Cheguei na casa do meu advogado, cansado, melancólico, pronto para cancelar uma viagem que havíamos programado há meses.
“Você é ridículo”, ele disse, “isso precisa mudar agora”.
Pegou o notebook do outro lado da mesa, levantou a tela e ficou passando os olhos durante uns 3 minutos sem nem me dirigir uma palavra. “E então?”, perguntei cinicamente. Ele me olhou ostensivo, “Espere”, respondeu seco. Após uns 5 minutos falou, “Você tem dinheiro?”. Respondi que sim. “Então é isso. Para onde vamos? Bolívia está R$1.300”. Disse que não tinha vontade de conhecer a Bolívia. “Tá bom. E uma viagem mais urbana, tipo Buenos Aires, Uruguai?”, insistiu. Achei a ideia um pouco melhor. “Não! Esquece isso. Que tal o deserto do Atacama?” - Hmm... já comecei a gostar mesmo da coisa. O Atacama parecia perfeito.
O que eu imaginava era uma mistura de Salvador Dalí com “Camping do Seu Daí”, na Chapada Diamantina: cenários surrealistas e uma galera “hiponga” pronta para festas clandestinas e noites curtidas em ácido. Essa mistura de natureza e orgia seria capaz de me proporcionar uma boa dose de alegria; sem contar que havia escutado sobre as reservas de lítio, uma substância antidepressiva que, no Atacama, flutuava no ar como a especiaria de Frank Herbert.
“Mas e os documentos? Preciso de passaporte, visto, essas coisas?".
“Que nada,” respondeu meu advogado, “Com qualquer papel você viaja para o Chile – RG, CNH, até com carteirinha de vacinação, eu acho. É o Mercosul, baby!”
“Bom, então é isso. Vamos nessa”
Eu estava bem animado – ainda que um pouco apreensivo com o imediatismo da coisa. “Você não vai fazer merda, né?”, perguntou meu advogado antes de ir embora. “Não” – definitivamente não. Respondi para mim mesmo dirigindo-lhe um sorriso falso. E saí pela porta me sentindo um pouco estranho.
Agora era hora de se movimentar. A viagem aconteceria em dois dias. Eu não tinha mala, roupas de frio, dinheiro (havia mentido sobre o fato de ter dinheiro) ou qualquer noção básica do que iria encontrar no Atacama. Só sabia de uma coisa: tinha o desejo quase sexual de andar pelo deserto em um conversível. Então, era preciso alugar um carro – coisa que é um pouco mais complicada do que parece. Quer dizer... tirando toda a burocracia natural que envolve alugar um carro, quando isto é feito internacionalmente exige-se que você tenha um cartão de crédito internacional com 500$ na conta de garantia para qualquer merda que aconteça - e eu não tinha um cartão de crédito internacional, muito menos quinhentos dólares.
Deixei essa tarefa para meu advogado; por sorte ele conseguiria utilizar a conta de um cliente rico que lhe devia alguns favores, mas ainda havia o problema do dinheiro. Então, resolvi penhorar algumas joias que tinha em casa, itens que pretendia vender para minha aposentadoria e consegui 5 mil reais nessa brincadeira. Somados com outros 2 mil na conta daria para viajar com o mínimo de dignidade.
Achei importante também ficar atento para as questões práticas do Atacama – como o clima, o tipo de lugar (se é cidade, campo, vila, etc...) se é seguro, se é fácil de se comunicar, enfim... – tudo que dizia respeito ao dia a dia.
Descobri que o Atacama é o deserto mais seco do mundo e fica numa região denominada “Sombra da Chuva,” entre a Cordilheira dos Andes e a cordilheira da Costa, que são responsáveis pela falta de água lá. A primeira impede a chegada do ar úmido proveniente do Amazonas e a segunda se interpõe entre as correntes que chegam do pacífico. E a verdade é que em alguns lugares do Atacama, desde que as medições começaram, nunca foi registrado qualquer sinal de chuva.
Em média, ele se localiza à 2.400 metros acima do nível do mar. Não é dos locais mais altos mundo, que chegam à 4.000 metros. Mas em comparação com o brasil esse fator pode ser relevante. Só para fazer uma comparação, a cidade mais alta daqui, Campos do Jordão, no estado de São Paulo, está a mais ou menos 1.600 metros acima do nível do mar; e a cidade de São Paulo, à 760 metros.
A amplitude térmica se assemelha à dos desertos do mundo todo. Isso significa que de dia faz um sol considerável e, de noite, faz um frio intenso. No mês de maio, que é considerado o melhor par o turismo, são aproximadamente 20º durante o dia e 1º durante a noite – podendo atingir temperaturas negativas. E, no inverno, em agosto, a amplitude se mantém, mas com temperaturas que variam entre -10º e 10º.
Esse conjunto de informações já me deixou tranquilo. O deserto parecia exatamente como eu havia imaginado. Repassei o roteiro de viagens e o que aconteceria após pousarmos no Chile. Descer em Santiago. Esperar 2 horas. Voltar para o avião. Mais duas horas até Calama. Alugar o carro. Dirigir até o Hostel. Fazer compras. Se ambientar.
Com tudo resolvido no plano abstrato resolvi partir para as ações objetivas, me dirigindo ao shopping center para comprar as roupas de frio e trocar dinheiro. É preciso dizer que, na adolescência, quando tinha uns 17 anos, prometi que nunca mais entraria num shopping center sóbrio, o que me levou a tomar meia garrafa de vinho uma garrafa de cerveja antes de sair. Chegando lá, fui direto à casa de câmbio, onde a mulher me obrigou a fazer um terrível cadastro.
“Muito bem, a cotação do peso chileno está em 0,0062 reais, quanto vai levar?”
“Ahn? Pode repetir. Acho que não entendi”
“Moço, cada real equivale a 0,0062 reais, em pesos chilenos. Vai levar quanto?”
Minha paciência se esgotou naquele instante. Já não bastava ter preenchido aquele formulário estúpido e agora me humilhava achando que contas de decimal são feitas assim, de cabeça.
“Senhora, me responda uma coisa. Os clientes que vem aqui usualmente são engenheiros, economistas ou matemáticos? Olha para a minha cara. Acha que sou o tipo de pessoa que sabe multiplicar frações? Me dê uma luz, pelo menos, uma aproximação. Senão vou achar que estou sendo enganado.”
Ela ficou constrangida.
“Não foi minha intenção, moço. Eu te ajudo, fique tranquilo”. Pegou uma calculadora e concluiu: “1.500 reais são 242 mil pesos.”
Depois deste momento elitista - que me sugou parte da energia remanescente - segui para a loja de roupas esperando um tratamento ainda pior. A ansiedade que a moça da casa de câmbio havia me causado fez com que eu atingisse um estado débil, quase catatônico. Não tinha forças para ficar escolhendo modelos ou pedindo descontos de 10%. Então, parei na primeira loja que vi – a vulgar Loja Renner – e comprei tudo. Casacos, lãs, segunda pele e um gorrinho. Na volta para casa, resolvi que compraria algo espalhafatoso para que as pessoas do aeroporto ficassem em dúvida sobre mim - achando que eu poderia ser uma celebridade. Era mais um desses desejos sexuais que aparecessem de vez em quando. Parei num brechó, na rua Teodoro Sampaio, já me sentindo melhor por ter saído do shopping center. A moça foi muito educada, mas ficava me empurrando um monte de roupas feias. Pedi licença a ela: “Licença, por favor. Acho que vou procurar sozinho”.
E nem precisei procurar muito. Ali, na minha frente, estava o conjunto perfeito, algo que nem os graduados em turismo usariam numa viagem ao Hawaii – uma camisa com estampa de sorvete e uma calça roxa.
Cheguei em casa bem-humorado. Peguei aquele talhão de dinheiro trocado e joguei tudo em cima da cama, como um gangster após vender seu primeiro quilo de cocaína. A nota mais valiosa – de 20.000 pesos chilenos – carregava a imagem de André Bello, uma espécie de libertador dos povos latinos; na de 10.000, a figura de Arturo Prat, um importante líder naval chileno... E, na de 5.000, aparecia a poeta Gabriela Mistral que, por sinal, havia escrito sobre o deserto do Atacama.
“O deserto preserva as memórias. É a pouca umidade, a aridez. É o sal. Como se fosse a fotografia de um tempo distante, há muito passado. Uma fotografia de centenas, milhares ou milhões de anos, dentro da qual é possível se mover...”
Absorto neste delírio estético, escuto o telefone tocar - era meu advogado. Não atendi. Dali uns três minutos recebo uma mensagem:
“EI, IDIOTA. NÃO SEI O QUE VOCÊ ESTÁ FAZENDO, MAS É MELHOR ME ATENDER OU PELO MENOS LER ISSO AQUI. A SUA MALA NÃO PODE PASSAR DE 10KG, OK? SENÃO SEREMOS BARRADOS. E ELA TAMBÉM NÃO PODE SER MUITO GRANDE, TEM QUE CABER NO BAGAGEIRO DA AERONAVE. A GENTE NÃO VAI DESPACHAR NADA.”
Esse cara era muito chato. Nem me lembrava de quando havíamos ficado amigos. Mas ele tinha razão às vezes, e se não fosse seu conselho eu poderia ter chegado no aeroporto com uma mala gigantesca, sendo obrigado a pagar 70 dólares pelo peso extra.
A tarefa parecia difícil. Ainda mais quando descobri uma verdade triste. Não sei dobrar roupas. Na primeira tentativa, tentei copiar o método dos militares, com camisas e calças enroladas em formato de tubo, mas logo descobri que casacos e peças mais robustos simplesmente continuavam ocupando um espaço absurdo. Era necessário procurar no YouTube modos eficientes de dobrar a roupa. Sentindo um pouco de culpa de classe, digitei na barra de busca “Como dobrar roupa que nem um militar” – mas não vieram bons resultados. Depois, fui em canais específicos até encontrar um vídeo que explicava como dobrar no... “estilo do pacotinho.”
1º - Você pega sua camisa e estica ela toda numa superfície qualquer, pode ser uma tábua, uma mesa ou até o chão.
2º - Depois, dobre as mangas das camisas para dentro da roupa de modo a formar uma figura retangular.
3º - Pegue a parte de baixo desse retângulo e leve até o meio da camisa. E, depois, faça o mesmo com a parte de cima.
4º - Dobre a camisa na marca que se formou, e pronto.
5º - Agora é só encaixar um dos lados na abertura que se formou na outra ponta e colocar na mala.
Magicamente tudo ia se resolvendo. A youtuber-dobradora-de-roupas era simplesmente genial. Para cada peça (camisa, camiseta, calça, shorts, casaco moletom, casaco corta-vento, cueca, sai, luva, etc, etc etc..) ela tinha um jeito todo especial de dobrar. Era o oposto do milagre da multiplicação. Era o milagre da redução, e eu comecei a ficar bom, de modo que decorei várias dobras diferentes.
Mas o principal era que a mala estava pronta. Espetacularmente pronta. Tirei uma foto e mandei para meu advogado, com a mensagem. “Nos vemos amanhã, filha da puta”. Ele nem respondeu, mas isso era sinal de que estava com inveja desse meu novo dom. Antes de dormir, pois viajaria no dia seguinte, pedi ao meu irmão para me levar ao aeroporto. Ele concordou. Combinamos sair às 20h da quinta feira para um voo que decolaria às 23h30. Tudo feito para evitar imprevistos. Agora, era deitar a cabeça no travesseiro e esperar o momento.
Acordei no dia seguinte e não fiz nada até a hora de viajar. Só fiquei observando aquela mala linda encostada num canto do meu quarto. Perto das 20h00 vesti minha roupa de viagem e montei a nécessaire com escova de dentes, shampoo, sabonete, desodorante e um creme embelezador de origem suspeita. Meu irmão já estava pronto para sair. “Vamos? Ele perguntou?”. Pegamos o carro e ficamos parados cerca de 1h30 na Marginal Tietê até chegar ao aeroporto. Quando desci, meu advogado já esperava, gentil como sempre.
“Você está ridículo”, disse ele “onde comprou essas roupas?”.
“Não interessa,” respondi. Ele estava se referindo à minha camisa, com estampa de sorvete e à calça jeans roxa. “Dá tempo de fumar mais um cigarro?”, perguntei. Ele respondeu que sim, “Será o último das próximas 8h”.
Fiz questão de fumar dois, um em seguida do outro. Depois, entramos com nossas malas e seguimos direto para o raio-X passando antes por uma mulher que checava as passagens por QR-Code.
Na minha hora de passar pelo detector de metais a máquina apitou. Não sabia que precisava tirar as coisas do bolso. Passei de novo e, mais uma vez, ela apitou. “Bip”. “Tem que tirar o cinto também, senhor.” Tirei o cinto e... passei. Na sequência, um outro guarda se aproximou pedindo para checar minha mala. “Ai meu deus...” – pensei. Não tinha nenhuma droga ou arma na bolsa. Mas sempre alguma coisa pode dar errado. Uma ponta de baseado no bolso lateral da mala de mão, um caco de vidro solto, um isqueiro, ou... Ah! Sim... só podia ser isso, um estilete.... Um terrível estilete, enferrujado, esquecido num estojo. Seria suficiente para me prender? Achei que seria o fim de tudo... Algemado, levado para uma cela, assinando um B.O, que situação...
“Tudo certo senhor, pode seguir”
O que havia acontecido ali? Era meu inconsciente agindo favoravelmente comigo pela primeira vez em anos? Fosse o que fosse, estava salvo. Agarrei a mala e encontrei meu advogado, que olhava para o teto. Mostrei para ele meu documento. Uma CNH recém adquirida com uma foto de 2015 em que estou parecendo um assecla do Osama Bin Laden, todo barbudo, com um coletinho de lã - um aspecto debilmente criminal. Um documento que não passaria pelos Estados unidos na primeira década do século XXI.
“Por sorte, hoje tem menos preconceito”, falei.
“Pare de fazer piadas,” ele disse enfurecido – “Ainda não passamos”.
Andamos por um longo corredor, repleto de fitas separatórias e luzes de hospital. À frente, estava a cabine de imigração. “Pronto, agora era passar por ali e nada mais poderia dar errado. Quer dizer... o avião podia cair – mas isso era algo que fugia da minha alçada de controle.” Havia dois homens dentro dela: um deles simpático e o outro com cara fechada, no melhor estilo Good Cop / Bad Cop. Por ter credibilidade e um pouco mais de experiência meu advogado foi na frente e apresentou seu documento. “Ok, pode passar”, disse o Good Cop.
Na minha vez, quem pegou o documento foi o Bad Cop. Não que fosse fazer alguma diferença, mas fiquei absolutamente em pânico. Uma sensação de que tudo poderia sair errado. Ele veria minha cara barbuda, delinquente, e me impediria de viajar. Seria eu mais uma vítima do preconceito, da xenofobia e das maldades inerentes do mundo. Já começava a formular um discurso humanitário citando a fome no mundo e os horrores do capitalismo. Armaria um barraco. As TVs apareceriam, com seus repórteres descerebrados, fariam matérias e VTs, sobre mim. Meus seguidores no Instagram aumentariam em 3.000%. Seria convidado para talk-shows e afins. No fim, receberia das mãos do Papa Francisco o Prêmio Nobel da paz. Investiria os 2 milhões numa boa corretora e viveria o resta da vida com rendimentos.
“Senhor, que documento é esse?” perguntou o Bad Cop.
Subitamente, o delírio se esvaziou e eu fui contemplado com uma sensação de horror e desespero.
“Documento, senhor? Esta é minha CNH.”
“Mas você não pode viajar com isso aí não. Cadê seu R.G.?”
“Não tenho, senhor, fui roubado.” Menti.
“Você não tem mais nada aí, passaporte, talvez?”
Nessa hora, olhei para meu advogado, que havia dito que eu poderia viajar com a CNH. Ele pareceu envergonhado pela primeira vez em muito tempo. Enquanto isso, o Bad Cop continuava.
“O senhor não pode viajar com isso aí. Vai ser barrado quando chegar no Chile...”
“Espera um pouco, senhor” – Interveio meu advogado. “Ele perdeu o documento. Digo... foi roubado. Não existe aquele RG de emergência?”
“Esse não vale”
“E o RG digital?”
“Também não.”
Aquela conversa foi me enchendo o saco. De um lado, me sentia a pessoa mais estúpida do mundo ao pensar que poderia viajar portando um documento de habilitação. Os chilenos nem devem saber o que é o Detran. Mas, por outro, sentia uma raiva absurda que não poderia ser recalcada dessa vez. Fui me transformando numa ameba enfurecida. Perdi todos os sentidos. Não ouvia nada, não via nada e não me movimentava. Era apenas um corpo flanando no universo.
Enquanto isso, meu advogado conseguiu convencer o policial bonzinho a conversar com seu superior. O rapaz foi diligentemente à uma outra cabine e começou a falar com um homem careca que se fosse receber um nome nessa história seria Bad Bad Cop. Pouco tempo antes, esse sujeito gesticulava negativamente com um outro rapaz, que parecia lhe pedir alguma coisa. Não era um bom sinal. Quando Good Cop começou a falar com seu superior, os gestos negativos tomaram outra proporção, misturando-se com um sorriso cínico típico dos policiais. Vendo aquilo, não me aguentei.
“Você é um advogado de merda, sabia? Como pode não saber de algo tão básico quanto os documentos certos para viajar? Confiei em você seu filha-da-puta e agora estou passando esse ridículo com essa roupa ridícula e essa cara de cu.”
Ele não respondeu. Simplesmente virou as costas e se dirigiu para o Free shop. De longe, eu continuei gritando “Seu merda, lixo, arrombado, filha-da-puta, cuzão, corno, safado, imbecil, etc,” até que o policial bonzinho voltou e me disse.
“Senhor falei com meu superior. Ele disse que você vai poder viajar!”.
“Meu deus! Isso é sério?” – perguntei lacrimejante.
“Não. Vai embora daqui e pare de gritar. Antes que eu chame a polícia.”
Mostrei-lhe o dedo e sai correndo antes que fosse preso. No caminho de volta, a mala abriu e todos aqueles pacotinhos de roupas caíram no chão. Recolhi tudo e continuei xingando. Fui para a central da Latam e xinguei todo mundo mais um pouco. Estava revoltado. Xingava mentalmente meu advogado. Minha estupidez. O mundo. Nada podia ser feito além disso: Xingar, xingar e xingar. Xingando, passei o mês seguinte, até que pude colocar tudo no papel. Fiquei mais tranquilo. Preciso remarcar minha viagem, provavelmente para agosto. Não desisti de ir. Quanto ao meu advogado, quando ele voltar conversaremos. Um casinho desses não será suficiente para destruir nossa amizade.
Fim da história.