O Superior Tribunal de Justiça estabeleceu, no começo de 2022, que a Lei Maria da Penha deveria compreender não só mulheres cis. Na teoria, isso é um passo importante no mapeamento da violência doméstica, suporte e proteção de mulheres trans. Na prática, muita coisa ainda precisa mudar.
Segundo os 15 últimos relatórios anuais da ONG Transgender Europe, o Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo. E São Paulo, o estado mais violento da nação, com um aumento de 73% da violência contra mulheres trans em um período de um ano, conforme aponta o dossiê da Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil (Antra).
Além disso, em 2023, cerca de 12 pessoas trans morriam por mês no Brasil, totalizando ao final do período 145 assassinatos, dos quais 136 foram cometidos contra mulheres. De 2017 até o ano passado, 1024 travestis e mulheres trans morreram assassinadas.
Ainda segundo o dossiê, esta parcela da população tem até 32 vezes mais chance de serem atacadas do que homens trans, pessoas transmasculinastrans masculinas e não binárias.
Para além da problemática do gênero, questões raciais e de classe entram como agravante, já que a maior parte destas vítimas são negras, pertencentes também às classes mais baixas da sociedade.
Por isso, apesar do importante papel atribuído à Lei Maria da Penha, sobretudo na proteção de mulheres contra a violência física, sexual, psicológica, patrimonial ou moral, é notório que muitas denúncias e casos acabam ficando por baixo dos panos do machismo e da LGBTQAPN+fobia.
Mercado de Trabalho
O gênero feminino, independentemente do sexo biológico, ainda é um fator determinante no que se diz respeito à exposição a violência e discriminação, em qualquer época e setor da população.
No entanto, a realidade vivenciada de maneira cada vez mais perigosa por mulheres trans traz consigo questões ainda mais complexas, a começar pelo mercado de trabalho.
Por mais que a população feminina ainda ganhe 21% a menos do que os homens, mulheres trans ganham 17% a menos do que as cis. Ou seja, ganham 38% abaixo da média masculina nos mesmos cargos. Em muitos casos, não restam alternativas senão recorrer à prostituição. É justamente neste meio que 79,5% delas já foram atacadas, conforme os registros do Grupo Gay da Bahia (GGB) no período de 2002 a 2016.
Ódio e repulsa às diferenças
A Antra também nos conta que a aparência aparece como ponto importante ao analisarmos a violência praticada contra transgêneros. Estéticas e aparências não normativas são apontadas como fatores de risco.
A frequente incitação de ódio praticada por grupos fundamentalistas religiosos, crescente nos últimos 8 anos, também ajuda a propagar estereótipos de quem “merece” mais ou menos ser atacado.
Mapeamento e subnotificação
Os crimes de transfobia acontecem, em grande maioria, em locais públicos, mostrando a mínima preocupação dos agressores com a punição ou exposição de seus ataques.
Estes criminosos normalmente são pessoas desconhecidas da vítima, quase sempre as ferindo com grande crueldade. As armas de fogo são as mais usadas, seguidas pelas armas brancas (49,8% e 23,6%, respectivamente), a maioria com uma variação de 2 a 5 golpes ou disparos.
A partir das análises dos casos, em 2023, pelo menos 54% dos assassinatos foram cometidos com uso excessivo de violência. Isso inclui múltiplos golpes e degolamento, por exemplo, Além disso, houve grande associação de crimes com mais de uma forma brutal de violência. Vítimas tiveram seus corpos arrastados pela rua e grande número de golpes em regiões como cabeça, seios e genitais. Este dado denota um elemento facilmente identificado em feminicídios e outros crimes de ódio, e denuncia a transfobia gritante que ainda assombra o país.
É importante entender como a justiça contribui para que isso aconteça, de diferentes formas e em diferentes níveis. Isso porque as práticas policiais e judiciais ainda se caracterizam pela falta de rigor na investigação, identificação e prisão dos suspeitos.
Existem casos de assassinato por transfobia sendo registrados como "morte por causas naturais" e ocorrências de homicídio tentado registrados como “lesão corporal”. Isso minimiza a violência de forma errônea e ignora a própria classificação da tentativa de assassinato, conta o dossiê da Antra.
Para piorar, as vítimas são descritas frequentemente como indivíduos do sexo masculino, aumentando a subnotificação e dificultando o verdadeiro mapeamento do cenário de ataques às mulheres trans. A situação é tão crítica que é a mídia quem tem cumprido este papel que, na verdade, caberia ao governo. A imprensa ocupou-se em notificar cerca de 80% dos casos utilizando as denominações e pronomes corretos.
Por fim, mulheres atacadas ou que presenciam cenas de violência são pouco acolhidas, por vezes até desacreditadas pelos órgãos de segurança - o que é ainda mais recorrente em atentados cometidos em meio à prostituição.
Orientação
As delegacias da mulher cumprem um papel importante no atendimento e proteção de mulheres que precisam recorrer à Lei Maria da Penha. Nelas, é possível que a vítima solicite medida protetiva, denuncie ataques sofridos e até mesmo consiga proteção e segurança para retirar seus bens de casa evitando qualquer contato doloroso e perigoso com o agressor.
Segundo o STJ, em agosto de 2022, a Polícia Civil de Minas Gerais publicou a Resolução 8.225 para, alterando resolução anterior, estabelecer que mulheres transexuais e travestis, vítimas de violência doméstica ou familiar baseada no gênero, fossem atendidas em delegacias especializadas, independentemente de mudança do nome no registro civil ou da realização de cirurgia de redesignação sexual.
Após isso, cerca de 224 mulheres transexuais vítimas de violência doméstica foram atendidas em delegacias da mulher no estado.
Suporte
A Casa Florescer, localizada no bairro do Bom Retiro em São Paulo, é uma organização especializada no suporte de mulheres trans e travestis.
Desde março de 2016 trabalha com duas casas de acolhimento recebendo mulheres que tenham sofrido problemas familiares em decorrência de sua identidade de gênero ou que foram gravemente prejudicadas com a exclusão escolar, o preconceito constante e, claro, que tenham passado por qualquer tipo de situação que compreenda violência e experiências traumáticas.
Em entrevista, o gerente da Casa, Alberto Silva, explica ainda que os objetivos não se limitam ao suporte das condições mínimas de uma vida digna, mas do apoio emocional. “O trabalho que é desenvolvido no espaço é pautado também nas relações afetivas. Quando envolve alguma questão nesse sentido as mulheres são encaminhadas para a Casa da Mulher Brasileira, onde contam com um atendimento mais específico”.
A Casa da Mulher Brasileira, citada por ele, constitui um centro especializado no cuidado de vítimas de violência doméstica e familiar, com 8 unidades espalhadas por todo o país. Trata-se de mais uma rede de apoio de extrema importância - não mais apenas para as mulheres cis.
Para Silva, apesar da importância da integridade física, é preciso “pensar políticas de saúde, esportes, lazer e cultura”. Este apontamento é de suma importância, já que a população trans, sobretudo feminina, é constantemente marginalizada.
Basta que olhemos para mais alguns dados da Antra dos últimos anos: 82% das pessoas trans abandonam o Ensino Médio entre os 14 e os 18 anos.
Por isso, a instituição precisou entender que as vivências diárias das mulheres que atendem estão repletas de obstáculos. “Um dos maiores desafios é lidar com as vulnerabilidades, a coleção de ‘nãos’ que muitas mulheres recebem no seu dia a dia. Infelizmente, muitas mulheres ainda são muito marginalizadas pois em muitos momentos possuem somente a prostituição como meio de sobrevivência”, esclarece.
Além das rodas de conversa, o projeto já contou com o apoio de cursos ministrados pelo SENAI, atuando na capacitação profissional e reinserção dessas mulheres no mercado de trabalho.
As festividades também são constantes: festas juninas, ceias de Natal, festivais gastronômicos e até mesmo a presença de DJ 's chegam para ajudar na socialização e promoção de momentos de alegria no dia a dia da instituição.
Na pele
A jovem Luara de Amorim, de 21 anos, afirmajá ter sido vítima de violência psicológica e verbal em locais públicos, além de ter presenciado isso com outras pessoas.
Segundo ela, apesar da grande incidência de crimes violentos, os ataques verbais ocorrem praticamente na mesma frequência. Com medo, sabe que nem sempre pode estar sozinha. “Conto majoritariamente com amigos e familiares para auxílio, mas procuro sempre estar enturmada em redes maiores para apoiar e ser apoiada quando necessário”, relata.
Quando questionada sobre a importância da extensão da Lei Maria da Penha para sua comunidade, aponta que o sistema ainda é muito pouco eficiente:
"A lei em questão já possuía diversas falhas em sua composição e na sua execução, mesmo quando ainda abrangia apenas mulheres cis gênero. Dentre essas falhas, pode-se relatar a falta de um acompanhamento adequado das medidas protetivas, a ineficaz comunicação entre os órgãos responsáveis durante sua execução, as limitações das medidas protetivas e a falta de apoio à vítima. À vista disso, é certeiro que para mulheres trans e travestis não seja diferente (...)”, afirma.
Por isso, Luara Amorim relaciona os crimes, ataques e mortes de mulheres trans e travestis principalmente a esta dura realidade, impotente e misógina. Segundo ela, uma vida melhor para esta população atravessa a mesma necessidade de tantos outros grupos e minorias: a efetivação do respeito aos direitos humanos.
“Portanto, diante do atual cenário brasileiro, a ineficácia das leis e julgamentos contra mulheres transgêneros e travestis está enraizada em questões sistêmicas de discriminação, transfobia e da falta de sensibilidade por parte do sistema legislativo. Enquanto houver a cultura de seletividade na aplicação dos direitos humanos e na diversidade de gênero, será necessário muito mais esforço e ações para alcançar de fato uma mudança positiva”, explica.
Até que isso aconteça, Luara Amorim seguirá, em suas palavras, se sentindo “desprotegida”.