Grupos políticos ligados à extrema direita têm rejeitado a existência da fome no Brasil, alegando que o problema já está erradicado. Pesquisadores alertam para a gravidade da situação apontando para interesses políticos e econômicos por trás disso.
A disseminação de teorias conspiratórias nas redes sociais vem potencializando e trazendo visibilidade a essas mentiras, alimentando discursos de extremistas e dificultando a luta contra a fome no país.
Em grupos de extrema direita no Telegram, usuários dizem que a fome no país é “uma falácia da esquerda”. Um usuário descreve a fome no país como “um projeto de uma esquerda internacional.
Confrontados com evidências da existência da fome no país, a atitude de usuários desses grupos é de desdém. “O gás aumentou? A fome voltou no nordeste? Faz o L.” dispara um usuário.
Nesses grupos, a existência da fome é justificada por “pessoas preguiçosas” que não querem trabalhar e desejam “ganhar tudo de mão beijada pelo Estado”.
Contradizendo essas declarações, dados coletados pela Rede Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional) demonstram que entre 2020 e 2022, a quantidade de brasileiros em situação de insegurança alimentar grave passou de 19 milhões para 33,1 milhões, reinserindo o país para no mapa da fome da Organização das Nações Unidas.
Ao decorrer dos quatro anos do governo Bolsonaro, ocorreram diversas vezes posturas com viés de negação e minimização da fome.
Em agosto de 2019, Bolsonaro declarou em um de seus cafés da manhã com jornalistas que “é mentira essa história que o Brasil passa fome”.
O ex-presidente também disse em agosto de 2021 em uma de suas transmissões ao vivo nas redes sociais que “não existe mais desnutrição no Brasil” e que “não se vê mais gente magra como antigamente”.
Paulo Guedes, ex-ministro da economia, durante um evento da Fenabreve (Federação Nacional da Distribuição de Veículos Automotores) no dia 21 de setembro de 2022, novamente afirmou que “33 milhões de pessoas passando fome é mentira”.
Em março de 2021, Guedes também chegou a declarar em uma reunião com ministros que a fome no Brasil era “conversa fiada” e que “que não se vê gente, mesmo que pobre, com aparência de subalimentado”.
Deputado federal por São Paulo, Eduardo Bolsonaro afirmou em uma entrevista que “não existe fome no Brasil porque falta gente pra morrer”.
Também deputada federal, Carla Zambeli afirmou em entrevista em maio de 2021 que a fome era uma narrativa inventada pela esquerda.
Um ano antes, Olavo de Carvalho, mentor político da extrema direita, publicou em suas redes sociais que a fome era uma propaganda da esquerda para angariar votos e “manter as pessoas na dependência do Estado”.
O governo de Bolsonaro e seus aliados não se limitou apenas em declarações que rejeitavam a existência da fome, mas também praticou medidas de sucateamento das políticas que buscavam combatê-la.
Logo ao assumir a presidência do país, em janeiro de 2019, o governo Bolsonaro extinguiu o Consea, sendo reativado em março de 2023 durante o governo Lula.
O ex-presidente também foi responsável por cortes de orçamento relacionados a áreas como agricultura familiar e distribuição de alimentos.
Essas políticas utilizadas pelo governo Bolsonaro, entretanto, possuem suas origens em práticas com antecedentes históricos, datadas diretamente do período da ditadura militar.
Negação da fome na ditadura militar
Durante o final da década de 1970 e começo dos anos 80, o sertão nordestino passou por sua pior seca de todo o século XX. No auge da crise, 10 milhões de nordestinos já haviam sido impactados pelos efeitos da seca.
Entretanto, o regime ditatorial proibia que a imprensa divulgasse quaisquer matérias que expusessem os efeitos da fome no país, até mesmo proibindo que a palavra fosse utilizada nas redações.
Essas políticas de negação da fome, tanto na ditadura militar, quanto no governo Bolsonaro, buscam passar uma aparência de estabilidade econômica no país, rotulando quem passa fome de “preguiçoso” ou “incapaz”.
Eduardo Silva, professor de sociologia formado pela Unicamp, defende que os movimentos de invisibilização da existência da fome no país, estão relacionados a projetos que têm o objetivo de desacreditar demais questões além da fome. “A negação da fome é acima de tudo uma negação dos direitos humanos” afirma Silva.
De acordo com a pesquisadora do IBGE Thaís Oliveira, a negação da fome chancela um modelo político, econômico e ideológico. “Assumir sua existência é assumir que algo neste modelo precisa ser revisto”, isso, de acordo com ela, mexe com toda a dinâmica que é confortável para diversos núcleos de poder.
A respeito dos interesses políticos e econômicos, Thaís afirmou que negar a fome e torná-la seu cargo chefe é “historicamente usado como capital político” (um ponto sensível, considerando que o Brasil é o terceiro maior produtor de alimentos do mundo). A pesquisadora aponta para o quase absurdo que é pensar que um país produtor de alimentos tão relevante no cenário mundial, tenha mais de 33 milhões de pessoas com insegurança alimentar, de moderada a grave.
Olhando para a imagem do país internacionalmente, isso pode significar menos contratos e negócios com importantes parceiros econômicos para o país e seus empresários.
A divulgação dessas ideias, entretanto, por meio da internet e redes sociais, consegue atingir cada vez mais pessoas, usando o ambiente online como uma ferramenta de divulgação de massa dessas políticas.
Buscando explicar o motivo da internet ser um ambiente tão fértil para a disseminação de mentiras e teorias da conspiração, Silvio Mieli, professor na Pontifícia Universidade Católica, cita o livro Terra Arrasada de Jonathan Crary. “As redes sociais possuem uma resistência profunda a responsabilidades comunitárias” disserta Mieli.
Ainda segundo Mieli, o individualismo fomentado pelas redes sociais permite que cada um crie e divulgue as suas próprias verdades, abrindo margem para o surgimento de versões de “quinta categoria”.
A contenção da desinformação
A alternativa proposta por Silvio para a contenção da divulgação de projetos destrutivos na internet, passa por uma politização das redes, uma regulamentação que instaure freios e contramedidas para a expansão de discursos negacionistas.
Seguindo na mesma linha, Thaís argumenta que pela mídia informativa ser um espaço importante de poder, debate e mediações de conflito, é uma ferramenta valiosa para dar visibilidade àquilo que não agrada ver ou ouvir, mas é fundamental que a sociedade civil, governo e políticos saibam, para que sejam aplicadas corretamente políticas públicas voltadas para o tema. Até para que a própria sociedade civil pressione seus representantes a se organizar para solucionar o problema.
Para isso, a imprensa deve estar sempre atenta, corajosa e disposta, para trazer esse assunto para a pauta, independentemente de quem de qual grupo esteja ocupando os espaços de poder. Para tal, a imprensa deve ser livre, isenta e respeitada.