Entre os dias 17 e 19 de junho – de sexta à domingo –, ocorreu no Sambódromo do Anhembi, em São Paulo, o Cena 2K22, maior festival de rap e trap do Brasil. Com um line-up envolvendo artistas nacionais e internacionais, o rapper Djonga foi destaque em meio às apresentações de sábado, e levantou o astral do evento com uma performance enérgica e fora de série. Fora de série em todos os sentidos.
Cantando os principais hits da sua discografia, Djonga finalizou o seu show com o que é, provavelmente, a composição mais importante de sua carreira. Sem anúncio, o instrumental cessa e um guitarrista, posicionado ao fundo do palco, começa a dedilhar as cordas do instrumento sob a melodia de Olho do Tigre. Instantaneamente, a plateia identifica a canção e vai à delírio. Lentamente, o musicista se aproxima da frente do palco, trocando de lugar com o artista. Porém, assim que finalmente alcança a ponta, ele para de tocar, segura a guitarra com as duas mãos e a expõe ao público apenas para, logo depois, destruí-la totalmente ao golpeá-la contra o chão.
Sem muito anúncio, o público entende o apelo e puxa um grito de protesto: “Ei, Bolsonaro, vai tomar no cu!”, aderido por todos. No entanto, enganava-se quem achava que esse era o único momento de choque que Djonga tinha a oferecer. Alguns segundos depois, assim que a melodia da música voltava a tocar, o artista colocava no palco um dublê com o corpo completamente em chamas. Ele, que vestia roupas de proteção que o cobriam por inteiro, se movimentava de um lado para o outro, atordoado, para depois se jogar para fora do palanque, deitar ao chão e uma equipe de profissionais segurando extintores de incêndio apagarem o fogo. A mensagem estava dada, principalmente após Djonga começar a recitar seus versos e gritar a plenos pulmões, junto à plateia, a famosa frase que prenunciou seu sucesso: “Fogo nos racistas!”.
Desde que o lema “fogo nos racistas” foi primeiramente pronunciado, no lançamento da faixa em 2017 para a série Perfil, do selo musical Pineapple StormTV, Djonga dividiu opiniões. Ao passo que, para alguns, a frase se tornou um símbolo de orgulho, resistência e luta contra o racismo e a discriminação, outros a enxergam como nociva ao debate, acusando-a de instigar ainda mais ódio e, desse modo, abaixar-se ao nível dos próprios racistas. E é claro que, ao artista transformar o discurso simbólico em literal em frente a uma plateia enorme e a milhares de pessoas que acompanhavam a transmissão ao vivo, esse debate retornaria com ferro e fogo.
O que o público pensa?
Em um tweet feito pelo jornal Metrópoles, noticiando o fato, podem-se encontrar comentários diversos. “Djonga é um dos maiores artistas da atualidade”, afirma um internauta, que aparece no topo da página. “Apologia à violência já é permitido”, questiona outra pessoa, que aparece logo abaixo. Figuras conhecidas na direita, como o deputado federal Hélio Lopes, repudiaram o ato, enquanto outros rappers da cena musical do hip-hop demonstraram apoio e admiração.
Se no nicho das redes sociais os internautas se dividiram, para Mykael Nazaré, músico e designer preto, que foi até o Cena 2K22 no dia de sábado e assistiu presencialmente ao show, a conclusão é indiscutível. “A performance foi muito boa para o tipo de palco e festival que nós estávamos. A única repercussão negativa que ouvi das pessoas foi que não dava para ouvir direito o que o Djonga cantou, porque ele estava gritando. Mas eu acredito que seja parte da performance e do momento em que estávamos: tinha o ‘moshpit’ acontecendo, tinha um dublê pegando fogo... Então a energia estava muito alta para ele não cantar dessa forma”, conta.
O músico rasga elogios para toda a apresentação, exaltando tanto a escolha de Djonga por criar uma imagem “chocante, mas maravilhosa”, quanto o trabalho de seus dançarinos de apoio. Contudo, para além dos aspectos técnicos, Mykael, que acompanha o artista desde o seu álbum Heresia, compreende a relevância das suas palavras de ordem: “Acredito que esse lema seja muito importante porque dá incentivo para que jovens negros enfrentem o racismo, não deixem que a história seja repetida e encontrem no artista a representação e força necessárias para continuar carregando sua ancestralidade”, ele disserta.
Por outro lado, Yhorane Lopes, que assistiu à performance pela transmissão nas redes sociais, se abriu e explicou um pouco de sua conexão emocional com a frase: “Como mulher negra, não existe como não me sentir representada. Djonga faz arte mas consegue fortemente exibir o que defende. Não só faz hip-hop, mas levanta diversas questões importantíssimas para a cultura negra e expressa com precisão uma série de gatilhos causados pelo racismo. ‘Fogo nos racistas’ vai além do lema, é luta diária de quem nasce preto. Mas como ele mesmo diz, não é todo mundo que escuta que entende ou defende a causa, porém posso dizer com certeza que quem vive essa realidade sente na pele as letras do rei”, relata.
Já Leila Lopes, mulher, preta, que acompanhou a performance pelas redes sociais, dá sua opinião sobre o desconforto que algumas pessoas têm com o lema. “Vivemos em um país racista e infelizmente existe um racismo velado na sociedade. Então, quando eles vêem negros gritando frases que empoderam sua gente, isso causa desconforto e aí que essa música se torna ainda mais poderosa e importante, Essa música se tornou uma arma necessária contra os racistas”, atesta.
A importância de ‘fogo nos racistas’
Porém, uma pergunta ainda fica: por que gritar ‘fogo nos racistas’ incomoda tanto? Para Sérgio Guerra, doutor em história, preto e nordestino, uma das principais artimanhas dos colonizadores, para descredibilizar um movimento, é a intitulação de marginalidade: a taxação de ‘violentos’ frente a uma tentativa genuína de autodefesa. “Não existe violência do escravo para o escravizador. Porque a violência que está instruída é a da repressão contínua. Então, o que você tem são movimentos de resistência a essa violência institucional. Não há violência do mais fraco contra o mais forte”, comenta.
Essa é uma dinâmica de poder que perpassa toda a obra de Djonga. Lucas Ventura, membro do coletivo Poli Negra da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), diz que enxerga a violência do colonizador refletida em O Menino Que Queria Ser Deus, segundo álbum de estúdio do rapper. Lucas comenta sobre a faixa Corra, e cita especificamente o trecho: “Eu disse: Óh como cê chega na minha terra. Ele responde: ‘Quem disse que a terra é sua?’”. Aqui, surge o processo que ocorreu na era colonial, com a tomada de terra de indígenas, chegada de africanos escravizados e a exploração dos europeus. “Processo esse que ainda ocorre em favelas e terras demarcadas para quilombos e aldeias”, Ventura reitera.
Ao ser perguntado sobre a performance de Djonga no Cena 2K22, Ventura responde que “é sempre muito importante pra comunidade, independente do estilo ou do gosto pessoal de cada um, quando uma figura ganha tanta representação e ela pertence a alguma minoria política”. Segundo ele, uma pessoa negra tem todo direito de não gostar do artista, mas é necessário que, mesmo assim, esse indivíduo reconheça no Djonga uma vitória para a comunidade preta. “Já estrutura da sociedade atual ainda oprime negros de chegarem ao topo, é preciso entender que feitos como o do cantor de rap acontecem somente após a quebra de diversas barreiras”, ele ilustra.
Em relação a literariedade que Djonga evoca ao colocar um dublê em chamas, Ventura fala que a parte visual e estética da Música vêm ganhando cada vez mais relevância no cenário, a partir do momento que só vender discos não se torna suficiente. As mídias visuais também cresceram, sendo assim, produzir um vídeo bom ou um show bom é tão crucial à experiência quanto a parte sonora.
“Como toda manifestação artística, o que Djonga fez foi elevar a performance para um nível que ninguém havia feito antes. ‘Fogo nos racistas’ não foi inventado por ele e nem propagado somente por ele. Entretanto, uma apresentação estética daquele nível em que colocou-se fogo em alguém para trazer à vida essa metáfora, isso ninguém tinha feito. Choca, e por isso cumpre alguma função no papel que o artista colocou para sua performance, dentro da arte, que historicamente têm o encargo de criar atritos para promover discussão”, explica.
Aprofundando-se mais na polêmica, Lucas pensa que, talvez, esse debate fale mais das pessoas que se irritam com artista do que propriamente o que ele diz: “Em geral, essa discussão é levantada por pessoas que se sentem agredidas com ‘fogo nos racista’ e nos acusam de propagar violência contra outros. A repercussão da performance serve para que essas pessoas que se sentem agredidas repensem o porquê desse sentimento”.
É claro que, com uma abordagem tão incisiva, é inevitável que existam pessoas que enxerguem a manifestação de Djonga como extremista. Entretanto, o membro do coletivo afirma que qualquer coisa pode ser considerada extremista, a depender da prioridade que cada um dá à situação e a quem essa ‘ameaça’ atinge. “Óbvio que ‘fogo nos racistas’ é extremismo para quem não faz parte da minoria social que tem furadeiras, guarda chuvas, vassouras sendo confundidas com armas e sendo posteriormente alvejadas. E o fato de levantarem esse debate toda vez, enquanto movimento de massa, em vez de colaborar diariamente num esforço antirracista, talvez mostre de que lado esses indivíduos estão nessa briga”, declara Ventura.
Por fim, Ventura reforça o valor da arte de Djonga e reconhece que, ao menos, a polêmica trouxe de volta o tema racial para o debate público. “O lema ‘fogo nos racistas’, apoiado por alguns que defendem um combate frontal do racismo e rejeitado por outros – mais anti punitivistas, que veem nessa frase de ordem uma possível agressão que deixará o próprio racista na defensiva e não promoverá diálogo –, é sem dúvida, um marco do artista, que por si só já levanta um debate relevante”, conclui.