem mais o isolamento social, eles "sempre serão um escape, para novos sentimentos e vivências.”
Com a pandemia, a utilização dos meios de entretenimento apenas aumentou. A empresa de comunicação francesa Havas Group em parceria com a Cannes Lions publicou um estudo em maio de 2019, intitulado “O Futuro do Entretenimento”, que discute as transformações das pessoas em relação aos conteúdos e como as empresas podem acompanhar estas mudanças. De acordo com a pesquisa realizada, 83% dos consumidores consideram o entretenimento uma necessidade vital. Dos entrevistados de 13 a 17 anos, 55% afirma que sente a necessidade de também entreter seus amigos de maneira virtual, postando, enviando vídeos etc. Além dos dados apontados, a CEO da Havas Group, Yannick Bolloré, relata que, na vida da maior parte dos consumidores, o entretenimento não é mais algo de uso eventual, mas significa o ramo central dos seus dia-a-dias. Isso é muito bom para a indústria em questão, o que fez com que o mercado de serviços de streaming, por exemplo, crescesse. Segundo dados da Motion Pictures Association, publicados pela Forbes, as assinaturas subiram em 26% no ano de 2020, início da pandemia. Isso significa a criação de 232 milhões de novas contas em comparação a 2019. E o Brasil não está fora deste quadro.
Um estudo realizado pela empresa de redes virtuais privada CompariTech mostra que o Brasil é um forte consumidor de conteúdo digital e ocupa o segundo lugar no ranking de assinantes da Netflix, que foi um dos primeiros serviços de streaming a chegar aqui. Por outro lado, o país é o 5° maior usuário de pirataria no mundo, foram 4,5 bilhões de streams e downloads ilegais de janeiro a setembro de 2021, de acordo com a empresa de cibersegurança americana, State of the Internet Akamai. Com isso, uma possível leitura destes dados é a de que pessoas dos mais diversos poderes aquisitivos consomem conteúdos de curta e longa metragem. Essa forma de entretenimento cinematográfico é apenas uma dentre muitas, o que faz com que o lazer midiático atinja diversos públicos, desde os mais cultos e conservadores até os mais descontraídos. Mesmo assim, a literatura ganhou espaço na pandemia.
Júlia conta um pouco sobre como surgiu seu amor pelos livros. Ela evidencia a forte influência que sua família representou neste quesito, vivendo em uma casa repleta de livros e com leituras feitas por seus familiares, a menina relata que isso despertou sua paixão por este universo e conclui: "percebi que existia um mundo fantástico a ser descoberto através das páginas dos livros e percebi que isso realmente me fazia bem.”
A psicóloga Patrícia Pereira do Amaral explica um pouco sobre este bem-estar que o entretenimento proporciona às pessoas e diz que esta busca por entretenimentos faz com que as pessoas possam ter um momento de lazer e relaxamento, proporcionando assim, a fuga de uma realidade muitas vezes exaustiva. Essa utilização pode ser também para adquirir informações e se manter atualizado, para que assim, o cidadão sinta que está utilizando seu tempo de forma útil. Essa necessidade da população de se manter atualizada a todo momento é reflexo do mundo vigente que, como afirma o sociólogo Zygmunt Bauman em sua obra, é uma Moderninade Líquida repleta de efemeridade e rapidez.
Com esta realidade efêmera, a pressão por estar a par de tudo é causa de insegurança e ansiedade, ainda mais na população jovem. Em interação com outras pessoas, assuntos corriqueiros giram em torno das mídias. Apenas algumas horas sem checar o celular ou computador pode fazer com que alguém fique excluído deste grupo social, apontando a importância destes veículos em um mundo modernizado. A fuga da realidade, que se considera o entretenimento, hoje em dia é muito mais relevante do que tempos atrás, não somente apenas um lazer.
Em relação a isso, Guilherme Dürand,19 anos, estudante de cursinho pré-vestibular, pretende cursar cinema e audiovisual e possui uma conta na rede social Letterboxd, onde publica críticas de filmes, relata um pouco sobre essa ligação do cinema com o escape do real. Mesmo com a utilização populacional desta ferramenta como forma de relaxamento, há também uma percepção do mundo vigente, onde pautas LGBTQIA+, raciais e outras ganham palco no cinema mainstream, como ele mesmo diz e ainda conclui: “por mais que um filme faça seu espectador esquecer de sua realidade enquanto o assiste, ele pode ainda assim levantar questionamentos e pensamentos que o façam refletir sobre uma realidade que apesar de poder não ser a dele, existe.”
A alegria momentânea que o espectador sente ao assistir algo, cria um ciclo vicioso, onde sempre há uma procura por coisas novas e isso é o que movimenta esta indústria. Hollywood, por exemplo, fatura bilhões de dólares por ano, evidenciando o poder deste mercado. Assim, com altos investimentos, é inegável que este ramo é de padrão elevado, fazendo com que jovens como Guilherme se sintam maravilhados. Ele conta que gosta de poder perceber a visão de mundo que cada autor expressa em sua obra, que como o jovem diz, "é uma parcela do mundo desconhecida", fazendo com que ele possa se teleportar por meio de uma tela para um outro ambiente, outra cultura ou época. Guilherme ainda complementa: "despertando um leque de sensações e pensamentos que só a mídia audiovisual muitas vezes pode proporcionar.”
Vilém Flusser, filósofo Checo-brasileiro, em sua obra, explica sobre essas tecnoimagens afirmando que elas claramente são programadas para fazer com que as pessoas pensem de determinada forma acerca de um assunto, propagando uma lógica pré-estabelecida. E as imagens técnicas, que estão por toda parte, surgem como artigos que facilitam a compreensão, provocando por fim, o convencimento geral. Em paralelo, leva-se em questão o mundo do entretenimento, que além de extrair o indivíduo de sua vida real, impõe a ele uma maneira de pensar escolhida pelo autor da peça.
O filme 1984, de George Orwell, ilustra um pouco deste mundo alienado que Flusser entende como diagnóstico da atualidade. Em uma realidade nem tão distópica, em um período de guerra, residentes de um país totalitário são constantemente vigiados e manipulados pela mídia local. A população é levada a crer que seu país está combatendo verdadeiros inimigos que ameaçam o bem-estar social. O controle do que era televisionado era feito de maneira a fazer com que todos vissem somente a visão que o governo queria passar, levando as pessoas a acreditarem que estava tudo bem, que estavam fazendo somente o necessário para o melhor da pátria e endeusando seu líder, o Grande Irmão, que era representado como a figura de um olho espião. Uma repetição desmesurada dos estereótipos do mundo criado pela mídia.
O entretenimento, hoje em dia, é algo significativo na vida de todos, mas, se não houver um certo filtro com o que se assiste ou a quantidade deste consumo, pode virar um problema sério para a sociedade como um todo. A fuga da realidade proporcionada pelo entretenimento pode trazer muitos benefícios para a saúde mental, mas também gerar outros em variados aspectos. A solidão sentida pode ir embora, mas somente de maneira efêmera e como relata a psicóloga Patrícia: "o mau uso das mídias sociais acarreta também prejuízos aos indivíduos da sociedade, pois encontramos várias pessoas que são dependentes, uma extensão de seu celular, diminuindo a interação social e a dificuldade na comunicação.” Sem o contato com o mundo real, vamos acabar vivendo que nem a Alice, no País das Maravilhas.