Dores, inchaço abdominal, cansaço, ansiedade, irritabilidade. Esses são os sintomas que a maioria das mulheres costuma sentir no período da menstruação. Apesar de serem questões de extremo incômodo, é importante pensarmos que, no mundo, há mulheres que sentem, além de todos os sintomas físicos, a pressão do sistema patriarcal dentro de suas próprias casas e bairros em que residem. Essas mulheres merecem um olhar altamente cauteloso, afinal, representam por si sós um conjunto de silenciamentos históricos feitos pela sociedade sexista em que vivemos.
A menstruação em si já costuma ser encarada pela sociedade global como uma questão unicamente feminina e de pequena importância, quando, ao falarmos de menstruação, estamos na realidade tratando um tópico de saúde pública e de extrema importância para compreensão de espaços públicos e como a mulher ocupa ou deixa de ocupar os mesmos. Um dos países onde a realidade acerca do período menstrual é impactante é a Índia, onde 1 a cada 5 meninas deixam a escola por conta da vergonha sentida pela menstruação. Essa média resulta em 3 milhões de mulheres que deixaram de estudar.
No país, foi construído historicamente um silêncio e um tabu arraigado sobre todas as questões que envolvem a saúde da mulher. Esse estigma social sentido por elas decorre do mito criado e firmado em torno da menstruação, que prega que, nesse período, as mulheres ficam imundas, doentes, impuras e até mesmo amaldiçoadas. Durante esses dias, as mulheres tem permissão vetada de sentarem à mesa, entrarem em templos, cozinharem e fazerem visitas às casas alheias. O fundamento seria de que, por exemplo, se a mulher cozinhasse, contaminaria a comida daqueles que fossem comer, afinal, eles acreditam que o período menstrual é um ciclo de limpeza de tudo o que há de pior e mais impuro dentro da mulher. As comunidades até mesmo aconselham as mulheres a não tomarem banho nesse período e acreditam que elas ficam anêmicas no mesmo.
Em uma entrevista para a BBC, a indiana Manju Baluni, de 32 anos, explicou como se sente vivendo imersa nesse cenário de exclusão: “Nunca vou deixar minha filha sofrer como eu sofro quando fico menstruada. Minha família me trata como uma intocável”. Nesta curta fala de uma mulher que vive essa realidade estão implícitos muitos dos problemas estruturais relacionados à mulher que essa cultura enfrenta. Um estudo recente realizado por um fabricante de absorventes local revelou que, 75% das mulheres que têm acesso a absorventes, quando os compram, carregam envoltos em embalagens de papelão, para que ninguém, principalmente um homem, descubra que ela está menstruada. Essas mulheres também nunca podem solicitar a um homem que compre absorventes, pois para elas representa a maior vergonha e intimidação que pode ser sentida. É importante lembrar que, esse dado, apesar de chocante, se aplica às mulheres que, dentro desse contexto histórico e geográfico, são privilegiadas. A situação é ainda mais degradante quando tratamos das mulheres rurais e das que estão nos grandes centros, mas são periféricas e não possuem acesso e condição de comprar absorventes. Nesses casos, que são a maioria, mais uma questão problemática é adicionada à lista: a saúde das mulheres.
Para estancar o sangue durante o período menstrual, a maioria das mulheres utiliza panos velhos, que são guardados em caixas escondidas. Muitas delas, por sentirem vergonha em serem vistas lavando estes panos, permanecem com o mesmo tecido durante vários dias. Esse costume já foi provado pela comunidade médica ser um fator de grande risco para infecções e desenvolvimento de fungos nas mulheres, podendo desencadear até mesmo doenças genitais mais graves. Nos lugares onde as mulheres ainda conseguem lavar esses tecidos, há outro problema: elas não podem estender completamente no sol, pois algum homem pode ver. Isso faz com que elas tenham que fazer o uso dos mesmos ainda que parcialmente molhados, o que gera um fedor e maior risco de contaminação. Algumas tribos ainda acreditam que, após o uso desses panos, eles devem ser queimados, para que a maldição existente naquele sangue seja efetivamente exterminada.
Em Maharashtra, uma das regiões com condições de vida e trabalho mais precárias, muitas mulheres são obrigadas a tomar decisões irreversíveis e radicais que podem ter sérias consequências a longo prazo. Essa região é conhecida pelo grande número de famílias pobres que trabalham com o corte de cana de açúcar, que exige esforço físico dos trabalhadores desde o nascer ate o pôr do sol. Nesse lugar, os empregadores quase nunca se mostram interessados em contratar mulheres, afinal, não aceitam a ideia de que elas não trabalhem durante um ou dois dias no mês, quando estão menstruadas. Caso a mulher empregada não consiga trabalhar um dia, ela deve pagar uma multa.
Decorrente da falta de casas de banho e condições básicas de higiene, muitas mulheres acabam desenvolvendo infecções e, devido a isso, os médicos da região encorajam-nas a passar por cirurgias de retirada do útero, que são desnecessárias, visto que a maioria dos problemas ginecológicos podem ser resolvidos com procedimentos menos invasivos e uso de medicamentos adequados. Devido a essa frequência de recomendações, o número de “mulheres sem útero” teve um crescimento assustador, fazendo com que a comunidade passasse a ser conhecida como “aldeia das mulheres sem útero”. No distrito de Beed, foram registradas 4.605 histerotomias desde 2016, o que resultou na criação de um comitê do governo para investigar os casos.
Em outro estado do país, Tamil Nadu, em uma indústria de vestuário, os empresários aconselham suas funcionárias a tomarem medicamentos sem prescrição e controle médico para tratar das dores menstruais e impedir que elas percam o dia de trabalho. O uso desenfreado desses medicamentos faz com que, muitas vezes, as mulheres desenvolvam ansiedade, depressão, infecção urinária e até mesmo abortos, decorrentes dos efeitos colaterais.
Já no oeste do país, em Gujarat, outro caso envolvendo repressão feminina gerou polêmica nos jornais de maior circulação do mundo. 68 estudantes universitárias, que moram em um albergue, prestaram depoimento contando que foram obrigadas a se despir e mostrar suas roupas íntimas para as professoras para provar que não estavam no período menstrual; afinal, se estivessem, receberiam recomendações de não frequentar a universidade e, caso fossem, deveriam sentar na última fileira, longe dos demais alunos.
Essa não é a primeira vez que um episódio desse perfil ocorre; há três anos atrás, em uma escola no norte da Índia, 70 estudantes também passaram por inspeção após funcionários encontrarem gotas de sangue no chão do banheiro. Esses casos estarem acontecendo em pelo século XXI podem parecer algo chocante, principalmente para mulheres que vivem em uma realidade também machista, mas completamente diferente. Para entendermos essa diferença entre realidades entre a Índia e o Brasil, por exemplo, é necessário voltarmos nosso olhar para a construção histórica.
Os países, ainda que igualmente denominados subdesenvolvidos, passaram por processos de colonização distintos e a formação de suas culturas e aspectos epistêmicos se deu a partir de pontos completamente diferentes. Portanto, ao falarmos da situação da mulher na Índia como tão apartada da situação da mulher no Brasil, precisamos levar em consideração a bagagem estrutural não só dos dois países como também da formação da cultura feminina global. Há muito tempo tem se falado sobre o feminismo do terceiro mundo, que seria justamente o movimento de mulheres ocidentais, que lutam por suas necessidades e causas locais, possuem seus discursos estruturados, mas nem sequer consideram a abordagem da realidade de mulheres que não estão nas culturas do ocidente, como é o caso da Índia. As lutas que pregamos aqui no Brasil, apesar de essenciais para a nossa realidade, nos separaram em níveis gigantescos quando olhamos para as necessidades das mulheres de outros países.
Para ilustrar melhor esse contexto, basta pensarmos em uma menina ou mulher de classe média no Brasil. Essa mulher nunca terá problemas em encontrar absorventes, poderá falar abertamente com as suas amigas sobre cólicas e dicas de como melhorar o desconforto durante o período menstrual e, caso tenha dúvidas ou precise de ajuda, terá um leque de opções de ginecologistas que poderão auxiliá-la da melhor maneira. Quando olhamos para essas mulheres, é difícil imaginar que nos mesmos segundos, há a alguns países de distância estão milhares de meninas que passarão a vida inteira sem saber o que é a menstruação, algo que acontece com seu próprio corpo. Meninas que largam os estudos por vergonha e por acreditarem que a partir da primeira menstruação suas vidas devem voltar-se apenas para procriação.
Essa dualidade de realidades, para algumas feministas, representa uma traição do feminismo branco europeu e latino americano com mulheres que não pertencem ao ocidente. Para elas, confrontar realidades como a desigualdade salarial, a cultura do estupro e o assédio como parte da realidade social e pessoal, já implica em uma resposta feminista. Porém, quando tratamos de uso de véu, casamento infantil, prostituição, barriga de aluguel e uso de determinados trajes, esses aspectos são vistos como culturais e que devem caber a escolha da mulher, ainda que ela esteja inserida em um lugar que não possui contextualização sobre o feminismo e seus direitos, como é o caso da maioria das mulheres na Índia.
Enquanto na Índia, as mulheres lutam por banheiros exclusivos nas escolas e em ambientes públicos com o mínimo de condições de higiene, no Brasil, essa é uma pauta que já foi discutida há muito tempo. Mas isso não quer dizer que, dentro do Brasil, não existam mulheres que conversem com questões das mulheres da Índia intimamente, afinal, as mulheres periféricas e rurais do Brasil são as que mais sofrem com a falta de saneamento básico, desemprego, feminicídio e, no caso em questão, falta de acesso a absorventes e produtos de higiene básica.
Para Aline Souza Martins, psicanalista e doutoranda em psicologia pela USP, quando tratamos de comparar culturas como Brasil e Índia, devemos tomar cuidado, afinal, as mulheres de lá vivem em um contexto cultural e geopolítico completamente diferente. Para ela, o machismo não é maior lá ou aqui, mas recai sobre os corpos das mulheres de maneira diferente. Por exemplo, enquanto lá as mulheres enfrentam a questão da menstruação, do casamento infantil e da dificuldade na inserção no mercado de trabalho, aqui o corpo das mulheres é um dos mais objetificados do mundo, onde os índices de plásticas batem recordes e a maioria tenta incansavelmente se encaixar em um padrão estético inexistente.
Aline explica que, o motivo pelo qual as mulheres do mundo possuem necessidades e lutas tão diferentes e complexas é a decorrência do processo de formação histórica, onde sempre os homens brancos foram os protagonistas e responsáveis pela usurpação do conhecimento, experimentação e legitimação feminina, desde a época medieval, onde mulheres que contestavam os saberes eram chamadas de bruxas e queimadas nas fogueiras, até hoje, com o machismo perpassando todos os ramos da vida feminina. A psicanalista diz que não devemos falar pela opressão de mulheres que estão aquém à nossa realidade. “A gente não pode controlar o tipo de opressão que essa mulher vai sofrer dentro da cultura dela. O que precisamos é de empatia para conseguirmos encontrar uma forma de unificar as lutas ainda que com as diferenças.”
Quando perguntada sobre o que ela acha que o futuro guarda para as mulheres da Índia, do Brasil e do mundo, a doutora disse acreditar em tempos promissores, ainda que passemos por tempos sombrios. Para ela, nenhum processo de luta e resistência é linear. “Precisamos reconstruir a história do ponto de vista dos silenciados. O primeiro passo é alcançar a representatividade, fazendo com que mulheres, negras, orientais e das mais diversas variações ocupem espaços de poder e inspirem demais mulheres.”
Atualmente, há movimentos feministas emergindo, principalmente na Índia, para lutar contra essa história que machuca e silencia mulheres diariamente. Nas áreas rurais, as mulheres encontraram uma forma de fazer revolução e romper com os estereótipos e estigmas que as prendem na cultura. O projeto Pad, foco da atuação, transformou uma antiga casa em Hapur em uma fábrica de absorventes biodegradáveis, produzidos e comercializados pelas próprias mulheres. Dessa forma, as mulheres encontraram uma forma de empoderamento, ruptura com a repressão e autonomia. Além de ganharem o próprio dinheiro e independência, elas estimulam e permitem que cada vez mais meninas e mulheres rurais tenham acesso aos absorventes. A longo prazo, as mulheres do Pad pretendem romper completamente a mentalidade masculina preconceituosa que reside as comunidades, através de muita conversa e ensinamentos.
Outro grande passo que foi dado e nos faz acreditar em um futuro melhor e mais justo é a criação da Menstrupedia, um site dirigido por quatro indianos que visa "estremecer os mitos e entendimentos que cercam a menstruação" e apresenta histórias em quadrinhos e cartilhas simples sobre puberdade, menstruação e higiene. O blog recebe mais de 100 mil visitantes por mês e é uma forma de levar conhecimento para mulheres não só da Índia como do mundo inteiro.
No Brasil, a deputada Janaina Paschoal apresentou um projeto de lei ao Congresso que prevê a distribuição gratuita de absorventes a mulheres presas, carentes, em situação de rua e estudantes de escolas públicas. O projeto, que foi apresentado em outubro do ano passado, visa também fazer com que as escolas públicas recebam pessoas da área para conversar com os jovens sobre o tema. Se aprovado, esse projeto pode permitir que as mulheres recebam o mínimo de respeito e cuidado com seus corpos, que já são naturalmente submetidos a situações de vulnerabilidade.
Entender as carências das mulheres em suas localidades diversas e tentar fazer com que suas lutas conversem não é uma tarefa fácil. Ao passo que devemos voltar o olhar para nossa situação, é necessário também fazer um panorama de outros países para percebermos quais pontos podemos melhorar e em quais podemos influenciar, sem tomar lugares de fala, para resolver problemáticas que atingem diversas mulheres. A luta feminista, tanto na Índia como no Brasil, apesar de ter dado pequenos passos para alcançar uma sociedade minimamente justa, possui uma longa trajetória pela frente, com muitos impasses a romper, afinal, não provocaremos uma ruptura na sociedade patriarcal do dia para a noite. As mulheres ainda são naturalmente inferiorizadas pelos processos sociais e sair desse estado tem se mostrado algo complexo e demorado. O mundo e as lutas se mostram cada vez mais polarizados e esse cenário não parece nos permitir fazer ligações para fortalecer as lutas. Para enxergarmos os contextos de outros espectros, precisamos, antes de tudo, rompermos com a ideia de que somos alheias às lutas de mulheres de outros países. Como a Dr. Aline mencionou, “O grande desafio é conseguirmos manter a unidade, ainda que com todas as diferenças”. Antes de mais nada, entender e respeitar para poder enxergar de que maneira as lutas podem conversar e se apoiar sem se autoanularem.